Intersex escrita por nywphadora, nywphadora


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Esta fanfic pertence ao projeto Headcanon Month (@hcmonth) do Twitter.



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Marlene nunca pensou em se tornar mãe antes.

Lembrava-se de quando aprendeu sobre o parto pela primeira vez na aula de ciências (antes mesmo que os professores começassem a falar sobre sexo) e pensar: “se algum dia eu quiser ter um filho, eu vou adotar”.

E, mesmo assim, lá estava ela, mais de 10 anos depois, grávida.

Provavelmente teria sido Lily a ficar grávida, se ela não estivesse enfrentando um câncer. A maioria das pessoas quando ouvia a palavra “câncer” pensava em A Culpa é das Estrelas, Uma Prova de Amor, Lado a Lado e todo o tipo de filmes e livros tristes em que, no final, o paciente sempre morria. Existia um estigma horrível em relação ao câncer que se assemelhava muito ao diagnóstico da AIDS nos anos 90, basicamente: recebeu o diagnóstico? Vai morrer. Só que, na vida real, não era bem assim que funcionava.

Por causa disso, Marlene tinha decidido tomar aquela decisão que não era nada fácil para ela, apenas porque queria que Lily estivesse feliz. Não que ela não quisesse ter filhos, ela só não esperava ter uma criança dentro dela. E como Lily ainda estava em tratamento e teria que esperar um tempo para a remissão para poder pensar em engravidar, a McKinnon decidiu não esperar.

— Nós precisamos decidir algumas coisas — disse a loira, tentando enxergar a própria barriga, que ainda estava pequena demais para ser protuberante, a cabeça deitada no colo da ruiva, que acariciava o seu cabelo enquanto viam um filme.

— Tipo o quê?

— Tipo, nós vamos escolher nomes? Quero dizer, como vamos saber se nosso filho não será transgênero? — ela virou a cabeça para tentar observar a reação da namorada.

— Não temos como saber isso — Lily respondeu.

— Exato! Então eu estava pensando que devíamos procurar nomes que caibam em qualquer gênero, tipo Charlie, ou Taylor, ou Alex.

— Nós vamos usar pronomes neutros? — ela perguntou.

— Nós podemos evitar usar pronomes, ou misturar pronome feminino com masculino. A criança não vai ter como escolher o que prefere por um tempo — opinou Marlene.

— É, precisa aprender a falar primeiro — Lily sorriu.

— Mas tem outras coisas também. Por exemplo, precisamos ir atrás dos documentos para pôr o seu nome na certidão de nascimento.

— Não precisa disso, Lene...

— É claro que precisa! O nosso filho vai ter duas mães! Imagina só se eu precisar expedir uma permissão toda vez que tiver que faltar à reunião escolar porque a certidão não te reconhece?

— Não somos casadas, Lene — Lily a lembrou.

— Temos união estável — ela retrucou — Estamos juntas há mais de 5 anos, moramos juntas... O tanto de casal duárico que engravida por causa de uma noite de bebedeira e não tem nada dessa burocracia para registrar a criança!

A ruiva inclinou-se para beijá-la.

— Vamos ver o filme agora, vamos? — Lily murmurou, voltando a prestar atenção na televisão.

Era um drama. Marlene odiava filmes dramáticos.

Agora que o ano estava sendo contado em semanas em vez de meses (embora Marlene continuasse convertendo para meses para todos que quisessem saber, e sabia que a agradeciam por isso), semanas depois foi o momento da primeira ultrassonografia. Para Marlene, ultrassom e ultrassonografia eram exames diferentes, mas Lily fez questão que ela soubesse que eram a mesma coisa. Que, na verdade, ultrassom era uma frequência de som captada pela ultrassonografia, ou alguma coisa assim. Ela não entendia como que um som podia virar uma imagem, mas não ia perguntar para ter uma aula completa de radiologia sem certificado de horas.

— Só vamos poder ter uma noção do sexo do bebê a partir da 13ª semana — comentou a obstetra, enquanto passava aquele gel na sua barriga para dar início à ultrassonografia.

Aquelas primeiras consultas foram basicamente para confirmar que o bebê estava vivo, se desenvolvendo e também para orientar como Marlene deveria agir dali em diante, que era a parte que ela mais odiava.

Querendo adiantar os preparativos e não se prenderem aos rótulos de gênero, pintaram o quarto da criança e escolheram roupas de diferentes cores, em sua maioria cores que não eram nem azul nem rosa. Marlene, particularmente, amava o amarelo, e a cor favorita de Lily era o verde claro.

Foi a partir da 16ª semana, quando foram fazer a ultrassonografia para saber o sexo do bebê, que as coisas mudaram.

A médica franziu o cenho, trocou a máquina do ultrassom, pôs litros e mais litros de gel, forçou tanto o aparelho pela barriga que Marlene ficou com medo que: A) ela perdesse o bebê, B) que ela já tivesse realmente perdido o bebê.

— O que foi? — por fim, Lily explodiu, como a ruiva temperamental que era — Aconteceu alguma coisa?

A mulher desligou e guardou lentamente cada parte do aparelho de ultrassom e então virou-se para elas.

— Não posso dizer qual é o sexo da criança — ela disse.

— Só isso? É normal! Minha mãe dizia que não conseguiu descobrir o meu sexo até as 30 semanas porque eu cruzava as pernas — retrucou Lily.

— Não, eu consegui visualizar... as genitálias — a obstetra ajustou os óculos no rosto — Nós chamamos de genitália ambígua. É por isso que não podemos definir qual é o sexo do bebê até que ele nasça e façamos o exame cariótipo para definir se ele tem genes XX ou XY.

— Em resumo, ele tem um pênis e uma vagina, é isso? — perguntou Marlene, começando a se irritar com a médica.

— Sim.

Olhou para Lily, percebendo que ela estava no mesmo estado de humor que o seu.

— Eu entendo que vocês querem ter um filho, mas acho que deveriam considerar os riscos desse tipo de gravidez — a médica envolveu o aparelho de ultrassom em um saco de plástico e começou a empurrá-lo em direção a um armário acoplado para dar continuidade à consulta, enquanto continuava a falar — O aborto é permitido até a 24ª semana, depois disso seria...

— O quê? Do que você tá falando? — Lily praticamente gritou, indignada — Abortar? Mas por que a gente faria isso?

— Geralmente, há razões nos genes para que um bebê nasça com genitália ambígua e pode afetar a saúde dele em diversos aspectos...

— Vamos embora — disse Marlene, abaixando a blusa e levantando-se da maca, sem se preocupar em limpar o gel da barriga.

Ela era a favor do aborto quando a mãe queria isso, mas no caso, ela não queria.

No entanto, o que a médica disse acabou ficando na sua cabeça e ela foi pesquisar sobre o assunto no Google. Foi quando descobriu que a comunidade LGBT tinha algumas letras a mais, e uma delas era a letra I de “intersexo”, pessoas que não se adequam aos padrões hormonais, genéticos e anatômicos estabelecidos pela medicina. Pessoas que nasceram sem útero, pessoas que possuem genitália ambígua, pessoas que externamente são do sexo masculino, mas internamente possuem aparelho reprodutor do sexo feminino... E que intersexo não tinha relação nenhuma com transgeneridade, pois sexo e identidade de gênero eram coisas completamente diferentes.

É, quando as pessoas diziam que não se nasce LGBT — com toda aquela discussão de se identidade de gênero e orientação sexual eram intrínsecos ao ser humano ou adquiridos com a socialização —, elas não sabiam do que estavam falando.

Queria entender melhor como funcionava a intersexualidade — se é que ela poderia chamar assim, já que “sexualidade” é um sufixo usado geralmente para falar de orientações sexuais —, e foi assim que ela marcou um almoço com uma mulher intersexo que morava ali em Londres, que ela tinha conhecido pela internet.

— Quer parar com isso? — Lily reclamou quando a viu tentar alinhar as coisas de cima da mesa pela 5ª vez.

— Eu não consigo, tô nervosa! — Marlene resmungou — E nem posso beber nada porque o bebê pode desenvolver síndrome alcoólica fetal. Vem cá — ela se interrompeu — Quando foi que eu me tornei você? É você que se preocupa com essas coisas!

— Quando a inseminação deu certo, você fez um teste de gravidez e deu positivo — a ruiva sorriu debochada para ela — Eu mal posso esperar pra te ver agindo como uma mãe.

— Cala a boca! Eu vou ser a mãe legal!

— Não, você vai ser a mãe dramática que não vai poder ver um joelho ralado que vai declarar aos quatro ventos que o nosso filho vai ter que amputar a perna.

— Eu nunca...!

Uma das cadeiras de madeira à frente delas arrastou-se para trás. Lily gostava de jardinagem, era algo de família, já que todas as mulheres (e até alguns homens) tinham nomes de flores. A flor mais bela que Marlene já viu em um vaso dentro de casa era chamada de Zantedeschia Odessa, uma espécie de copo de leite de corpo arroxeado. Ela nunca pensou que alguém poderia ter a pele de uma cor tão bela, mas Dorcas tinha. A tonalidade mais próxima que Marlene conseguiu encontrar para descrever a própria pele tinha sido da madeira de faia que revestia a mesa de centro da sala de casa.

— Marlene McKinnon e Lily Evans? — a mulher perguntou, recebendo um aceno de cabeça de ambas as partes — Me desculpem o atraso, sou a Dorcas Meadowes — apresentou-se, mesmo que elas já soubessem pelas fotos.

— É um prazer te conhecer, Dorcas — respondeu Lily, ajeitando-se na cadeira — Desculpe pelo incômodo. Você deve ouvir perguntas assim o tempo todo.

— É, mas é diferente — ela respondeu enquanto Marlene não conseguia se controlar e ajeitava o porta guardanapos mais uma vez, levando um tapa na mão da namorada, que nem desviou o olhar de Dorcas para isso — Vocês estão tentando aprender pra cuidar bem do seu filho, pra que ele não passe pelas coisas que nós passamos nas mãos dos nossos pais.

— Como você descobriu que era intersexo? — perguntou Marlene, sem conseguir conter a própria curiosidade.

— O meu caso é diferente, eu não tenho genitália ambígua — Dorcas puxou o cardápio de cima da mesa e começou a folhear enquanto respondia — É Síndrome de Morris, tem um nome gigantesco e autoexplicativo, mas eu prefiro chamar de Morris mesmo. Basicamente, os meus genes são XY, mas o meu cromossomo X veio com uma alteração genética que impediu que o meu corpo respondesse aos hormônios masculinos. Então, externamente eu tenho um corpo feminino, mas por dentro eu tenho testículos atrofiados — ela estendeu a mão, fazendo sinal para um garçom se aproximar — Naturalmente, a gente só descobre quando acontece algum problema de saúde, ou quando chega uma certa idade e a menstruação simplesmente não desce. Tive apendicite na adolescência.

— Vai querer o quê? — Lily virou-se para ela quando Dorcas transmitiu seu pedido para o garçom.

— Eu posso escolher? — Marlene perguntou irônica — Pensei que cada passo da minha vida estava sendo controlado.

— Deixa de ser dramática!

As duas ficaram com a opção vegana do cardápio, já que Lily tinha várias limitações alimentares por causa do tratamento, e Marlene tinha que ter uma alimentação mais saudável para o feto se desenvolver bem.

Passaram o resto do almoço conversando sobre os diferentes tipos de síndrome que a intersexualidade englobava, mas elas só saberiam com certeza a que seu filho tinha quando nascesse.

E então chegou o dia do parto.

Marlene implorou por uma cesariana e quantos anestésicos pudessem ser dados. No final das contas, cesárea não foi uma das melhores decisões, já que ela teria que tirar os pontos depois, e a sensação que teve quando se levantou da cama pela primeira vez era que um caminhão tinha passado por cima dela e dado ré.

Já cientes de como existiam médicos filhos da puta no mundo, Lily acompanhou bem de perto todo o procedimento e depois como as enfermeiras banhavam e examinavam o recém-nascido.

— Eu nunca mais vou fazer isso — Marlene murmurou para si mesma — Nunca mais.

— Descansa, meu amor — Lily depositou um beijo na sua testa, antes que ela fosse levada para o quarto.

Como previsto, um médico veio vê-las e tentar dissuadi-las de que a melhor decisão para o bebê era que fosse feita uma cirurgia “de correção” das genitálias ambíguas. Mas esse não foi o único problema que elas enfrentaram no hospital. Apesar de terem união estável e todos da equipe estarem cientes disso, emitiram uma Declaração de Nascido Vivo apenas com o nome de Marlene, além do campo “sexo” não estar preenchido.

— A gente não vai conseguir emitir a certidão de nascimento assim — disse Lily, analisando o papel enquanto Marlene amamentava Taylor pela primeira vez.

— Vão fazer um exame cariótipo pra determinar os cromossomos sexuais, mas isso vai demorar 15 dias, metade de um mês — murmurou a ex-gestante, sem conseguir esconder a preocupação — Sinceramente, se ele tiver genes XXY, por exemplo, como que faz?

— Vamos ter que explicar pra Taylor que sexo e gênero são coisas diferentes, que isso não vai interferir em quem elu é.

Apesar de apoiar o uso do pronome neutro, Marlene ainda estava tendo dificuldades para adequar a linguagem, então no geral apenas misturava os pronomes tidos como femininos com os tidos como masculinos.

— Eu não esperava que fosse ser fácil — disse a loira — Só não esperava que fosse ser tão difícil.

Não bastava terem que lidar com a burocracia da medicina tradicional que não respeitava identidades de gênero, e agora também ignoravam a união estável delas na DNV, mesmo que elas tivessem todos os documentos para comprovar.

Não demorou muito tempo para Marlene receber alta — puérperas não costumam ficar muito tempo em hospitais por ser o local de maior risco a infecções —, mas os primeiros dias de maternidade foram muito menos tranquilos do que estavam pensando. Até que saísse o cariótipo, o hospital não ia assinalar o sexo do bebê na DNV, e sem essa declaração era impossível registrar o nascimento em cartório. Sem a certidão, nem Marlene nem Lily podiam tirar licença maternidade. Em resumo, Marlene estava tendo que levar o bebê pro trabalho, já que tanto a sua família quanto a da parceira não eram de grande ajuda, e não queriam sobrecarregar os amigos, que também precisavam trabalhar naqueles horários.

Taylor foi diagnosticado com hiperplasia adrenal congênita, que trazia alguns sintomas como hipoglicemia reativa e pressão baixa. Mas, no geral, era uma criança saudável e muito amada pelas mães.

Depois dos 15 dias, saiu o resultado do cariótipo, Lily e Marlene conseguiram registrar Taylor McKinnon Evans no cartório (com o nome de Lily e tudo) e ter a licença que mereciam para poder aproveitar o início da maternidade em paz. Apesar de não ter sido do jeito que queriam que fosse, prometeram a si mesmas que iam criar Taylor para que se sentisse confortável consigo mesmo, e que pudesse decidir como se identificava quando fosse mais velho.

E, alguns anos depois, quando o câncer de Lily remitiu, elas finalmente oficializaram a união. Eram uma família completa e feliz.


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Notas finais do capítulo

• Achei um post no Tumblr que explica como descrever a pele de pessoas negras sem ser ofensivo e fetichista, e tô tentando pôr isso em prática. Eu sempre me sinto na obrigação de descrever a cor da pele da Dorcas, já que o fandom ama escalar atrizes BRANCAS para interpretar ela. E, como no post dizia que não é certo descrever a cor de uma pessoa negra e não descrever a pele de pessoas brancas (porque normaliza o caucasiano como o padrão), eu tentei me virar aqui. Desculpa se esse parágrafo da descrição ficou estranho, eu tô aprendendo ainda. Quem me acompanha sabe que não sou fã de descrever aparência dos personagens (no geral, eu fujo de descrições), mas eu realmente não posso não descrever a Dorcas, pelo que eu já expliquei antes.

• A inspiração para essa fanfic foi um vídeo que eu vi no Kwai em que a mulher passou por muitas dificuldades por ter tido um filho intersexo (a diferença é que ela estava em um relacionamento duárico). Se você procurar na internet, vai encontrar vários relatórios semelhantes, a maioria deles é sobre crianças recém-nascidas que foram submetidas a cirurgia para remoção do pênis sem autorização ou conhecimento dos pais.

• A Organização Mundial da Saúde se posiciona contra as cirurgias de “correção” das genitálias ambíguas, comparando-as a mutilação e tortura. A orientação de muitos sexólogos e psicólogos é esperar que o indivíduo tenha idade suficiente para decidir se quer realizar essas cirurgias. No entanto, é importante frisar que nem todo intersexo apresenta genitália ambígua, é muito sobre hormônios e sistema reprodutor interno (útero, tubas uterinas, testículos, próstata, etc) também.

• Desde 12 de setembro de 2021 entrou em vigor o Provimento 122/2021 no Brasil, que permite que os pais registrem os seus filhos intersexo. Os hospitais são obrigados a emitir a Declaração de Nascido Vivo marcando “ignorado” na opção de sexo, em vez de “masculino” e “feminino”. Dessa forma, a criança terá acesso aos seus direitos como cidadã, como obter o cartão do SUS para poder ser vacinada no sistema público de saúde, e a mãe poderá ter a sua licença maternidade. Posteriormente, o indivíduo tem como retificar o sexo gratuitamente em cartório sem precisar de uma decisão judicial (ao contrário de quem se identifica como trans, que ainda precisa de autorização do juiz pra mudar os documentos).



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