Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 28
— Harmonia em Órion




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— Harmonia em Órion

O chute de Gray acertou Kin bem no rosto, em cheio, e remessou-a quase vinte metros de onde ela estava. Pediu a ele que a enfrentasse para ajudá-la a determinar quão forte estava. Acabara de ver a resposta. Isso não é nada bom, concluiu a primeira-ministra, esfregando a área golpeada. Ficaria com a cara vermelha e com dor de cabeça por um bom tempo. Mas isso era o de menos. Sentada no chão, mensurava quão fraca e fora de forma ficara. Não tinha a menor chance contra Lire. 

 Gray se aproximou e lhe estendeu a mão. Treinavam num ginásio público, espaçoso, de piso verde e telhado de aço repleto de lâmpadas. Das janelas instaladas nas paredes que cercavam a quadra, podiam ver as árvores lá fora, cujas folhas dançavam a coreografia ditada pelo sopro do refrescante vento que vinha anunciar o fim do dia.

Exercitavam-se ali desde que o sol acordou. A administração do reino, Kin emprestou aos velhotes do conselho. A primeira decisão que ela tomou sem ser por eles criticada. Não só porque os coroas queriam o leme da cidade, mas também porque entendiam a gravidade da situação. Órion dependia da força dela.

 Kin agarrou a mão de Gray e, puxada por ele, ficou de pé. Espanou com as mãos a camiseta branca e sem mangas, o short-saia preto e espantou a poeira deles. A bem da verdade, mais caiu do que lutou. Além de distraída com a avalanche de preocupações, a falta de vivência do combate real tornou-a desajeitada e de reflexos tardios — duas fraquezas imperdoáveis em uma batalha. Ainda tinha sua grande força e velocidade, pois são coisas que um retalhador não perde em tão pouco tempo, mas, por assim dizer, não sabia usá-las com a mesma perícia de quando as adquiriu.

— E aí, o que achou? — Pediu a Gray sua opinião. O loiro, que outrora era mais fraco do que ela, hoje literalmente nem suou para derrotá-la. O próprio ficou chocado.

O rapaz pensou um pouco. Não queria esmagar o espírito dela, mas pegar leve não fazia seu estilo e ela o conhecia. Se tentasse ser gentil, Kin ficaria com mais medo ainda.

— Quer sinceridade ou continuar sendo minha amiga? — Foi sua resposta. Ela riu e o empurrou. Dirigindo-se à saída ao lado dela, prosseguiu: — Tenta ficar tranquila sobre isso... hoje foi só o primeiro dia de treino, ainda temos algumas semanas e você é um prodígio, vai recuperar as forças que tinha antes do prazo. 

A ministra enxugou a face com uma toalha.

— Não é só isso que me preocupa, Gray, é também a multidão que vai perseguir nossos amigos enquanto as coisas não se resolvem... — Confessou. — Meu irmão se feriu lutando contra aquele psicopata e nem pôde ir pro hospital! Agora até a coitada da Kyoko foi envolvida na história...!

Gray abaixou a cabeça. Nunca foi bom confortando as pessoas, sempre foi muito mais o tipo que faz piadas para quebrar a tensão, mas o medo de Kin era legítimo e a situação, a seu ver, não admitia gracinhas. Para piorar, Arashi lhe pediu que cuidasse dela. Precisava dizer alguma coisa.

— Não me diga que se esqueceu de quem tá com eles… É o Arashi! — Lembrou-a. Ela rapidamente ficou mais tranquila. — Aquele cara já liderou exércitos, você estava lá, na linha de frente, vendo isso! Foi com os planos dele que nós dois vencemos você no torneio das legiões! Vamos lá! Não fique assim tão cabisbaixa, o Reino de Órion precisa, agora, daquela Kin confiante que chefiou a equipe de elite! Precisamos da Kin rompe-falanges! 

Ao ouvir o apelido, Kin enrubesceu. Seu velho e mais famoso epíteto de guerra. Quão distante se sentia daqueles dias! Quando pugnava como se fosse invulnerável, com uma ferocidade que nem os soldados mais velhos exibiam, como uma leoa faminta provendo o jantar dos filhotes. Devia fazer jus a ele, Órion merecia aquela incansável guerreira de volta. Precisava dela mais do que nunca. Sorridente, cerrou os punhos e prometeu a si mesma voltar a sê-la.

Naomi estava num dilema. Curava ou não curava Haru? O ruivinho estava muito ferido e não podia ser levado ao hospital. Se fosse levado ao hospital, poderia ser atacado durante o trajeto ou lá, enquanto se recuperava. Se o curasse ali mesmo, segundo seus cálculos ele envelheceria pelo menos uns cinco anos, pois os poderes dela nada faziam além de acelerar o processo de regeneração natural do corpo. Perguntou a Yue, Sora e aos outros o que fazer. Ninguém soube lhe dizer. O próprio Haru seria o mais apto para escolher, mas ainda estava desacordado. Era com elas. 

Sayuri deu um passo a frente e o examinou com os olhos. Toshinari, que o carregou, o estendera no piso e Yue, qual irmã carinhosa, pôs um travesseiro atrás da cabeça dele. O que será que ele iria pensar de acordar cinco anos mais velho? Chegaram ao esconderijo subterrâneo há pouco mais de dez minutos e, o caminho todo, conversaram sobre isso. Torciam para ele acordar e optar antes de alcançarem o covil. Não aconteceu. 

— Façam isso. — Sayuri foi a primeira a tomar partido. Todos a olharam esperando a justificativa. — Ele parece bem machucado, mas não sabemos a verdadeira gravidade dessas feridas. Se não fizermos alguma coisa rápido, o pior pode acontecer.

Ninguém objetou.

— Ela tem razão. — Toshinari concordou.

— Oui, ela tem, mas... quando acordar, o pobrezinho vai ter quase a idade da irmã mais velha. — Naomi relevava. No entanto, as razões aventadas por Sayuri pesaram mais. Claro que não podia deixá-lo morrer. — Tudo bem, eu vou fazer. Para trás.

Todos se afastaram. Naomi se achegou do garoto, fechou os olhos e canalizou energia nas mãos. A princípio, ambas brilharam com um forte tom purpúreo, mas pouco a pouco o clarão tornou-se escarlate. A francesa descerrou as vistas, uniu as palmas, avançou dois passos na direção do amigo e gesticulou como quem estava a ponto de tocá-lo. Mas hesitou. Lembrando-se dos argumentos da irmã de Yue, foi adiante. Desculpa, ruivo. 

Instantes após o contato com a mão dela, ele foi tomado de um estranho esplendor lilás. A fulgência o ofuscou por inteiro, ninguém podia vê-lo. Naomi, intimidada, recuou. Ela não sabia o que pensar, era a primeira vez que usava seu poder para curar alguém tão mal. 

— H-Haru! — Yue preocupou-se. Quis ir até ele, mas Sora pôs a mão em seu ombro. Fitou-a como quem recordava que não havia nada que ela pudesse fazer, como quem advertia que sua intervenção podia, se possível, piorar tudo. A jovem entendeu. Se deteve. Com as mãos juntas, como uma criança em meio a uma prece, limitou-se a olhar entristecida. Torcia para que Naomi tivesse exagerado nos cálculos.

Quando morriam em combate, os ministros e os soldados do Reino de Órion eram todos enterrados no mesmo cemitério. O chamado "Repouso dos Heróis". Uma das poucas áreas do país não afetadas pela explosão de um ano atrás. Um lugar sagrado. Se eram parentes ou se foram amigos em vida, os heróis eram sepultados lado a lado. Foi o caso de Yume, Azin, Hanzuki e Hayate.

O visitante que estava vendo o túmulo de um só precisava andar cinco passos pro lado para ver o do outro, o jazigo era coroado com louro e cabia aos parentes, amigos ou admiradores dos mortos o dever de trazer novas coroas quando as antigas murchavam. Pelo que Arashi pôde constatar, os quatro não recebiam visitas há um bom tempo. Os louros estavam nas últimas e os dizeres, manchados de poeira. Ele mesmo trouxe os novos loureiros, limpou as dedicatórias insculpidas e enfeitou os sepulcros.

Acabava, então, de adornar o de Yume. Não havia palavras ou atos capazes de retribuir o bem que ela lhe fez. O máximo que podia fazer era proteger o reino pelo qual ela deu a vida. Cuidar dos filhos dela. Foi o que prometeu fazer, no dia da procissão fúnebre dela. Foi o que fez, desde então. Órion, todavia, estava a ponto de lutar o maior confronto bélico de sua história. Arashi veio porque achou que seria boa ideia renovar a promessa. 

— O Reino de Órion jamais será destruído. O braço do retalhador mais forte cairá, se ele tentar isso. — Declarou, com a mesma firmeza da primeira vez que fez essa jura. — Seu legado... O legado de todos vocês... — E dizendo isso, lançou um olhar para os quatro mausoléus. — Um dia será o meu legado. E ele não vai desaparecer, porque enquanto ele existir, nós existiremos. — Fixando-se na cova de Hayate, passeou até ela. Pôs a mão sobre o nome dele, inscrito com ouro. Deslizou o dedo sobre cada letra. — Você... ainda não sei o que aconteceu, nem pra onde você foi, mas sei que não morreu. E sei que não nos abandonou. Ainda vamos nos ver. Não tenho nenhuma pista do seu paradeiro, mas atravessarei o universo, se for preciso.

Dourada, a lua crescente se mostrava entre centenas de estrelas. O hálito frio do clima e o silêncio convidavam o transeunte ao repouso. Arashi apreciou demoradamente o único astro cor de sangue no céu.


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