Lembranças escrita por lily234


Capítulo 1
"Eu preciso de você"




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   O véu da noite caíra sobre os cidadãos de Mobius, cobrindo-os com uma vasta escuridão, a qual se marcava pela ausência de estrelas, ofuscadas pelas brilhantes, porém falsas luzes da cidade grande. Como os outros residentes, Cream se dirigia à estação de trem para voltar para casa após mais um fracasso. " Décima Segunda. . ." - murmurou para si mesma. Como uma tentativa de assegurar-se que não havia perdido as contas, repetiu o número. Porém, pôs-se a pensar novamente sobre o assunto. Será que aquela era mesmo a décima segunda? O que lhe garantia que já não passavam das vinte tentativas de encontrar um estágio?
   Um suspiro desapontado escapou de sua boca e, sem muito ânimo, adentrou à estação. Ao passar o portão de entrada, se deparou com a usual cena das 8 da noite. Um grupo de cerca de cinco adolescentes riam e gritavam em um volume estupidamente alto, que sem dúvidas causaria incômodo aos passantes que ficassem ali por muito tempo. Tal algazarra, derivada das garrafas de álcool, agora vazias e, também das bitucas de cigarros acesas, as quais emitiam um odor desagradável e forte. Fazendo Cream tossir algumas vezes. Os jovens pararam de repente e olharam para ela. Ao perceber os olhares, abaixou a cabeça e desceu as escadas rapidamente.
   Após descer alguns degraus, a garota se deparou com um sujeito maltrapilho encostado na parede mais à frente. Ela parou e observou-o. Suas vestes estavam cobertas de buracos e remendos e um gorro multicolorido cobria seus cabelos mal cuidados e escondia parcialmente uma expressão de extremo abandono e tristeza. Ao seu lado, havia um chapéu de palha, que continha algumas poucas moedas dentro. Compadecendo-se com a situação dele, Cream estendeu a mão ao bolso e alcançou sua carteira, abrindo-a, e revelando quatro notas de 20 dólares, os quais ela usaria para fazer as compras do mês.
   Porém este senhor, desprovido de abrigo e cuidados, necessitava do dinheiro muito mais do que ela mesma. Então, ela se agachou e depositou metade do valor no chapéu do indivíduo, que ao ouvir o tilintar das moedas, murmurou um fraco obrigado e sorriu levemente. Cream ligeiramente virou o rosto, sorrindo de volta. Em seguida, encarou o último lance de escadas e seguiu em frente, em direção à plataforma de embarque. 

O lugar se encontrava quase vazio. Poucas pessoas preenchiam o espaço, esperando por seus respectivos trens. De repente, uma voz estridente ecoou pelo local. Ela vinha de uma garotinha de aparentemente dez anos, seus cabelos louros esvoaçavam com a brisa derivada da pressa de chegar à mãe, que se encontrava do outro lado da plataforma. A criança carregava nas mãos sujas de terra, uma delicada flor amarela, a qual era idêntica à cor do vestido da mulher. Tal momento, fez ela lembrar de sua mãe, um campo de girassóis, e um vestido amarelo…

O sol, preparando-se para adormecer, marcava o final de uma bela tarde de primavera. Uma leve brisa balançou os inúmeros girassóis que ali floresceram. E assim, dançavam em perfeita sincronia. Cream pegou uma das flores nas mãos, seu caule longo e verde era enfatizado pelo brilho vindo do astro. Ela havia pegado dentre eles o mais bonito que havia visto para dar de presente à sua mãe, cuja flor favorita era justamente o girassol. Ela, então, correu em direção à ela, que observava o pôr do sol serenamente. A garota puxou a barra do vestido de Vanilla, para chamar sua atenção. Ao ver a flor, sua mãe abriu um sorriso largo, e envolveu os braços em volta de ambas em agradecimento.

Ela desvencilhou do abraço e começou a tossir violentamente, colocando a mão direita sobre a boca. O rosto de Cream se contorceu em preocupação. “Mãe, você está bem? O seu coração dói?” - perguntou a garota, apoiando sua mão no ombro da mulher. “A mamãe está bem, querida, não precisa se preocupar” - a outra responde, estendendo sua mão para a menina. “Vamos para casa”. Naquele momento, o sol havia desaparecido do horizonte. Um sopro de ar gélido penteou seus cabelos e as duas foram embora, de mãos dadas. 

Um toque leve em seu ombro arrastou Cream à realidade. Ela, sem querer, atrapalhou a passagem dos transeuntes, que, sem outra alternativa, mudaram seu curso e passaram em volta dela. Ela se virou para encarar a pessoa que a havia tocado. Se tratava de uma moça cerca de cinco centímetros mais alta que ela, sua postura, perfeitamente ereta, suas vestes e seu olhar fixo e afiado indicavam uma figura imponente e responsável. Cream, percebendo que estava encarando por tempo demais, desviou o olhar rapidamente e liberou o caminho.  A senhora acenou com a cabeça e olhou o relógio de pulso, impaciente. Sem hesitar, a outra avançou em direção a linha amarela. 

Enquanto isso, ela se lembrou da garotinha e da mãe que havia visto anteriormente, as duas pareciam tão próximas . . . A lembravam da relação que tinha com sua mãe, Vanilla. Sua mãe nunca havia lhe contado sobre o paradeiro de seu pai, mesmo que Cream perguntasse algumas vezes. Logo, ela aprendeu a evitar o assunto, pois quando mencionado, deixava a mamãe extremamente triste, mas ela sabia que ele tinha deixado-as assim que a garota nasceu. Mamãe também possuía muitos problemas financeiros, já que ela tinha que tomar remédios o tempo todo. Ela sentia dores no corpo inteiro, principalmente no coração. Logo, as economias se esvaiam e as contas se tornaram mais caras, fazendo ela piorar ainda mais. Cream não aguentava ver sua mãe sofrer e não poder fazer nada sobre isso, então ela saía toda semana para tentar vender desenhos e artesanato, porém não deu certo, ninguém iria gastar dinheiro comprando algo que uma criança sem experiência ou talento fizesse às pressas. 

Então, arranjou outra solução. De vez em quando ouvia falar de empréstimos rápidos no rádio, algo que, sem dúvidas, era a única opção que restava, que poderia salvar sua única família. Após alguns meses, tudo estava bem novamente, sua mãe melhorou lentamente da doença e, com o valor, ela pode pagar o tratamento que estava atrasado há anos. Porém, no final, Cream não pôde pagar os credores a tempo, e como compensação, assassinaram sua mãe na frente dela, a enforcando com sua gravata e a garota não pôde salvá-la a tempo. 

Após o enterro, a mandaram para um orfanato. Enquanto estava lá, muitos quiseram levá-la para casa, porém, ela sempre os recusava educadamente. Ao contrário das outras crianças, ela não queria ter uma nova família, uma nova casa, uma nova vida, pois isso a faria esquecer da  mãe e aceitar que ela havia mesmo deixado este mundo. Para ela, nada nunca a substituiria, e era melhor remoer as memórias antigas do que enterrá-las sobre novas.     

Quando finalmente alcançou a vida adulta, foi liberada do orfanato e, pode receber a herança deixada por “ela”, possibilitando a compra de um apartamento de vinte metros quadrados no subúrbio da cidade. Ela também se dedicou aos estudos, fazendo um programa de educação para adultos. Assim, terminou o ensino médio e passou para estatística; desde então, ela vem procurando uma ferramenta para adquirir experiência, um estágio. Contudo, era rejeitava em todas as entrevistas, pois não era o que a empresa estava procurando, como iriam aceitar alguém como ela? Afinal, não era confiante, não sabia falar em público, era tímida, desastrada e também um pouco pálida. Isso a entristecia, muito. Pelas suas contas, o fracasso de hoje era o décimo segundo . . . “Quanto mais isso vai durar?” - pensou. 

“Talvez, tudo seria melhor se eu desaparecesse . . .” 

   “É…” - murmurou baixinho 

       “De
                      sa
                           pa
                               re . . .”

Fechou os olhos por um momento, seu equilíbrio se desestabilizou, uma leve brisa penteou seus cabelos e um som grave e alto invadiu seus ouvidos, a arrastando para a realidade.
                                             


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