Os Retalhadores de Áries II escrita por Haru


Capítulo 25
— A decisão de Kin




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— A decisão de Kin

A luz voltara ao Reino de Órion há poucos minutos. A caminho do hospital, saltando sobre os telhados e carregando o ruivo nos ombros com todo o cuidado possível, Sora se viu cercado por um exército de retalhadores. Tantos guerreiros que ele nem podia contar. E pelo olhar, nenhum deles estava ali para chamar uma ambulância. E quanto a Haru? Este, desde que desmaiou, não deu nenhum sinal de que despertaria tão cedo. Divisando-o, Sora suspirou com preocupação. Deitou-o nas telhas. Acho que essa é comigo, concluiu, assombrando-se com a multidão. 

Pôs as mãos na cintura e encarou o imenso céu escurecido pela noite, como que pedindo uma resposta às estrelas. Elas fulgiam com a mesma intensidade e beleza de quando ele trabalhava para o Kikuchi. Distantes testemunhas de sua história. Aquela era a primeira vez que suas amigas celestiais o viam em tamanho aperto, é válido ressaltar. Sim, já sobreviveu a centenas de situações de vida ou morte, mas nunca se afligiu tanto com as outras quanto com aquela. Algo muito maior do que sua vida estava em jogo, hoje.

Passeou os olhos pelos rostos das multidões embravecidas que vieram buscá-los. Contou quantos haviam. Não importava quão bem se saísse, cedo ou tarde a quantidade superaria a qualidade. Sorriu e saltou para o pátio. Estalou as costas com um breve aquecimento, alongou os braços levando as mãos até os pés. Daria seu melhor para contê-los até a ajuda chegar e salvar Haru. Só pensava nele e em Yue. Falhar com os dois, acreditava, seria o mesmo que aceitar que era igual ao monstro que o escravizou. 

 — Kyoko! — Usou seu poder para contatar a líder de torcida. — Sabe a rua em que nos vimos semana passada? Perto dela você vai achar um monte de babacas juntos... um desses babacas sou eu, só que eu tô bem no centro, cercado! Chama ajuda e vem pra cá o mais rápido possível! 

A menina ainda tentou responder, quis saber mais, mas Sora cortou a "ligação". Disse tudo o que precisava dizer. Atiçada pelos mais afastados, a primeira fileira de inimigos atacou. O Raikyuu alçou a guarda, recuou uma perna e descarregou o peso do corpo nela. Pronto para lutar até não poder mais. Antes de ter um fio de cabelo tocado, porém, viu a maior parte de seus oponentes cair. A outra parte voltara ao posto anterior. Embasbacado, Sora vasculhou os telhados com os olhos. À procura dos culpados. O que se mostrou aos seus olhos não diminuiu seu espanto.

Os soldados do pai da Yue e da Sayuri. Não tão numerosos quanto os batalhões que o cercaram inicialmente, mas em grande quantidade. Um riso escapuliu de seus dentes. Agora de esperança. Ao sinal do capitão, uma parte deles se aglomerou a seu redor. Os pelotões rivais não foram embora, mas nitidamente se intimidaram. Quem diria que a conversa que teve mais cedo com aquele velho avarento seria tão benéfica? Jamais imaginou. Quando foi à casa dele, foi somente com a intenção de xingá-lo. Nunca lhe pediu ajuda alguma. 

Derrotar os dois retalhadores que guardavam o casarão do pai de Yue não foi tão difícil, o complicado mesmo foi fazer isso sem dar alarde. O coroa ouviu tudo e foi correndo ver o que acontecera. Lá fora, caídos ao redor da terra nua, enxergou seus homens. Os soldados mais caros do mercado. A poucos passos de ambos, Sora o mirava. Parecia esperá-lo. Um se indagava o que o outro estaria pensando. Apesar de haverem se esbarrado dezenas de vezes antes, sentiam-se completamente estranhos um para o outro. Como se estivessem se vendo pela primeira vez.  

Sora só pisara naquele quintal uma vez, a bem da verdade. Mas sua percepção dele, naquela tarde, foi completamente diferente. A pouca vegetação, o cinza da fachada daquele casaréu, a ventania amena... tudo isso marcou profundamente sua memória, contudo. 

 — Estou surpreso de vê-lo aqui, senhor Raikyuu. — O dono da propriedade, incomodado com o silêncio, interpelou-o. — É um fugitivo, um criminoso! Me dê uma razão pra não acionar as autoridades! 

Sora estufou o peito, enrijeceu as feições faciais e avançou dois passos. Queria simular reverência.

— Senhor... Ah, não sei fazer isso! — Desistiu, dando de ombros. Não conseguia nem fingir que o respeitava. Visivelmente desajeitado, prosseguiu: — Tá legal, Yamoto! Só vou falar uma vez, então é melhor gravar, porque eu também não sei dar broncas nas pessoas... Sua filha está sendo caçada! Tem gente querendo matá-la! Sabe disso, não sabe? É claro que sabe! Pelo que me lembro, você sabe de tudo o que acontece nesse reino! 

Yamoto engoliu seco. Seus gestos não permitiam que transparecesse, seu terno preto oriental ajudava a ocultar, mas não parou de pensar e nem de temer por um minuto pelo que Sora disse. Decidido a manter o personagem frio e de negócios pelo qual ficou conhecido, não esboçou emoção alguma, nem pelos olhos e nem pela fala.

— Não que isso te diga respeito, senhor Raikyuu, mas Yue e Sayuri são transgressoras da lei... Já não devo mais nada às duas, elas são problemas do Reino de Órion. No minuto que cometeu aqueles assassinatos, Yue deixou de ser minha filha!  

O garoto, então, entendeu que nenhum argumento iria fazê-lo mudar de ideia. Fechou os olhos e deu-lhe as costas. Rapidamente pensou no dia que conheceu Yue. Uma menininha ingênua que prometeu libertá-lo do jugo de Kikuchi, uma garotinha que inocentemente caminhou porta de casa afora determinada a destruir um império de história centenária. Riu quando isso lhe veio à memória, assim como riu da cara dela quando ela declarou tal intenção. A meio metro dos portões de saída, reteve os passos. 

O horário, as condições climáticas, tudo, naquela hora, recordou-o do dia que viu a filha dele pela primeira vez. O céu, hoje, estava tão nublado quanto naquela ocasião. 

— Eu sei que você não acredita que a Yue matou aquelas pessoas, velho! — Retorquiu, imovelmente certo do que dizia. — Você pode ser o pior pai do mundo, pode ser um escravizador de crianças inescrupuloso, mas conhece muito bem as pessoas que te cercam, é por isso que prosperou nesse meio... Bom, o que eu tinha pra dizer já está dito. Se alguma coisa acontecer com as duas, quero que se lembre de mim, quando se sentir culpado. Culpa é um dos sentimentos que você me deve. 

Sorriu com discrição e satisfação. Um pouco alegre também, não podia mentir para si mesmo. A primeira coisa legal que eu fiz na vida... salvou minha vida, pensou, contendo as gargalhadas. Determinado, deu ao rosto uma expressão mais grave e tomou a frente das batalhas. Não deixou Haru de lado nem por um segundo, aliás. Todos os seus aliados estavam cônscios de que preservar a vida do irmão da primeira-ministra era a prioridade dele.

Porque Órion recobrou a eletricidade meia-hora atrás, Zero precisou aguardar para receber atendimento no hospital. Gray levou-o para lá. Assim como Haru, ficou inconsciente por alguns instantes, mas o colchão macio no qual fora posto e o ar fresco que respirava ajudaram-no a despertar mais rápido. Por outro lado, ficara tão machucado que não podia se mexer muito. Diferente do que as enfermeiras esperavam, ele deu risada disso. As coisas que disse a Haru antes de ir e as que ouviu de Sora não saíam de sua memória. 

"Vai ser divertido", recitou mentalmente as palavras de seu oponente. Fechando os olhos, mudou o rosto de lado. Abriu-os para contemplar a paisagem além da janela à sinistra. "Procure-nos quando estiver menos moído", riu, fitando agora a lua cheia. Lire, afinal, não era tão louca assim. Aquele reino era mesmo muito divertido. Logo que ouviu sobre eles, subestimou-os, creu que seriam como os outros de sua dimensão. Destruiu tudo e derrotou todos de onde veio com muita facilidade. Com tanta facilidade que ficou aborrecido. 

— Nossa! — Lire, legitimamente espantada com seu estado, exclamou ao entrar no quarto. — Então o pirralho é durão mesmo, hein? Como a irmã dele era... 

Zero fechou a cara quando a viu. Encarou a lâmpada no teto. O Raikyuu, parente seu, e Haru, tão novo mas capaz de lhe fazer frente — estes, sim, o interessavam. Agora que teve a batalha que tanto queria, um nome para atormentar, não dava a mínima para o que Lire planejava fazer. Sendo sincero, estava muito mais inclinado a ajudar as crianças de Órion.

Mal-humorado, replicou:

— Vê se não enche! E dê-se por feliz por eu não ter dito ao loiro imbecil que você manipulou a primeira-ministra com a psicótica da Akeno, nem que o massacre do conselho foi obra minha! Ficar de boca fechada foi meu jeito de agradecer pelo favor que me fez!

A primeira-ministra fez-se de ofendida.

— Calma, calma, você já não precisa mais ser tão doce comigo, Zero... — Disse, em suave tom de sussurro. Tão próxima que o convalescente podia sentir a maviosa fragrância de seus cabelos castanhos, tocou o peito dele com delicadeza, com sensualidade e revelou: — Já consegui o que queria de você. Eu estou grávida, papai Zero. 

Como as gaivotas migrando no inverno, um sem-número de pensamentos sobrevoavam a mente da ministra. Ela estava feliz. Como nunca. Zero, por outro lado, não diria o mesmo. Recebeu a notícia com a indiferença de um penhasco golpeado pelas águas de um arroio, jamais sentiu o menor desejo de ser pai e nem passaria a fazê-lo agora. Para Zero, aquilo não foi nada além de uma troca de favores. De negócios, dito da maneira mais crua e realista. Lire via as coisas de modo totalmente diverso. Por incrível que pareça, da forma mais humana. A maternidade sempre foi um de seus grandes sonhos.

Do outro lado do corredor, Gray não sabia se ficava chocado ou feliz. Pôs uma escuta em Zero no percurso até o hospital, escutou toda a conversa dos dois e gravou tudo. "Arashi e Yue estavam mesmo certos esse tempo todo", concluiu, de olhos arregalados. Devia saber. Em se tratando do Reino de Órion, o tino moral do guerreiro glacial era infalível. Mas até que sua demora para reconhecer isso não foi tão ruim. Conseguiu a confiança dos adversários e a prova para inocentar Yue. 

— Meus parabéns! E por que veio aqui? Não espera que eu faça um chá de revelação, espera? — Zero debochava. 

Lire, insensível, deu de ombros. Ajeitou a alça da bolsa azul clara no ombro e se dirigiu à porta. 

— Eu só queria ter certeza de que você não abriu essa boquinha. Além disso, sem querer ofender, mas eu pagaria pra manter você longe do meu filho. Hum... por que eu achei que isso te ofenderia? Deve ter ficado lisonjeado! — Revidou, sorridente. Pôs a mão na maçaneta de ferro da porta. Prestes a sair, lembrou-se do que ia dizer: — Ah! Hoje mesmo a idiota da Kin vai invocar a cláusula do duelo na seção da constituição que trata do cerco dos reinos, então é hoje que eu a mato! Se quiser assistir, mando alguém te levar!

Gray, ouvindo aquilo, sentiu que seu coração estava para saltar através de seu peito. Precisava agir imediatamente. "Se essa maníaca está manipulando a Kin com a técnica da Akeno, ela pode fazer o que quiser", raciocinou, em pânico, afastando-se o mais depressa possível do hospital. "Preciso encontrar Kin antes que seja tarde demais! Se é que já não é muito tarde!", entendeu, desesperado. Já nas ruas, deu um toque no comunicador acoplado à orelha e chamou Kin cinco vezes. Nenhuma resposta.

Duplicou a velocidade da corrida e continuou tentando entrar em contato com a loira. "Vamos, Kin!", exortava-a, aflito. Encaminhava-se para o palácio, situado praticamente do outro lado do reino. Na décima chamada, desistiu de falar com a primeira-ministra. Tentou o parceiro dela. Escutara que ela estava indo atrás dele para prendê-lo. Pensou o pior. "Essa não! Será que ela o matou?", receou, horrorizado. Nenhum dos dois faria mal ao outro normalmente, mas Kin estava sendo controlada. "Arashi, atende!", dizia. Vendo o quanto ainda demoraria para alcançar o palácio, deu um salto. O mais alto que já completou na vida.

 


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