Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 4
— Sora vs. Yue




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— Sora vs. Yue

Sora estava sem moradia há quase um ano. Ele e os ex-colegas de cela dele, todos raptados quando muito novinhos pelos homens do bando do Kikuchi, moravam numa estação de trem abandonada, um pouco afastada das fronteiras do Reino de Órion. Arranjavam mantimentos, roupas, chuveiro e banheiro trabalhando em um ferro velho perto de onde acharam o teto sob o qual repousaram suas cabeças. Sora fazia o que podia para mantê-los longe de problemas. Sentia-se responsável por eles, afinal, ajudou a matar Kikuchi. Deixou-os sem lar. Pelo menos enquanto obedeciam aquele monstro ele lhes dava tudo de que precisavam. De passar fome, sede, calor ou frio nunca puderam reclamar.

Sentou-se na calçada de concreto, de frente para os trilhos, e ali ficou a refletir sobre isso. Não estava se reconhecendo. Quando foi que se tornou protetor e responsável? Houve um tempo que não dava a mínima para aquela gente entre a qual vivia. Só ficava com eles pra lutar, caçar brigas, se divertir. Nos últimos meses, alguma coisa mudou. Desde a morte do desgraçado que os tiranizou, para ser mais específico. Ver o infeliz morrer, presenciar o sacrifício de quem conquistou isso, mexeu profundamente com Sora. Várias vezes Kikuchi acentuou o quanto se assemelhavam. No seu íntimo, Sora decidiu que não queria terminar como ele.

O Raikyuu comparou o fim de Kikuchi com o de Kenichi de Órion, o retalhador que o matou. Acompanhou de longe o velório e o funeral do orioniano. Olhou para Haru, Yue, Kin, Arashi e Naomi. Queria ser como eles. Levar uma vida normal, ser mais do que um retalhador. Claro que não admitiria isso em voz alta. Não assumia isso nem para si mesmo. Tudo isso são experiências que marcaram fundo sua alma, que se formaram mudas nela. Coisas que vinham dirigindo o seu comportamento sem sua consciência, calmamente, com a sutileza de características que nasceram com ele. Guiado pela perplexidade provocada por tais acontecimentos.

Deitou as costas na calçada e uniu as mãos atrás da cabeça, usou-as como travesseiro. Como vinha fazendo há tempos, para dormir. Não queria machucar Haru e Yue. Não podia negar, porém, que os homens atrás dos quais estavam mereciam o que estavam recebendo. Respirou fundo, tão fundo que seu peito nu, todo tatuado, se elevou enormemente. Seus traços faciais condiziam perfeitamente com os de um oriental, de um japonês. Lisos e majoritariamente pretos, seus cabelos tinham mechas loiras. Sua testa mais uma vez transpirava de stress. Estressar-se não fazia seu estilo, sempre foi famoso por sua despreocupação.

Trouxe para a memória o instante da morte de Kikuchi. Isso o relaxava. Nunca negou o quanto gostou de ver aquilo, nunca deixou de se gabar de ter presenciado isso. Nem tinha porque fazer qualquer uma dessas duas coisas. O miserável o escravizou. O fez de cachorrinho. Nada mais humilhante para um retalhador. Mesmo com seu jeitão "nem aí" de ser, continuava sendo um retalhador. Todo retalhador, por natureza, deseja ardentemente destruir quem o aprisiona. Mais por questão de orgulho do que por condições de vida. Privados da oportunidade da vingança contra Kikuchi, os guerreiros que dividiam a estação de trem com ele quiseram, num primeiro momento, se voltar contra o Reino de Órion. Graças a ele, isso não aconteceu.

— Raikyuu! — Um rapaz apareceu e o chamou. Sora apalpou as pernas da calça e sentou para ouvi-lo. — A Atsuko já está pronta para irem. Hora de pegar o Harume.

O ouvinte se limitou a acenar de leve com a cabeça. Depois que o mensageiro se foi, suspirou pesaroso e deitou novamente. Com "Harume", o sujeito se referia ao sobrenome do pai de Yue. Chegou sua vez. Prevendo que teria mais dificuldades do que nas execuções anteriores, Sora pediu um reforço. Mas por que foram escolher logo a Atsuko para ir com ele? Essa garota era uma das mais fortes guerreiras dali e também uma das mais cruéis. Mentalmente instável, podia-se dizer. Tinha certeza de que enfrentariam Yue e Haru. Tinha uma certeza ainda maior de que aquilo não terminaria bem. Seu coração continuava dividido, cá e lá, lá e cá. Sua mente não concluiu nada por definitivo, vacilava meio a ideias, perdida. Precisava parar de pensar e agir.

No caminho, pensou na ocasião que impediu Atsko de matar alguém.

Aconteceu no ferro velho, num dia ensolarado. O trabalho lá nunca foi pesado, como retalhadores eles podiam erguer qualquer peso que eles lhe davam, só o descreviam como, mais uma vez, "humilhante". O desperdício de um tempo que queriam gastar treinando, lutando. Um pobre azarado esbarrou seu carrinho de ferro no dela e derrubou tudo o que ela trazia. Sua sorte foi que Sora estava por perto. Todo mundo em volta parou para ver, sabiam que Atsuko não deixaria passar. O imenso terreno de pedras e de montanhas de sucata virou uma arquibancada.

O sol ardeu ainda mais forte. Sora largou seu carrinho de mão e andou devagar até eles, como quem se aproximava lentamente de uma fera para não assustá-la.

— Olha a merda que você fez! Você não enxerga?! — Gritou Atsuko. — Essa era minha última leva antes de parar pra lanchar! Eu te mato!

O pobre rapaz se encolheu assustado ante a ameaça dos punhos da retalhadora.

— Ei, ei, ei, calma! — Sora entrou no meio e segurou-a pelos pulsos. Olhou para a vítima dela e mandou: — Cai fora daqui.

O trabalhador atrapalhado deixou o carrinho que empurrava e fugiu. Atsuko não entendeu, tentou alcançá-lo mas foi contida de novo.

— Por que você fez isso?! — Perguntou, e empurrou Sora. — Olha o que ele fez! — Apontou para o monte de sucatas que ela vinha trazendo.

— Bater nele não teria graça nenhuma, ele é só um humano. Relaxa essa cabeça quente. — Justificou. — Vai lanchar, eu levo isso daqui.

E sem pressa alguma, catou os lixos que o coitado derrubou do carrinho dela. Mecanicamente. Só lá para o último pedaço de ferro sujo se perguntou porque estava fazendo aquilo. Arrastar lixo por alguém definitivamente não fazia seu estilo. Por que não deixou ela acabar com a raça do cara? Não era problema seu. Até se divertiria vendo. E se ela fosse demitida e presa, também não era problema seu. Naquele dia se deu conta de que algo estava diferente em si, só não fez o menor esforço para saber exatamente o quê. Jurou se policiar para não voltar a ser tão bonzinho.

Dois dias foram embora voando depois que Yue descobriu o padrão dos assassinatos e foi para a casa do pai imaginando que ele seria o próximo. Por orgulho, porque ainda estava com muita raiva dele desde que soube que ele financiava o reinado de Kikuchi, não pisou dentro de casa. Kande e ela ficaram na varanda. Dormiram no quintal, comeram no quintal, usaram o banheiro da loja na qual compraram a comida com que se alimentaram naquele período. Yue se recusou a aceitar qualquer coisa vinda dele. Achava insultante a simples insinuação. Os dois pouco se falaram.

Quando chegou, a primeira coisa que disse ao pai foi que dispensasse todos os retalhadores que contratou como guardas. Quem estava vindo matá-lo era Sora e, assim que os viu, soube de cara que nenhum deles seria páreo para o Raikyuu. Talvez nem ela era capaz de vencê-lo. Kin foi sábia quando mandou Kande vir com ela. Suspeitava ainda que, se fosse vir, Sora não viria sozinho, então nem Yue e a irmã juntas dariam conta do recado. Pedir os serviços de uma retalhadora de elite foi uma jogada de mestre, Kin estava se saindo muito bem como primeira ministra. Não que estivesse surpresa.

Sayuri desceu quieta e de braços cruzados as escadas de madeira que davam para o quintal. Viu as duas dormindo encostadas logo abaixo. Sempre admirou a fibra moral da irmã mais nova, daquela vez, no entanto, achava que ela estava indo longe demais. Estava achando ofensivo. Foi errado seu pai contratar os serviços de retalhadores escravizados? Foi, concordava, isso não significava, entretanto, que toda a fortuna dele foi construída sobre isso. Não foi. Na sua opinião, Yue estava sendo ingrata. Queria lhe dizer isso, mas a conhecia. Yue não escutava ninguém quando ficava assim.

Os passos de Sayuri a acordaram. Apesar de ser quatro anos mais velha, compartilhava muitas semelhanças físicas com Yue. Poucas características as diferenciavam. Sayuri tinha um rosto mais comprido, olhos maiores, sobrancelhas mais cheias e bochechas menos rechonchudas. Seus cabelos eram parecidos, lisos, mas Sayuri os deixou com a cor castanha clara natural deles e abaixo dos ombros. O modo de se vestir também as distinguia, a mais velha apostava em vestidos com cores mais escuras, a menor variava mais, num dia aparecia de saia, no outro de shorts, de camiseta, vestido — todas peças feitas por ela mesma ou personalizadas.

Para visitar o pai, Yue escolheu uma camiseta cor de morango, colocou sobre ela uma camisa colorida, cobriu as duas com um casaco de capuz amarelo, escolheu uma saia preta e botas. Sayuri veio usando um vestido marrom claro. Kande estava com o modelito de retalhadora de elite: camiseta branca com o símbolo de Áries nas mangas curtas, calça comprida e tênis xadrez rasteiros. Prendeu os longos cabelos cacheados para trás e se sentia pronta para o que viesse.

— Como estão as coisas? — Yue perguntou, se espreguiçou e ficou de pé. — Desculpa, eu acabei dormindo.

Sayuri revirou os olhos e a alfinetou:

— Que surpresa, você é tão perfeita.

Yue não entendeu.

— O que isso quer dizer? — Questionou-a.

— Nada. — Sayuri deu de ombros. — E tá tudo bem, nenhuma ameaça por enquanto.

— Como "nada"? — Reclamou a mais nova. Sabia que era mentira, Sayuri vinha tratando-a com indiferença e frieza desde que chegou. Nem o caloroso abraço que costumavam se dar quando passavam dias ou meses sem se ver aconteceu, o que deram foi rápido e gelado. — Fala comigo, Say.

— Yu, olha como você vem tratando o nosso pai. — Decidiu abrir o jogo. — Se acha isso tudo dele, o que será que acha de mim? Eu não saí de casa como você, continuo vivendo à custa do, como você disse, "trabalho das crianças escravas". Nós duas crescemos aqui, lembra?!

— Tá com raiva de mim porque eu defendi o que eu acredito? Olha a bagunça que isso causou, isso é culpa de gente como ele! Minha escolha de ir embora não teve e não tem nada a ver com você, Say... — Argumentou, pegou na mão dela e continuou: — Éramos crianças quando ele fez essas coisas e o Kikuchi já foi derrotado, não tem problema continuar aqui. Sair foi escolha minha, fui embora porque não gostei do que ele fez e porque queria conhecer o mundo. Eu não quis te julgar. Desculpa. — Pediu, estendendo os braços para um abraço. Ele enfim aconteceu como as duas gostavam.

A terra sob os pés de Kande vibrou. Apenas ela sentiu.

— Hmm... gente, não quero estragar essa bela reunião de família, mas acho que os convidados chegaram. — Avisou.

Todas as janelas da casa estouraram simultaneamente, vidros voavam por toda a parte. O ar tornou-se gélido. Pedras levitavam, o solo rachava, o portão chacoalhava tanto que dava a impressão de que a qualquer momento pularia do lugar. Como Yue imaginou, não seria moleza. Trocou olhares com Kande. Logo atrás delas, Sayuri tentava saber o que as duas pensavam. Sentia um poder sinistro no ambiente, todavia, esperava ouvir delas o que fazer, especialmente da atual líder da equipe de elite do Reino de Órion.

Um som insuportavelmente agudo as fez tapar as orelhas com os dedos.

— Ele tá aqui. — Yue alegou, sem a menor dúvida.

— Sayuri, vai proteger seu pai, nós cuidamos disso. — Mandou Kande. A garota obedeceu.

Atsuko arrebentou o portão e metade do muro com um chute. Uma densa nuvem de poeira se espalhou pelo quintal. Quando ela se dissipou, Sora e Atsuko deram as caras. Sem máscaras ou fantasias.

— Oi, velha amiga. — Sora acenou para Yue com os dedos.

— Sora, sabe que não tem como vocês ganharem isso. — Disse Yue. Não queria machucá-lo, pensou se podia persuadi-lo a desistir. — Essa aqui do meu lado é a líder dos retalhadores de elite, minha irmã está lá dentro com meu pai. E a Kin já sabe de vocês. Se entreguem.

A companheira de Sora deu uma risada.

— Vai sonhando! — Exclamou. — Sou louca pra lutar com um dos retalhadores de elite!

No rosto do Raikyuu, a expressão não era a mesma. Yue viu isso. Normalmente teria brigado com ele, dado uma bronca, mas logo que o olhou nos olhos notou que não estava lidando com o mesmo Sora de meses atrás. Pro bem ou pro mal. Foi com isso em mente que esperou uma resposta verbal dele antes de agir. Sora quis conversar com Yue. De repente ficou feliz por ser ela ali, em vez de Haru ou outra pessoa. Não esperava tanta compreensão da parte dela, precisava confessar.

Para ficar sozinho com Yue, mandou Atsuko partir para cima de Kande.

— É toda sua. — Apontou para a retalhadora de elite e disse, com voz baixa. As duas sumiram num piscar de olhos. Meteu as mãos nos bolsos.

Já a sós com ela, Sora fez silêncio. Procurava na cabeça o melhor jeito de se explicar, um que não fizesse parecer um incapaz precisando de ajuda. Nada lhe ocorreu.

— Por que está fazendo isso? — Antes de mais nada, Yue quis saber.

— Você me conhece. — Retrucou, fingiu um sorriso. — É assim que eu sou, gosto de brigas, desordem...

— Você não é um assassino. — Yue discordou. Quebrou as defesas dele. Sora podia ser um brigão, um desordeiro, mas assassino, sabia que ele não era. — Vingança também não faz o seu estilo, quando o Kikuchi era vivo você nunca falou em ir atrás dele.

— É, não faz. — Admitiu. Quis se abrir: — Mas faz o deles. E eu não posso deixá-los sozinhos. Lembra do invasor que prendemos no castelo do rei ano passado? Aquele que queria raptar a princesa e eu matei sem querer. Ele era um de nós. Fiz um trato com eles pra não deixar isso se repetir, disse que ajudaria eles a pegarem os ricaços que deram dinheiro pro Kikuchi se ficassem longe de problemas... Não tem ideia de quantos atentados ou coisas piores eu impedi ficando com eles e matando gente como o seu pai!

Yue engoliu seco, nervosa. Toda a imagem que tinha dele estava desmoronando. Não pensou nenhum contra-argumento, não sabia mais o que dizer. Começava a compreender que a linha que ia do mal ao bem não era tão clara quanto ela pensava, que a estrada era escura e a fronteira, muitas vezes, tênue.

— Não estou te julgando. Eu sei que não posso. Gritei na cara do meu pai ontem que odeio ter sido sustentada com trabalho escravo! Meu pai é um dos culpados pelo que vocês passaram e merece pagar por isso, mas... — Apontou a destruição com as mãos, fez silêncio para ouvir Kande e Atsuko lutando. — Não assim. Eu entendo que o bem nem sempre é feito com mãos limpas. — Quando disse isso pensava em Kin, em Arashi, na consciência deles. Os dois já lhe disseram que ela pesava muito quando pensavam em quantos guerreiros mataram.

— Entende mesmo, Yue? Nós fomos esquecidos pelo Reino de Órion, diferente de você, da sua irmã, do Haru e da Kin! Estamos morando na rua e vivendo de pão e água há quase um ano! As mãos do Reino de Órion não estão nem um pouco limpas! — Abriu o jogo.

Mais uma vez, Yue ficou sem ter como rebater. Se calou por vários instantes. De repente, recordou-se de algo e teve uma ideia. 

 — Acho que isso pode ser resolvido. — Falou, apenas.

Depois de derrotarem Kikuchi pela primeira vez, Yue conversou com Mari e a moça deu a ideia de criarem uma fundação para abrigar as crianças que aquele monstro tirou da família. Contaram para Kin, que na época era a líder da equipe dos retalhadores de elite e, apesar de ter gostado da ideia, não podia fazer nada além de levá-la ao então primeiro ministro, Hayate. O ministro gostou do projeto, achou justo, pensou, como as três, que deviam isso a eles. Porém, houve o novo problema do reino com o Kurama, eles ainda estavam tentando administrar o caos causado por Kazu e, por causa disso, não levou o plano adiante. Mas a hora era essa.


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