Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 8
— A Fundação Mari Iminari




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— A Fundação Mari Iminari

De volta ao Reino de Órion depois da reunião com o conselho de Bellatrix, Kin teve que passar a noite toda trabalhando em seu gabinete, escrevendo relatórios sobre o que foi do interesse de Órion. Lá pelas quatro da manhã, desmaiou. Dormiu com a cara na mesa. E se quisesse ser sincera, confessaria que há meses não dormia tão bem. Não sonhou com nada, não acordou assustada hora nenhuma. A paz de seu semblante fazia parecer que ela estava numa cama confortável.

Naomi foi o seu despertador, a francesa entrou na sua sala às dez da manhã trazendo uma bolsa e uma sacola preta com um liquidificador, cinco maracujás e uma pequena garrafa d'água. Só após ouvir o bater da porta a loira dorminhoca levantou a cabeça da mesa. Ainda desorientada, não ouviu muito bem as primeiras palavras da amiga. Arrumou rapidinho a bagunça que fez na papelada quando caiu de cara nela e tentou desembaraçar um pouco os cabelos. Lembrou, então, que foi por um pedido seu que Naomi veio ali tão cedo. Que tinha muito pra fazer naquele dia que se iniciava. 

 Suspirou e desmontou os ombros, em desânimo. De pé, se espreguiçou e bocejou. Mais um dia pela frente lendo e escrevendo relatórios de várias páginas, tendo que suportar Lire, o irmão dela, os velhotes do conselho. Se aquilo ali era ser um primeiro ministro, não compreendia como Hayate sempre parecia animado quando o viam. Ai, é muito trabalho pra uma Kin só, reclamava mentalmente, ajeitando a juba encaracolada com uma das mãos. 

— Está com cara de quem teve uma noite de sono melhor que a minha. — Naomi zombou, ao vê-la esfregar os olhos com as mãos. — E parece que não foi o bastante. Vai mesmo beber suco de maracujá?

Kin reconsiderou. Nervosa, sorriu. 

— Com certeza que eu vou. Só assim pra eu conseguir respirar o mesmo ar que a Lire hoje. — Concluiu. Esticou os braços para estalar os músculos, estalou o pescoço e foi na direção do banheiro. — Prepara um pouco aí pra gente enquanto eu lavo o rosto e escovo os dentes. 

— Oui, senhora. A propósito, deu pra te ouvir roncando de lá do corredor. — Notificou-a. Antes de se esquecer, falou da bolsa que trouxe: — O Haru me pediu pra trazer umas roupas pra você. 

Kin não acreditou no que ouviu. Fechou a torneira, enxaguou o rosto e, com uma toalha entre os dedos, saiu pela porta do banheiro ao lado. 

— Desde quando eu ronco? — Perguntou. Naomi dormia na mesma casa que ela, um quarto ao lado do seu, devia saber lhe dizer isso. 

— Também é novidade pra mim. — Naomi a tranquilizou. Por ter começado há pouco tempo, especularam que provavelmente tinha a ver com stress e poucas horas de sono, que não era nada sério. Quando abriu a bolsa que Haru lhe pediu que desse a Kin, Naomi se surpreendeu. — Outra novidade é o senso de moda do Haru, ele sabe escolher roupa! 

A primeira ministra pegou a bolsa e voltou para o banheiro. 

— Ele é meu irmão, eu não esperava menos! — Disse, orgulhosa. 

 Haru mandou para ela uma blusa cinza escura sem mangas de gola rolê, uma saia de cor acerola clara, um par de sandálias de cor semelhante com salto alto e uma jaqueta preta de couro. No fundo da bolsa tinha também dois brincos dourados e uma linda presilha cinza, para o caso de Kin estar com pressa e querer pular a parte de arrumar os cabelos.

Na opinião das duas, ele acertou em tudo. Supuseram, também acertadamente, que aquilo tinha dedo da Yue. Claro que o garoto merecia aplausos pelo cuidado com a irmã. Quando pensou em quanta gente tinha a seu lado, cuidando dela, Kin sentiu seu dia melhorar imensamente. Recebeu uma injeção de entusiasmo. 

 No tempo vago que teve depois de se vestir, Kin bebeu suco, conversou, riu. Se acalmou. Sentia que podia encarar o que quer que viesse. E era bom mesmo que se sentisse assim, confiante, pois, por uma hora, falaria do lado de Lire para uma plateia de quase duas mil pessoas. Todo o conselho de Órion e o de Bellatrix deu parecer favorável ao projeto da fundação, mas as líderes dos dois reinos precisavam anunciar publicamente a construção dele, contar pessoalmente os motivos daquilo estar sendo feito.

Além de fingir que não tinha nada contra sua pior inimiga, Kin teria que pedir desculpas. Detestava se desculpar. Nem mesmo ajudava lembrar que estava fazendo isso em nome do Reino de Órion, dos ministros que a precederam. Continuava sendo um pedido de desculpas. Pior: por algo que ela não fez. Isso a irritava tanto que quase lhe dava coceiras. Mas se alegrava quando pensava que era por uma boa causa, no quanto Haru ficaria feliz no final. Porque a ideia era de Mari. 

Com tudo isso em mente, desceu até lá, subiu no espaçoso palanque amarelo de madeira e enfrentou o microfone como quem conversava entre amigos. Difícil mesmo foi não perder paciência quando Lire, para reforçar a ilusão de que eram amigas, encostava nela e se atrevia a abraçá-la. Como é que essa vaca consegue ser tão falsa?, não entendia. Nem tentava entender. Quando um filme na sua cabeça transmitia as vezes que aquela fingida feriu um dos seus, respirava fundo e dava um sorriso amarelo, tremido. Tentava manter as aparências.  

Finalmente chegou a hora de concluir o anúncio. Um milagre não ter partido pra cima dela ali em cima, ter sido capaz de se controlar. Surpreendeu até Lire. Nunca quis tanto fazer um pedido de desculpas. Quando chegou o momento do epílogo do discurso, a primeira ministra de Bellatrix se afastou do palanque e sentou-se numa das quatro cadeiras pretas atrás do palanque. Sentia uma alegria imensa só de imaginar a orgulhosa Kin fazendo uma retratação, foi pra isso que veio. Sabia o quanto seria difícil para ela. 

— Há pouco mais de um ano, meus colegas e eu descobrimos o submundo do Kikuchi. E descobrimos também que ele escravizava crianças. — Repetiu o que revelou no início dos discursos, ainda com certa vergonha. O som do estalo de uma câmera ressoou no local, o flash dela iluminou seu rosto. Levou uma solitária mecha de seus encaracolados cabelos para atrás da orelha direita e continuou: — Como sabem, nós o derrotamos, ele voltou pra se vingar, nós vencemos ele de novo... enfim. O que eu quero dizer é que isso passou despercebido pela minha mãe, pelo senhor Hanzuki e pelo Hayate porque começou na mesma época da Guerra Interestelar, todos estávamos muito ocupados com Santsuki e com o Kaira. Não quero diminuir o sofrimento daquelas crianças e o mal que o Kikuchi causou sem que nós víssemos, quero, em nome do Reino de Órion, pedir sinceras desculpas... e garantir que saibam que nós fizemos o nosso melhor. E é pra provar isso que vamos construir a Fundação Mari Iminari. Obrigado. 

Sob os respeitosos aplausos do público, afastou-se do microfone. Já ia até se esquecendo de como aquilo foi constrangedor, ia dar um sorriso genuíno — antes de Lire abraçá-la de novo. Tentou a tática de contar até cinco. Não deu certo. Acenou para as pessoas, abaixou a cabeça e sussurrou "tira a mão de mim" para a rival. Em resposta, Lire a abraçou com mais força. O que a manteve em si foi se concentrar em tudo o que dependia de seu sucesso com aquele público. Eu não vou deixar isso me tirar do sério, pensava, como quem descobria um mantra. E realmente não permitiu. Provando que Lire de fato não a conhecia tão bem quanto julgava, manteve a pose e aplaudiu. 

Após todos irem, Kin ficou só no palanque para organizar e recolher as folhas com os resumos dos discursos anotados. Uma visitante inesperada sorriu e acenou de lá de baixo. Kin a reconheceu no instante que a viu, abriu um sorriso enorme e pulou para o espaço aberto de onde, mais cedo, a multidão a escutou. 

— Mahina! Que saudade, que saudade! — Exclamou, a cumprimentou com um mega abraço. 

— Eu sei, eu sei! Desculpa ter sumido! — Com dificuldades, a garota falou e devolveu o cumprimento. Sua face mudou do branco para o vermelho, tamanha era a força com que os braços de Kin a apertavam. — Abraça mais devagar, loira! Agora eu entendo como vocês se sentiam quando eu fazia isso...

— Foi mau! — Soltou-a imediatamente. — Esqueci que tu não é mais uma retalhadora... 

Fortinha para alguém da baixa estatura dela, Mahina tinha um par de lindas maçãs do rosto também um pouquinho rechonchudas. Uma feição gentil, olhos castanhos claros bastante amigáveis e uma longa cabeleira cor de mel. 

— Tudo bem, tem vezes que eu também esqueço... — Mahina a perdoou. — Muito bacana o que você e a Lire vão fazer pelas crianças! Mas e aí, quantos calmantes teve que tomar pra conseguir suportar ela?

 — Ah! Segundo o meu irmão, o bastante pra acalmar cinco gorilas! — Admitiu, gargalhando. — E tu tá diferente, menina! O que tem feito?

Mahina corou. 

— Bom, tô diferente mesmo. E logo, logo vou ficar mais. — Foi enigmática de propósito. Para não ter que expressar com palavras o que queria dizer, pôs a mão no ventre sob o macacão rosa claro que trajava.

Kin não pescou a mensagem de imediato, mas, estupefata, levou a mão à boca quando entendeu. 

— Oh, meu Deus! É sério mesmo, tu tá grávida? — Indagou. Mahina, contente, sinalizou afirmativamente com a cabeça. Kin a abraçou com tanta animação que a ergueu no ar, em seguida girou com ela nos braços, parabenizando-a: — Linda! Parabéns! PARABÉNS! E cadê o pai? Eu quero conhecer, hein! 

De volta ao chão, Mahina recobrou o fôlego e falou:

— Claro que você vai conhecer! Como a madrinha do meu filho não vai conhecer o pai dele?

Aquilo roubou todas as palavras de Kin. Seus olhos se esbugalharam, sua boca secou. Não fazia e nem dizia nada, só sentia. 

— T-tá f-falando sério? Quer que e-eu seja a madrinha? 

— Uhum! — Mahina confirmou. — E que o Arashi seja o padrinho. Vim principalmente pra perguntar se vocês aceitam!

— Claro que SIM! — Respondeu, jogando os braços para o alto. — Pera aí, eu vou virar pra trás pra comemorar, porque se eu te abraçar agora vou acabar machucando meu afilhado ou minha afilhada... — Pediu licença, deu-lhe as costas e, entre as risadas da amiga, festejou o convite, deu vários pulos e golpes no ar. “Eu vou ter uma afilhada, eu vou ter uma afilhada! Eu vou ser madrinha!”, cantarolava. Ao terminar de extravasar a felicidade, se fez de séria e reafirmou: — Aceitaremos o seu pedido. 

As duas riram até não poder mais. Kin, simultaneamente, chorava de emoção. De repente, Mahina se deu pela ausência de alguém muito importante, uma falta inexplicável para ela. 

— Falando no padrinho, cadê o Arashi? — Perguntou, olhando para os lados. 

O humor e a expressão facial de Kin se alteraram de um segundo para o outro, ela ficou nitidamente pálida. Mahina notou rápido. 

— Ah, ele foi pra Terra de Taurus no final do ano passado, mas já avisou que tá voltando! Deve chegar hoje, ou amanhã... 

— Que foi? Alguma coisa com a espaçonave? — Chutou. Sem querer, acertou em cheio. Geralmente era o que atrasava o retorno dos retalhadores para a Terra da qual partiram. 

Kin ficou mais tensa. 

— É, mas já consertaram. Tá tudo certo. — Replicou, como quem tentava se convencer do que dizia. 

Ninguém que Kin conhecia conseguia entender e se colocar no lugar das pessoas melhor do que Mahina. Dando apoio a essa sua opinião sobre ela, a ex-retalhadora sacou que, por dentro, a primeira ministra do Reino de Órion estava apavorada, talvez devastada de tanto medo do que podia acontecer com Arashi. 

— Vou passar esse fim de semana no Reino de Órion, vim me consultar com um médico daqui... Me ajuda a encontrar um hotel perto do Lar das Gaivotas? — Sugeriu. "Lar das Gaivotas" era o antigo nome oficial do conjunto de ruas onde ficava a casa de Kin, nome que acabou pegando e que caiu nas graças do povo. A loira sorriu.

— O pedido da mamãe é uma ordem! — Cedeu o braço para a visitante e a guiou.


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