Blindwood escrita por Taigo Leão


Capítulo 26
Blindwood




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Elaine não sabia como falar sobre o que havia acontecido.
Embora tivesse uma grande carreira como jornalista e, de praxe, soubesse como questionar as pessoas sobre situações delicadas, ela não sabia o que fazer agora.
O mais adequado, em sua mente, era aguardar mais um pouco.
A prioridade agora devia ser cuidar de Maria, que ainda não estava acordada, mas sentia febre.
Marco já estava fazendo o necessário, então Elaine se manteve mais afastada dele, para assim o homem fazer o que tinha que fazer sem ser incomodado. Assim o silêncio foi mantido no ar. Ninguém dizia uma única palavra.
Elaine foi até o banheiro e, no vidro do espelho quebrado, tentou se ver no reflexo.
Em seu reflexo distorcido ela via claramente as olheiras e se dava conta de como estava cansada.
As batalhas, a busca, as trocas de dimensão. Elaine não se lembrava da última vez em que teve uma boa noite de sono.
Ao menos agora ela havia alcançado o que almejava. Ela sentia que, de alguma forma, tudo estava resolvido, mas ainda não sabia com precisão se aquele realmente era o fim. Era algo incerto e desconhecido para ela, mas poderia ser o fim.
Sarah Bove estava morta, isso era certo. E Marco, o homem que a amava, a matou.
Mais do que Romeu e Julieta, o homem havia perdido tudo que tinha. Elaine temia que, assim como na história, ele também quisesse tirar a própria vida.
— Maria ainda não acordou.– Marco disse, da porta do banheiro.
— Marco... O que aconteceu...? Você conseguiu ver?
—...
Marco nada disse, apenas saiu dali e se sentou na cama.
Elaine o acompanhou, sentando na poltrona da parede oposta, que não ficava muito longe da cama. Afinal, o cubículo que Marco morava era bem pequeno.
O homem estava prostrado. Ele apoiava os cotovelos no joelho e levava as mãos a cabeça. Elaine aguardou.
— O Ceifador entrou na igreja e... Matou um por um. Todos que estavam ali, em seu caminho, foram brutalmente assassinados. Eu vi uma chacina, Elaine, sim, eu a vi e não tive a coragem de me mover para fugir. Os homens que me seguravam correram para escapar, mas eu não tive essa coragem. Eu apenas aceitei o fim. Eu estava onde precisava estar. Tudo que me importava estava naquela igreja, então eu não via problema em morrer junto de Sarah Bove. Até mesmo Madalene conseguiu fugir, mas eu não. Permaneci ali. O que me surpreendeu nessa situação, Elaine, não foi o que me manteve ali. Mas sim as ações que aquela entidade maligna tomou. Veja, ele caminhava e assassinava uma pessoa a cada um de seus passos da forma mais leviana possível... Sangue era derramado. Gritos escutados, mas ele não se importava com nada. Apenas em matar. Mas uma pessoa, a que poderia ser o seu alvo mais fácil daquela chacina – uma mulher que estava amarrada e de costas –, ele não se importou. Ele simplesmente continuou seu caminho, ignorando aquela pobre alma. O que me trouxe uma nova indagação, da qual mantive junto a mim até o fim dos acontecimentos. A pergunta em questão é, esta entidade, o Ceifador, segue realmente um propósito? Ele não está aqui apenas para matar? Contrário a isso, ele tem consciência de tudo o que faz?
Marco continuou.
— Entenda, Elaine. Para mim, ele sempre foi apenas um demônio! Um monstro sanguinário, mas isso foi, de certa forma, esquecido por ele essa noite. Eu via o ódio em cada um de seus movimentos. Ele odeia a religião, ou odeia os humanos, não tenho certeza. Mas a segunda hipótese, a dos humanos, perde o sentido quando esse demônio passou reto por você. Mas não só por você, que acaba de chegar em Blindwood. Ele também passou por mim, por Sarah Bove e até mesmo por Maria. A noite de hoje me trás dois pensamentos. O primeiro é que ele não estava ali a toa. Ele queria proteger Maria! E o segundo é que, sim, ele segue ordens, mas não da religião, como sempre acreditamos. Mas, sendo assim, quem é essa pessoa que o mantém à rédea curta? Quem é esse ser tão poderoso que, sem pestanejar, consegue dar ordens para o Ceifador e fazê-lo obedecer a todas essas, e além de tudo isso, por quê fomos nós? Me diga, Elaine, o que pensas sobre isso.
O homem manteve o olhar baixo durante toda sua indagação, mas no fim, olhou para Elaine. Em seus olhos dava para ver o desespero e a necessidade de uma resposta. A necessidade de saber o que estava acontecendo, pois aquilo, definitivamente, havia deixado Marco em estado de choque. Ele não conseguia parar de pensar nisso.
— Marco... Não sei o que lhe dizer. Eu não conheço a religião como você. Não sei tudo que se passou neste vale, e acredito que nem você sabe. Também acho que, se um morador de toda vida, não sabe o que aconteceu, eu, muito menos, saberei. Quando senti aquela presença, pensei ser o fim. Todos aqueles gritos e barulhos... Era como o inferno! Naquele momento fechei os meus olhos e aceitei o meu fim. Não fui fraca, mas aceitei minha impotência perante tudo isso. A presença do Ceifador é tamanha que, não há como ousar questionar tua divindade. Ele é um ser divino. Não sei como foi criado e, para ser sincera, não sei nada sobre ele. Mas sei que ele não é humano. Ele é mal. É a maldade. Apenas sua presença bastou para que todos ficássemos paralisados. E essa presença também resultou em algo inimaginável. A morte de todas aquelas pessoas... E lhe digo que, na primeira vez em que o vi, me senti da mesma forma. Tão pequena, tão imponente... Você diz que ele possui ódio, mas na realidade, acredito que matar humanos é algo tão pífio que não requer nenhum esforço. O que não consigo te explicar é por que ele nos protegeu ali. Mas, além disso, lhe dou outra indagação sobre essa situação. E se estivermos errados, e na verdade seu verdadeiro objetivo era impedir a volta de Saliã? Neste caso, ele não nos atacou porque possuímos os mesmos ideais. Também estávamos ali para impedir isso.
—...Acredito que agora não podemos descartar nenhuma possibilidade, então também acreditarei nisso. Todas as possibilidades são válidas quando estamos em Blindwood, e ainda mais em uma situação como essa. Mas sobre o restante, acredito que você tenha entendido. Sim, conseguimos impedir a volta de Saliã. A mulher fugiu, mas você está com a adaga e Sarah Bove está morta. Não há como eles conseguirem um novo corpo, pois quem o escolhe é Saliã e é um processo demorado. Isso, como um todo, é um processo demorado. Por temos atrapalhado próximo da conclusão, essa tentativa foi falha. De modo que agora eles precisarão recomeçar. Mas você viu o estado em que a igreja está, e também como o Ceifador acabou com boa parte dos fiéis. Acredito que, agora, estamos a salvo. Além disso, consegui pegar essas coisas.
Marco tirou um colar de seu bolso e o mostrou para Elaine. O colar era dourado e seu pingente era uma pirâmide dentro de uma jóia vermelha. Além do colar, ele retirou de dentro de seu sobretudo o livro de Saliã. Que a mulher estava lendo quando começou o ritual.
— Sarah estava com esse colar quando a matei. Eu o peguei. Acredito que seja algo relacionado a religião...
Elaine pegou o colar nas mãos e o olhou. Em seguida olhou para o livro e o pegou.
Era um livro marrom, com a capa de couro e possuía o símbolo da religião na contracapa, enquanto que a capa era lisa.
As páginas do livro eram todas feitas com palavras e símbolos feitos a mão, com uma tinta escura. Haviam alguns desenhos também. A maior parte do livro era feita no mesmo idioma dos livros que o Ceifador possuía. Era uma linguagem arcaica e antiga, da qual nem Marco dominava.
O livro parecia conter rituais e formas de fazer sacrifícios.
Elaine perfurou o livro com a adaga de Pedenium, e no mesmo instante o mesmo pegou fogo e desapareceu. Ela sentiu uma forte dor de cabeça e uma vertigem, que fez com que ela sentasse na cama novamente.
Ela decidiu que precisava de um pouco de ar fresco e saiu do quarto, já que o mesmo não possuía uma janela.
Elaine foi até às ruas de Blindwood e olhou para o céu. No meio de toda aquela neblina, algo novo estava por vir.
Em todo o tempo que passou em Blindwood, Elaine nunca havia presenciado aquilo. Era neve. As ruas estavam se enchendo de neve. Uma neve sutil e bela caía dos céus, pronta para preencher as lacunas e ocultar aquelas marcas estranhas que as ruas possuíam. A neve trazia um novo cenário para Blindwood.
Ali, imóvel, observando, Elaine se sentiu melhor.
Ela começou a caminhar por entre o vale, observando todos os lugares pelos quais já havia passado antes, mas agora ela não sentia o medo inconscientemente que antes lhe dominava. Para Elaine, agora não havia mais o medo de Blindwood. Ela possuía medo por ser um lugar desconhecido, mas agora, depois de tudo, sentia até mesmo uma certa nostalgia. Além de um sentimento de ter realizado algo; sua missão havia terminado. Ela poderia partir.
Elaine permaneceu ali mais alguns instantes, sentada em um banco que havia na calçada, próximo da entrada do hotel.
Ela respirou fundo e permaneceu ali, olhando para o vazio entre a neblina.
Mesmo com a neve e com a salvação do local, não havia ninguém pelas ruas.
Elaine se lembrou de um dos primeiros artigos que viu sobre Blindwood, e agora deu razão para este. Essa realmente era Blindwood, a cidade fantasma.
Ela sabia que os moradores talvez nem iriam se importar com o que havia acontecido. Talvez em seus âmagos eles estivessem muito contentes e agradecidos por Elaine ter ajudado, mas eles nunca iriam mostrar isso para ela. Continuando a tratar a mesma com o desdém de sempre, e desejando que ela saísse dali o mais rápido possível.
Mas apesar de tudo, o que Elaine havia feito? Além de trazer a verdade a tona, ela só foi salva pelo Ceifador, mesmo sem entender o motivo.
Elaine pensava que as pessoas nunca seriam gratas. E nem esperava por isso. Elaine imaginou que algumas pessoas se sentiriam zangadas com o acontecimento. Com Elaine ter libertado a todos. Ela chegou a conclusão de que, no fim, as pessoas não tem medo de ficarem presas, elas tem medo da mudança.
Ela pensou em outro nome para o vale. Na verdade, pensou que o nome lhe cabia perfeitamente. Aquele era o local dos cegos.
De toda forma, ela estava onde deveria estar. Elaine se sentia em paz; completamente relaxada. Mas também, por alguma razão, se sentia em casa, acompanhada de pessoas queridas.
Ela escutou o som de seu celular tocando. Era uma chamada de Johny, mas agora ela nem se importava em tentar atender. Ela pegou o celular – que nem sabia que estava em seu bolso –, e o desligou.
Em seguida pegou o seu diário e anotou tudo que presenciou, para não esquecer de nada. Assim, seu artigo finalmente estava completo. Mas ela não poderia revelar para o mundo o que realmente causou o incêndio do Chariotte e fez Blindwood virar o que é para o mundo exterior. Alguns segredos nunca devem ser revelados, e agora ela tinha plena consciência disso.
Marco saiu do hotel e chamou por Elaine, dizendo que Maria queria vê-la, então Elaine foi até o cubículo.
Maria estava sentada na cama, com um copo de chá em mãos. Ela estava pálida e fraca, mas mostrou um brilho no olhar quando Elaine passou pela porta.
Elaine se sentou e se deu conta de como as roupas de Maria estavam sujas. Ela percebeu que desde a primeira vez em que viu Maria, ela usava as mesmas vestes. Um vestido azul.
Maria era magra e sempre esteve se escondendo pelo hotel e pelo vale. Fugindo de monstros, demônios e pessoas. Completamente sozinha. Mas agora Elaine entendia o motivo. Ela era o verdadeiro sacrifício.
Mas, o que era a verdade?
— Eu preciso lhe contar.– Maria disse.
Elaine assentiu com a cabeça. Marco permaneceu próximo, pois também era de seu interesse saber.
— Eu sempre soube de tudo isso. Sempre tive noção de tudo que era capaz e do que eu significava para essa ressurreição. Preciso lhe contar, Elaine – e também a Marco –, sobre uma lenda que há por aqui. Sobre as duas garotas. Na realidade sobre a garota original e a que se tornou sua cópia. Aquela que se tornou parte de algo. A que se tornou uma nova filha, mas também um "sacrifício". Essa outra que, embora fosse parecida, e sentisse em seu DNA e alma a ligação com aquela que estava a sua frente, essa se sentia tão vazia. Era muito estranho explicar, e também muito difícil entender. Ela foi feita em meio ao fogo, e ao fogo ela retornaria.
— Ela olhava para seu pai, sangue de seu sangue, e sabia que seria entregue. Ela não era nada, apenas um sacrifício. Seguindo o raciocínio de que sacrifícios são necessários, ela sabia sobre seu destino imutável, mas se questionava sobre algo. Se ambas eram iguais. Se eram exatamente a mesma pessoa, então por que essa tinha que ser sacrificada? Essa que havia acabado de tomar consciência de si própria. Essa que era uma, mas se tornou outra, em outro corpo. Seu pai não a amava como a outra? Sim, elas eram muito parecidas, mas era outro corpo. Ela se sentia como se estivesse em uma nova casa. Ela não via nada de familiar em si, embora fosse exatamente igual era antes. Mas também ela, em meio ao vazio e a tristeza, sentia algo a mais. Era o ódio. Um ódio ensurdecedor. Um ódio de seu pai, que tomou a decisão. E também sentia falta. A falta de sua outra metade. O que o pai não sabia, era de que sua nova filha também era forte o bastante para conjurar algumas coisas, e assim que a original foi salva e mandada para longe, essa, a outra, conseguiu ir até a outra dimensão, e ali ficou. Ela largou seu pai para trás, que sucumbiu em meio às chamas. Se não havia outra forma, ele seria entregue. Mas a criança, boba, não sabia que aquilo não era o suficiente. A criança a princípio sentiu tanto ódio que poderia se tornar um demônio residente do vale, mas não. Ela era algo a mais. Ela sempre foi. Ela era mais do que isso, e até mesmo aqueles demônios sabiam disso. E além de todas essas questões; acima do ser ou não ser, ela era alguém especial em muitos sentidos, foi o que sempre havia escutado. Mas do que adiantava ser especial e diferente, se no fim, via e sofria tudo da mesma forma que os outros? De nada adiantava ser especial. Ela queria apenas ser tratada como uma pessoa normal. Mas, infelizmente, os únicos que a tratavam assim eram os demônios. Essa, que era "a outra", se sentia sozinha. Com frio. Com fome. Até que isso também foi esquecido pelo tempo. "A outra" fugia pelo hotel, lugar que antes vivia em conjunto e como um único ser, antes de ser separada de sua metade. "A outra" preferia fugir das pessoas do que ser enganada e traída novamente. Afinal, era assim que ela se sentia todos os dias. Nem por um único dia ela se esqueceu de seu pai. Mas havia algo mais profundo; algo mais sentimental. Ela sentia saudade; ela precisava estar com sua outra parte novamente, mas lamentava o fato de que essa parte não a reconheceria de forma alguma, pois teve sua memória apagada. Ela então começou a sonhar todos os dias com formas de vidas fora dali. Com vidas onde ela era feliz e se sentia inteira. Com dias em que ela se sentia bem, e não quisesse deixar de existir. Ela queria que sua outra parte vivesse assim...
Elaine estava emocionada.
— Ela não era uma santa. Sabia que foi criada para esse plano, mas tentava adiar o máximo possível. Ela preferia viver entre demônios malignos do que entre os homens. Na verdade ela não via diferença clara entre eles, além da aparência e da forma como era tratada. Em suma, os dois eram capazes das mesmas coisas.
Maria começou a tossir antes de voltar a falar.
— Vocês não são idiotas. Sei que já sabem quem sou eu. Sim, sou "a outra". A que foi criada para morrer. Mas o que me surpreendeu foi a chama que se ardeu novamente dentro de mim, quando já estava cansada de ver lagartas e borboletas. Quando os casulos já estavam vazios e pereciam, assim como eu. Quando já estava a um passo de me entregar, ou de sucumbir – Quem sabe o que viria primeiro? –, senti algo queimando por dentro, então eu soube. Você voltou. Mas agora com outro nome. O engraçado é que se olho muito para você, me vejo. Na verdade vejo a nós, da mesma forma que estou hoje. Como da última vez em que nos abraçamos. Você, Jane. Que agora se chama Elaine.
Elaine não conseguia acreditar no que havia acabado de ouvir.
—...Jane. Elaine. Agora lhe digo que até mesmo acho cômico a forma como temos vivido. Veja, eu estive aqui no inferno, tendo sonhos felizes. Mas você tem vivido no céu, sonhando com este lugar. Mesmo distantes, ainda éramos conectadas. Eu estive aqui, te esperando. Todo esse tempo, sempre a sua espera.
Elaine sabia que era muita informação e que não fazia sentido. Era muito a se absorver. Mas ela não duvidava do que Maria lhe dizia. Elaine não duvidava, pois sempre sentiu, em seu íntimo, uma estranha ligação com Blindwood. Além da vontade de proteger este lugar, ela sempre se sentiu até mesmo nostálgica e sabia que tinha o dever de fazer algo. Seus sonhos nunca foram sonhos. Sempre foram chamados. Foram convocações. Ela devia voltar. Era a escolhida. E apenas ela poderia dar um fim nisso. Foi o que ela fez. Agora ela sabia a verdade.
—...Meu nome é... Jane?
— Jane. Mia. Agora Elaine. Você teve alguns nomes. Você nasceu como Mia. Logo virou Jane. Quando saiu daqui, recebeu o último. Acredito que este te seguiu até o fim. Mas suas raízes sempre chamaram por você. As cinzas e os fantasmas. Eu mesma, sempre chamei por ti.
— Maria!
Elaine se levantou para abraça-la, mas a menina não se deixou ser tocada. Ela se afastou na cama e manteve o olhar baixo, então fez um gesto para Elaine se sentar novamente.
Elaine estava emocionada. Isso dava sentido a grande parte de sua vida. Na verdade Elaine nunca se lembrou bem de sua infância e nunca teve pais. Ela sempre viveu em orfanatos. Sempre trocando, sempre sofrendo. Até que chegou a vida adulta e conseguiu se manter, seguindo no rumo de jornalista. Realmente, Elaine sempre teve pesadelos que nunca conseguiu compreender. E passou anos vivendo só, em meio às outras crianças. As madres sempre arrumavam algum motivo para mandá-la para um outro orfanato, mas no fim, Elaine finalmente havia voltado para casa.
Maria novamente começou a tossir, agora mais forte do que antes, e pediu para tomar um ar.
As duas então foram até o Parque Blindwood em meio a neve. Marco as acompanhou.
— Então o Ceifador te... Ele nos protegeu...
— Não sei explicar o real motivo. Passei tanto tempo entre os seres da dimensão que eles acabaram se acostumando comigo. O Ceifador não fala, então nunca tive uma conversa com ele. Não é como se eu tivesse uma relação próxima, mas já o encontrei algumas vezes. Ele passava algum tempo no Porão, e já estive lá diversas vezes. Sempre fugi dele, mas mesmo assim devo ser uma das pessoas que mais esteve em sua presença.
— Você sempre esteve entre as duas dimensões? Sabe o motivo para podermos ir e vir?
— eu fui separada de você naquele lado. Não digo que criamos essa dimensão, mas esse inferno faz parte de nós. Nós fazemos parte dele.
— Você já conhecia o Ceifador e os outros seres?
— Que diferença isso faz...? Agora somos pessoas diferentes, então minha vida não lhe afeta.
— Maria... Se fez tudo o que fez... Se passou todos esses anos fugindo, então por que me ajudou? Por quê você simplesmente não deixou que eu entrasse na igreja sozinha?
— Porque eu não queria me sentir sozinha novamente... Eu estive tão só desde que você se foi. Mia...
Elaine pegou na mão de Maria e caminhou por mais algum tempo, observando a neve que caía do céu silencioso.
A neve purificava aquele inferno.
Não havia mais desespero e solidão. Não havia mais o Saliã. Só havia o mundo como devia ser.
Não eram coisas boas ou ruins. Ainda havia a humanidade. E se houver humanidade, ainda há esperança. Mesmo que esteja lá no fundo da alma, implorando para sair, ou até mesmo cansada de esperar por um dia melhor, a esperança há de permanecer lá, escondida e quieta, mas queimando como um fogo.
Elaine se deu conta de que os fins não devem necessariamente ser felizes. Os fins são fins. Mas este não era um fim, era um recomeço. Um recomeço para os habitantes. Um recomeço para o vale. Um recomeço para Maria e Elaine.
Os habitantes de Blindwood eram cegos, guiados por outros cegos para um grande desastre que levaria ao fim de todos, mas agora estes foram salvos por um dos demônios que sempre temeram.
No fim a salvação pode vir de qualquer lugar. Elaine tinha a certeza disso.
Marco se aproximou.
— Isso são cinzas ou neve...? Hoje celebramos uma beleza amarga. Da eloquência à salvação. Estamos salvos. Mas este vale não será o céu, tampouco continuará sendo o inferno. Ele agora é neutro, assim como a vida de todos que aqui vivem. Muitos continuarão cegos a respeito da salvação. Alguns até mesmo podem contrariar nossas escolhas de libertar a todos. Alguns nunca teriam a coragem de buscar a verdade e continuariam vivendo cegos neste vale. Mas agora todos desfrutarão da vida vazia, e isso basta, menos para aqueles que enxergam que podem ser melhores. Não podemos simplesmente acordá-los e dizer como seguir a própria vida, mas continuamos aqui, vivendo e tendo esperança. E isso basta. Agora vem o medo, pois todos temos escolhas. Não temos medo de viver presos, mas sim, da liberdade.
— Mi... Elaine... Posso lhe pedir algo?
Elaine assentiu com a cabeça.
— Por favor, fique comigo mais um pouco, antes que chegue a hora.
— Hora?
Maria abraçou Elaine com força. Elaine se curvou e correspondeu o abraço. E ali elas permaneceram, abraçadas e emocionadas. Maria afundava o rosto no corpo de Elaine, e a mulher mantinha a garota em seus braços. Ela se sentia alegre e completa. Se sentia uma só com a garota. Elaine se sentia em grande euforia, e por nada neste mundo largaria aquela garota. Ela lamentou pelos ocorridos, e disse a si mesma que permaneceria com a garota. Elaine pediu desculpas em voz alta, e então apertou a garota ainda mais.
Uma luz emanou delas.
Elaine poderia estar delirando, ou talvez em outra dimensão novamente, mas ela sentia que Maria estava entrando dentro de si. Ela sentia Maria completando o seu corpo.
O brilho que emanava era tanto que Elaine não podia mais ver nada.


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