My Amazing Spider-Man escrita por LisRou


Capítulo 2
Esquecimento


Notas iniciais do capítulo

Antes de começarmos, quero agradecer pelas visus do capítulo anterior! Sério, gente, muito obrigada!!! Espero cada vez mais encantar e impressionar vocês. Vai ser meu grande desafio e meta a ser cumprida, haha! ♡

O capítulo vai ter um grande salto do desenvolvimento da história. Fiquem atentos para acompanharem o raciocínio.

Boa leitura e um ótimo domingo para vocês!



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POV. Michelle Jones

 

Um ano depois...

 

Não posso perder este emprego. Não posso perder este emprego! Não de novo!, eu mentalizava enquanto espiava pelo visor redondo da porta preta que separava a cozinha do pequeno salão do restaurante Madero Steak House. Meu chefe Anthony falava com aquele executivo, e o rosto do meu patrão não parecia muito feliz — nem o do executivo, sobretudo quando a bolota gosmenta pendurada em seu queixo tremulou e caiu, escorrendo na gola do terno caro. 

Certo. Talvez não fosse demitida. Tentei ser otimista, por mais que sempre esperar a decepção era como uma anestesia do pior pra mim. Qualquer um podia deixar o parmesão cair dentro do molho. Era pura física! Todos os corpos que possuem massa sofrem atração entre si. E havia muita massa no prato coberto de molho pesto, logo o queijo deve ter se sentido irresistivelmente atraído por ela e voou da minha mão. A culpa não era minha se a gosma decidira espirrar em todas as direções e sujar o terno bem cortado do executivo, além do vestido chique da namorada besta dele. Se havia alguém a ser culpado, esse alguém era Isaac Newton!

Eu só não tinha certeza se meu chefe se lembraria da lei da gravidade naquele momento, com o cliente esbravejando sobre como estava ultrajado diante da minha falta de jeito e que jamais voltaria a pôr os pés naquele restaurante.

Soltei um suspiro, arriando os ombros. Se você espera a decepção, você nunca se decepciona, MJ. Era melhor juntar minhas coisas.

Tem dias em que tudo dá tão errado que a pessoa se pega pensando que não deveria ter saído da cama nem para ir ao banheiro, só para evitar que, sei lá, quando fosse acionar a descarga acidentalmente quebrasse alguma coisa e a casa se transformasse em uma enorme piscina.

Deve ser legal ser essa pessoa, pensei, me afastando da porta, desanimada. Ter apenas um dia ruim, ao contrário do que acontecia comigo, que vivia uma catástrofe todo santo dia.

O fato é que eu estava constantemente alerta, tentando prever o próximo desastre, mas, por mais que me esforçasse e executasse cada movimento com atenção calculada, alguma coisa sempre dava errado. Uma espécie de maldição que começou desde minha inscrição aceita na faculdade, há um ano, na mesma época em que sofri uma dor de cabeça infernal e os sonhos começaram. Não que uma coisa estivesse relacionada a outra. Bom, eu achava que não. Ao contrário de minha irmã caçula, que estava certa de que o “cosmo” queria me dizer alguma coisa. Se bem que Gayle também acreditava em fadas, duendes, unicórnios, nos descontos da Black Friday e em promessas de políticos, então ela não contava. 

Talvez porque eu estivesse pensando nela, meu celular apitou com uma mensagem de Gayle. Na verdade, uma foto da minha irmã dois anos mais nova mostrando a língua e fazendo um V com os dedos, dentro de um provador.

Ah, maravilha.

Antes que eu pudesse responder, ela me ligou.

— MMJJJJ — foi dizendo. — Você viu? Não é a saia mais perfeita da história das saias perfeitas? Eu amei as contas e os bordados na barra. Ficou in-crí-vel em mim, não ficou?

— Você comprou? — eu quis saber, alarmada.

— Ainda não. Queria saber a sua opinião. Você que é a mestre da moda em casa. 

Soltei o ar com força. Eu odiava ter que bancar a “cortou meu barato”, mas a situação em casa estava mesmo complicada. Desde a separação dos meus pais, oito anos atrás, as coisas ficaram difíceis para nós, e mamãe fazia o que podia. Que não era o bastante. Ela precisou hipotecar a pensão para continuar cuidando do lugar, um paradoxo que não tinha chance de funcionar. Mamãe e Gayle administravam o negócio da família enquanto eu me aventurava — ou deveria dizer explodia? — no mundo lá fora, numa tentativa de conseguir alguma grana e não perder a única coisa que tínhamos na vida. Gayle, no entanto, vivia em outro mundo, um que era colorido e bonito e no qual dinheiro simplesmente brotava na conta.

— Gayle, eu quero que você tire essa saia, coloque de volta na arara e se afaste da loja devagar.

— Mas, Michelle, eu gostei tanto dela! — choramingou, e eu quase pude ver sua carinha de filhote que caiu da mudança. — A mamãe disse que eu podia!

— A mamãe sabe que o seu cartão está estourado? E que você teve que parcelar a dívida no mês passado?

— Não — murmurou, emburrada. — Mas eu pensei em fazer o cartão da loja. A saia é tão baratinha! Eu posso parcelar em dez vezes. Vai sair, tipo, mais barato que um salgado.

Fechei os olhos, inspirando fundo para não gritar.

— Gayle, a hipoteca da pensão tá vencida e nós temos que arrumar o dinheiro da prestação antes que a próxima parcela vença, senão vamos ser despejadas. Vamos perder não apenas o nosso teto, mas a fonte de renda da nossa família. O que eu ganho mal dá pro mercado. — Considerando, claro, que eu ainda tivesse um emprego até o fim daquela noite, coisa que parecia pouco provável, já que eu tinha dado uma espiada no que estava acontecendo no salão e avistado a carranca enrubescida do meu patrão ainda tentando se desculpar com o cliente do pesto. 

— Tá. Tá bem — resmungou minha irmã. — Já tirei a saia e tô indo colocar de volta na arara. A saia mais perfeita do mundo não vai pra casa comigo. — Ouvi o tilintar do cabide contra o metal. — Adeus, saia. Um dia eu volto pra te buscar. Não se esqueça de mim. Não vou esquecer de você. Adeus, sainha linda... Pronto, saí da loja. É isso que você queria? Feliz agora?

— Na verdade, não, Le — falei, magoada. — Eu queria que você pudesse ficar com ela. Mas nós não temos mais dinheiro.

Ela bufou tão alto que tive que afastar o celular da orelha.

— Desculpa, MJ. — E soou realmente arrependida. — Eu não quis parecer rancorosa. É que eu acabei de terminar um relacionamento que poderia ter sido lindo, mas que nem teve a chance de começar.

Mordi a bochecha para não rir. Minha irmã tinha um relacionamento bastante intenso com seu guarda-roupa. A paixão por roupas só não superava seu amor pela fotografia. E qualquer um que visse seu trabalho entenderia o motivo. Gayle era absurdamente talentosa.

— Você vai superar — brinquei. — A pobre saia é que nunca vai se recuperar.

— Bom, isso é verdade. Duvido que ela caia tão bem em qualquer outra pessoa.

Eu também. Gayle era a garota mais linda que eu conhecia. Desde o cabelo ruivo caindo em ondas até o meio das costas até a boca pequena e cheia, a pele clara com algumas sardas e os grandes olhos negros — a única coisa que tínhamos em comum.

Não que eu me achasse feia. Minha aparência era ok: eu gostava da maneira como minhas mechas se rebelavam — nem lisas, nem muito enroladas —, chegando quase à cintura, da minha pele morena que reluzia, do formato ovalado do rosto. Só que, sendo constantemente classificada como “exótica” por causa do rutilismo — o nome chique das morenas e negras em Nova York —, eu sempre me sentia uma cacatua roxa com topete turquesa à la Elvis Presley e uma brilhosa cauda fúcsia. Ou coisa do tipo. Ainda mais com minha mãe sendo o reflexo de Gayle e do meu pai não ser negro — para dar a desculpa da minha pele ser a mistura dos dois. A única escapatória que eu tinha era os meus avós por parte de pai, que eram tão morenos como eu. 

Ao virar o rosto em direção à porta, vi a cara furiosa do meu chefe enquadrada no visor, a caminho da cozinha. Apreensiva, tratei de me despedir de minha irmã e guardei o celular no bolso da calça.

Algumas pessoas diriam que meu nervosismo era infundado, que Anthony era um doce de pessoa, sempre tão alegre, e ficava muito bonito quando sorria — o que, infelizmente, não acontecia com tanta frequência se eu estivesse por perto. Sobretudo se eu estivesse por perto. E eu não tinha entendido ainda por que ele gostava de ser chamado de Papa, já que não tinha filhos, mas, ei, quem sou eu para julgar as esquisitices dos outros? Já bastava ter que lidar com as minhas...

A porta preta se abriu com um supetão, as dobradiças vaivém reclamando com um rangido alto. Os olhos raivosos de Anthony me encontraram. Merda. Ele ia me demitir. Aquilo ainda não tinha acontecido. Naquela semana, quero dizer. E eu tive esperança de que dessa vez conseguiria manter um emprego por mais de cinco dias.

— Por quê, menina? — Anthony grunhiu. — Por que você tinha que atender o sr. Salman? Por que tinha que sujar um dos maiores críticos gastronômicos do país?

Aaaaah. Isso explicava por que meu chefe me lançou um olhar do tipo “suma daqui agora ou vou te colocar dentro do processador”.

— Ninguém me avisou que ele era importante, senhor. Eu teria passado a mesa pra outra pessoa.

— Todos os meus clientes são importantes! — rebateu, bufando.

Nervosa, comecei a retorcer o avental. A calculadora e a caneta caíram do meu bolso. O olhar do meu patrão se inflamou ainda mais. Droga.

— Por quê? Por quê, Michelle Jones Watson? — Ele esfregou a boca com raiva enquanto eu me abaixava para pegar minhas coisas do chão. — Por que você sempre faz tudo errado? Em menos de uma semana aqui você já derrubou comida em nove clientes. Nove! — Para enfatizar seu argumento, enfiou aquelas mãos imensas na minha cara e ergueu nove dedos. — Bateu a bandeja na cabeça de um senhor de oitenta anos, quebrou seis copos e um garfo. Como é que você foi capaz de quebrar um garfo de aço inox, pelo amor de Deus?

— Eu não tenho certeza... — E ainda bem que ele não soube do incidente com o troço de flambar, pensei com meus botões, me endireitando e jogando minhas coisas de volta ao bolsinho.

— Mas eu tenho. Você é um ímã de desastres. Esse é o motivo. Nem o Homem-Aranha conseguiria segurar você, garota.

Ele tinha razão. Eu era mesmo um ímã de desastres. Com vinte e três anos, minha lista, além dos acidentes mencionados anteriormente pelo meu patrão, incluía:

1) Destruir duas TVs no meu primeiro dia em uma loja de eletrodomésticos. (Tudo o que eu precisava fazer era espanar o pó da loja. As TVs estavam dispostas de costas uma para a outra. Havia uma manchinha no canto da tela de uma delas e, ao esfregar, percebi tarde demais que a televisão não estava tão firme quanto parecia e ela tombou sobre a de trás. Ambas se estatelaram no chão tão depressa quanto me mandaram para o RH.)

2) Derrubar uma sessão inteira do supermercado. (Terceiro dia no emprego. Minha função era repor os produtos na prateleira. Eu tinha colocado o último frasco de amaciante no lugar e não percebi que um dos pés que sustentavam a prateleira simplesmente se partira. A estante tombou sobre mim. Ganhei sete pontos no antebraço e uma carta de demissão. O bom é que como houvera um assalto na rua ao lado, a atração principal não fora eu, mas para herói que lança teias.)

3) Deixar uma moça quase careca. (Segundo dia em um salão de beleza. Função: lavadora. Eu deveria remover os papelotes das mechas e lavar os cabelos da moça. Aparentemente usei o shampoo errado, que reagiu com o produto que ela havia usado. Os fios começaram a soltar fumaça e se desprenderam da cabeça dela.)

Talvez um dia isso me rendesse alguma coisa. Quem sabe eu pudesse escrever um livro? Minha vida e outros desastres, por Michelle Jones Watson.

Mas meu chefe não estava interessado em minha falta de sorte nem em meu possível romance.

— Me dê um bom motivo pra não te demitir agora mesmo. — Cruzou os braços, bufando.

— Eu sinto muito, chefe, de verdade. Juro que estou me esforçando. Eu realmente preciso desse emprego. A pensão da minha família não tá indo muito bem. — No fundo do poço era outra maneira de dizer.

— Isso aqui é um restaurante, Watson. Não uma instituição filantrópica — rebateu, de pronto.

— Eu sei disso. E tudo o que eu peço é mais uma chance. Só mais uma! Prometo que vou ficar mais atenta. Juro!

Anthony pressionou a ponta do nariz, grunhindo, e eu prendi o fôlego, levando as mãos ao peito, aguardando. Meus dedos se encheram de gosma verde. Eu os esfreguei na frente do avental enquanto via a impotência se assentar no rosto grave de Anthony e quase desmontei de alívio.

— Muito bem, Michelle. Mais uma chance — ele disse, resignado. E apontou um dedo grosso para mim. — Mas um errinho, um palito que você deixar cair e eu te coloco pra fora do meu restaurante.

— Obrigada, seu Anthony! — Tive que refrear o desejo de me ajoelhar diante dele e beijar suas mãos. — Você não vai se arrepender!

— Espero que você esteja certa, porque alguma coisa me diz que antes de o dia acabar eu vou lamentar essa decisão. — Começou a se afastar, mas parou diante do prato de massa e camarões sobre a bancada. — Por que isso ainda está aqui?

— É da minha mesa. Já vou levar. Sem derrubar nada em ninguém. — Por favor, Deus!

Anthony apontou dois dedos ameaçadores para mim, antes de voltar à área do imenso fogão industrial — local em cuja porta havia uma placa com os dizeres “Somente pessoal autorizado”, na qual um engraçadinho rabiscou embaixo, com caneta preta: “exceto a cabeça quase crespa”.

Rá-rá. Voltamos à quinta série. Não que isso me incomodasse, muito pelo contrário. Ser comparada à negros como Beyoncé, Ajita Wilson, Nick Fury ou T'challa era muito mais que um elogio! Cresci ouvindo piadinhas sobre meu cabelo como eles, e cara... Agradeço muito por me tornar a pessoa que sou hoje: forte e firme em minhas convicções e propósitos, por mais que desastrada fosse meu segundo nome. 

Ajeitando o prato sobre a bandeja e a segurando com as duas mãos, empurrei a porta preta com as costas. Assim que cheguei ao salão, com suas mesas cobertas por toalhas brancas de linho, o belo lustre de cristal lançando minúsculos halos cintilantes nas cortinas, firmei os dedos e mirei meu alvo, começando a caminhada. Desviei das mesas, cadeiras e pessoas que passavam. Era parecido com uma corrida de obstáculos, com a diferença de que eu equilibrava coisas quentes e gosmentas.

Ok. Eu posso fazer isso. Eu posso fazer isso!

O ocupante da mesa seis, um cara na casa dos trinta anos que se vestia como um adolescente, estava concentrado em seu iPad e mal notou minha chegada. Mesmo assim, coloquei um sorriso na cara e prendi a respiração a três passos dele. 

Só mais um pouquinho e...

— Aqui está, senhor. — Acomodei o prato com muito cuidado diante dele e tive que reprimir a dancinha da vitória. Nada no chão, nada sobre a mesa, nada na cabeça ou na calça de ninguém. É! Eu estava pegando o jeito.

— Obrigado. Hã... pode me trazer mais azeite? Esse aqui acabou. — Indicou a garrafa vazia sobre a mesa.

— Claro. — Peguei o frasco e o coloquei na bandeja.

Foi então que minha falta de sorte resolveu dizer um “Ei, espere por mim!”.

Enquanto eu me virava, a garota na mesa ao lado — que discutia acaloradamente com o namorado — se levantou, gesticulando muito exaltada, e esbarrou a mão na beirada da minha bandeja. O vidro de azeite rodopiou de forma pouco natural.

— Ah, não, ah, não, ah, não... — Tomada pela urgência, tentei equilibrá-lo e impedir que se estatelasse no chão, ou na cabeça de um dos clientes, mais provavelmente. Só que acabei esmagando a mulher na mesa de trás, que por sua vez levava o garfo à boca e o deixou cair sobre o colo. Ela começou a berrar comigo por ter sujado seu Cavalli (não que eu soubesse o que isso queria dizer) e jogou o guardanapo na minha cara. Sobressaltada, eu me contraí e a coisa toda desandou. A garrafa de azeite saiu voando e foi se alojar feito um míssil no lustre de cristal — também conhecido como “muito caro” — acima da minha cabeça. A garrafa, alguns cristais e duas lâmpadas se estilhaçaram e eu só tive tempo de cobrir a cabeça com a bandeja para me proteger. O plin-plic-plic produzido pelos cacos se misturou à gritaria e aos sons de cadeiras tombando. 

Fiquei encolhida até que um par de mãos gentis tocou meus ombros. Era Eloisa, a outra garçonete.

— Você se machucou? — ela quis saber.

Sacudi a cabeça, negando, uma pequena chuva de estilhaços caindo dos meus cabelos. Elô recuou.

Devagar, sob o olhar estarrecido de todo o restaurante, fiquei de pé. Infelizmente, meu chefe Anthony estava ali também, analisando a bagunça com as mãos na cabeça. Então suas sobrancelhas se abaixaram, os lábios se retraindo sobre os dentes. Moveu uma das mãos, a que segurava a colher de pau, e apontou para mim como se fosse uma lança.

— Na cozinha — rosnou. — Agora.

Conforme ele girava nos calcanhares e voltava para o coração do restaurante cuspindo fogo, alisei o avental, espanei os cacos de vidro do antebraço e dos ombros e aprumei a coluna antes de me dirigir para a cozinha da Madero Steak House pela última vez.

 

*

 

Uma hora e meia depois, eu chegava ao predinho de dois andares e fachada que um dia fora amarela, mas que agora exibia os tijolos em alguns pontos. O letreiro sobre a porta marrom tinha algumas lâmpadas queimadas e outras acesas, que iluminavam os dizeres “pensão Fió”. A decadência era visível em cada detalhe. A Pensão Filó pertencera a vovó Filomena, e mamãe sempre sonhou em reformar o lugar, transformá-lo em algo que Gayle chamava de boho chic, seja lá o que isso significasse, mas nos últimos meses nós mal conseguíamos pagar a conta de água. 

Mesmo um tanto deteriorado, eu amava aquele lugar. Como é que nós iríamos continuar ali agora que eu tinha sido demitida? O pagamento pelos quatro dias de trabalho no Steak não cobria nem metade do prejuízo que eu havia causado. Claro que me prontifiquei a trabalhar de graça até sanar o dano, o que deixou Anthony Kleison branco feito um papel. Ele me deu duas notas de cem pela jornada de quatro dias e me empurrou para fora do restaurante.

Desanimada, passei pela porta dupla meio desnivelada, que precisava urgentemente de um novo conjunto de dobradiças, procurando alguém atrás do velho balcão de cerejeira todo rabiscado. Mamãe não era muito boa em guardar papéis, e preferia entalhar os telefones importantes, recados ou lembretes em algo que não pudesse perder, como o tampo da bancada de dois metros de largura, ou a cúpula do antigo abajur sobre ele. Mas não havia ninguém ali.

Estava quase alcançando as escadas com a balaustrada cheia de rococós dos anos 40 para ir até o meu quarto quando ouvi passos ecoando pelo piso de tacos de madeira. Mamãe surgiu no hall e me viu. Olhou para o relógio no pulso e suspirou.

— Ah, não! Você não pode ter perdido o emprego de novo, MJ! — Secou as mãos no avental amarrado na cintura.

— Explodi o lustre — contei, me sentando no terceiro degrau. A tábua rangeu.

— Meu Deus, Michelle! — Ela correu até mim e tocou meu rosto com os dedos cheirando a alho. — Você se machucou?

— Só o meu orgulho. — Dei de ombros. — Não foi culpa minha, mãe. Juro. A garrafa de azeite saiu voando.

Ela se soltou ao meu lado na tábua, soprando a franja loira que lhe caía nos olhos. 

— Eu sei, querida. — Passou um braço pelos meus ombros, me apertando contra o peito. — Não fique tão chateada. Aquela espelunca não estava à sua altura. O próximo emprego vai ser melhor. Você vai ver.

Próximo? Eu nem sabia mais a que me candidatar. Havia sido um fiasco na loja de sapatos, na locadora, na lavanderia, no salão, na loja de eletrodomésticos, no restaurante. Isso só naquele mês.

— Não entendo, mãe — falei contra a medalhinha de Jesus Cristo que ela trazia no pescoço. — Parece que eu estou sempre no lugar errado e na hora errada. Sou um desastre.

Ela me beijou na testa, afagando meus cabelos.

— Não é, não, MJ. Só não anda dando sorte. E as coisas não podem ser ruins pra sempre. Sua avó sempre dizia isso e sua tia Anna também.

Eu esperava que ela estivesse certa. Já estava cansada de tudo dar errado na minha vida. Parecia que eu não pertencia a esse lugar, meu Deus. 

— Algum novo pensionista? — Endireitei as costas e me desprendi de mamãe, caso contrário acabaria caindo no choro. 

Por um ínfimo instante, vislumbrei o desespero naquelas íris verdes, mas ela logo tratou de ocultá-lo, forçando um sorriso corajoso.

— Não. Continuamos apenas com a dona Lila. Mas vamos ter fé. Talvez a página no Facebook que você fez traga resultado... — Então sua voz se animou. — Tenho uma coisa que vai te alegrar. Eu pressenti que você ia precisar de um agradinho.

Enfiando a mão no bolso do avental, ela retirou de lá um estojo de crayons e o aninhou sobre minhas coxas.

— Mãe! Você não devia ter comprado isso. Estamos cortando tudo.

— Exceto os sonhos das minhas filhas. — Ela tocou meu queixo delicadamente. — E, se não posso comprar meia dúzia de lápis de cor pra minha filha, de que me adianta estar viva, ora essa!

Mas não eram lápis comuns. Eram crayons profissionais, e aquela meia dúzia custava o equivalente à nossa conta de água. Diante da nossa atual situação financeira, aquilo era um gasto e tanto.

Ouvimos passos no alto da escada e nos viramos. Gayle, estonteante em uma saia longa branca e um top curto lilás — o meu top, a propósito — que deixava um pouco da pele da barriga à mostra, me examinou por um instante antes de gemer.

— De novo, Michelle?

— Bandeja descontrolada. — Eu me encolhi.

— Senhor! Naquele restaurante fino! O Anthony te deu uma carta de recomendação?

— Ah, sim! — Abanei a mão. — E também me deu um lote de ações na bolsa de valores, um carro zero e dois cachorros.

— Eu só acho que não custava nada pra ele. — Ela revirou os olhos, descendo os degraus.

Mas custava sim. Mais ou menos uns dois mil reais, pelo reparo daquele lustre.

— Não vai jantar com a gente hoje, Le? — Mamãe se levantou.

— Eu tenho um encontro, mãe.

Aquilo imediatamente capturou a atenção de dona Madeline Watson. Não que mamãe fosse casamenteira. Longe disso. O problema era Gayle, que se apaixonava com a mesma facilidade com que eu perdia empregos. Ela dizia que não podia evitar. Tinha Vênus em escorpião, só Deus sabia o que isso significava.

— Eu conheço? — mamãe começou a interrogar. — É da faculdade? É de boa família?

— Acho que é. — Halsey nos alcançou e se acomodou no lugar antes ocupado por mamãe. — Ele faz química, tem um senso de humor ótimo. O pai é arquiteto e a mãe, dentista. Ele é um gato. E tem um melhor amigo que considera um irmão, solteiro. — Ergueu as sobrancelhas, cutucando minha barriga com o cotovelo.

— Ah, é! Porque um namorado é exatamente o que eu preciso agora... — ironizei.

Gayle sempre me ajudava agendando entrevistas de emprego e escolhendo as roupas que eu usaria para causar boa impressão, e eu era muito grata. Mas ela também tentava marcar encontros para mim com amigos dos amigos de seus amigos. E isso era um pesadelo. Se existia algo em que eu era ainda pior do que manter um emprego, era manter um namorado. 

— Não existe nada ruim o bastante que não possa piorar. É o que nossa tia diz — ela brincou.

— Isso é verdade — mamãe concordou, ajeitando uma das ondas de sua caçula. — Não volte muito tarde, Gayle. — E, se virando para mim: — Tome um banho relaxante, Michelle. Vou preparar o seu prato predileto pra te animar.

— Não fica tão deprimida. — Gayle me cutucou com o ombro assim que mamãe voltou para a cozinha. — Aquela espelunca não servia pra você. E sabe de uma coisa? Estou cada vez mais convencida de que todas essas demissões têm um significado.

— Que eu não sei fazer nada direito, por exemplo?

Ela fez um gesto depreciativo com a mão. As pulseiras de contas em seu pulso reluziram.

— Além disso. Talvez seja o destino dizendo que ainda não é isso, MJ.

Lutei para não gemer. Era a cara dela dizer aquilo. Ou então que as fadinhas que regiam meu destino tinham ficado sem purpurina no potinho da sorte.

— Então não fica tão preocupada, tá? Plutão não está mais retrógrado — prosseguiu, e eu me limitei a olhar para ela, esperando que aquilo fizesse algum sentido. — Alguma coisa boa finalmente vai acontecer — explicou, um tanto impaciente. — E só mais um semestre e eu termino a faculdade de fotografia. Aí, com um pouco de sorte, vou descobrir um jeito de pagar o bacharelado na New York Film Academy. Vai começar a pipocar trabalho, nós vamos ter dinheiro e a mamãe e você não vão mais precisar trabalhar. Você vai finalmente poder se concentrar cem por cento na sua faculdade, Michelle. Vou dar um jeito em tudo. Só preciso passar nas provas finais.

Abri um sorriso.

— Por isso você precisa se focar nos estudos e deixar o restante pra mim, está bem? Deve ser como você disse, Le. Eu só não descobri ainda no que eu sou boa.

— Mas eu não disse isso. — Ela brincou com uma bolinha da pulseira. — Acho que descobriu, sim. Só tem medo de ir atrás do seu sonho. Aqueles desenhos são de outro mundo, Michelle.

Eu não teria usado uma expressão melhor. Meus desenhos eram mesmo de outro mundo. Um mundo que não existia fora dos meus sonhos.

— São só uns rabiscos imprecisos — me esquivei.

— Muita gente chamaria de arte. — Ela beliscou minha cintura e ficou de pé. — Tem certeza que não quer que eu marque com o amigo do Eugene? Ele não parece muito inteligente, mas é um gato, a cara do Andrew Garfield.

— Tô legal.

Cruzando os braços, ela me examinou com atenção, os olhos escuros cintilando com diversão.

— Sabe que uma hora dessas você vai ter que sair com alguém de verdade e parar de sonhar com os caras que você supõe ser o seu herói favorito, né? 

— Eu não estava pensando neles. — E então compreendi o que ela tinha dito e fiquei vermelha. — E ele não é o meu herói favorito! 

Eu não tinha herói favorito!, disse para mim mesma.

Bom, mais ou menos. Não querer sair com ninguém não tinha nada a ver com os meus sonhos, mas tinha tudo a ver com meus encontros recentes, também conhecidos por “catástrofes testemunhadas por caras legais/bonitos/gostosos que nunca mais ligam”. Desisti de vez depois do último. O rapaz tinha sido legal, me levou a um jogo de futebol e tudo ia bem até que eu decidi tomar o refrigerante. Não vi que uma abelha havia caído no meu copo e engoli. Acabei tomando uma picada na garganta e passando mal. E, quando digo passar mal, quero dizer vomitar dentro do carro que ele tinha acabado de comprar, enquanto o pobre me levava para o hospital.

Minha irmã deu risada, guinchando baixinho, o que a fez parecer um porquinho-da-índia.

— Você está sempre pensando neles, Michelle. — Inesperadamente ela ficou séria, e isso devia ter me preparado para o que viria a seguir. — E tá tudo bem ter uma suposição e fantasia, desde que isso não atrapalhe a vida real, por mais que heróis sejam reais no fim das contas. Ainda sonho em me casar com o "amigo da vizinhança". 

— Ok! — Eu me levantei. — Hora da irmã chata se mandar.

— Você sabe que eu tenho razão! — gritou às minhas costas.

— Bom encontro! — Acenei, subindo os degraus.

Já no segundo andar, sorri ao passar em frente ao quarto de dona Lila e ouvir Julio Iglesias cantando no último volume. A senhora de oitenta e três anos era louca pelo espanhol tanto quanto por maquiagem.

Cheguei ao cômodo no final do corredor, que até o começo do ano anterior Gayle e eu dividíamos. Mas as roupas dela ameaçaram nos sufocar, então ela se mudou para um dos cômodos vagos, só até um hóspede aparecer. E nunca mais voltou. Meu quarto parecia ainda mais rudimentar naquela noite, com a cama de casal, o armário sem uma das portas e uma mesa redonda fazendo as vezes de criado-mudo. Os melhores móveis estavam nos quartos para locação. A escassez de mobília parecia combinar com o restante da minha vida.

Para acalmar minha mente agitada e meu orgulho ferido, peguei o caderno de capa dura dentro da bolsa, o estojo que acabara de ganhar e me joguei na cama. O grafite começou a deslizar aleatoriamente pelo papel. Isso sempre me ajudava a pensar. 

Certo, eu podia tentar um novo empréstimo, mesmo que já estivéssemos enroladas até o pescoço com a hipoteca. Mas o que iríamos fazer agora? Como pagaríamos a hipoteca se apenas um quarto estava ocupado?

Ainda estar no segundo período e não ter uma formação acadêmica sempre me atrapalhava para conseguir uma colocação com um salário razoável, mas eu jamais diria isso em voz alta. Não queria preocupar a mamãe e feri-la ao dizer que trancar minha faculdade no segundo período me incomodava muito. Eu voltaria, e voltaria no melhor momento, jurei. Teria forças para conseguir, por mais que o tempo e hora tem sido muito escasso na minha vida trágica.

Sem conseguir pensar em nada, parei de rabiscar e analisei o que havia desenhando. E gemi.

— Saco.

Lá estavam aqueles olhos castanhos brilhantes me observando outra vez, os malares altos, o nariz retilíneo, o maxilar delineado. O cabelo, em todos os tons de marrom, parecia balançar conforme a paisagem ao esboço de prédios se construía, enquanto suas mãos seguravam a máscara pedurada. O uniforme azul e vermelho era o mesmo que era exibido nos jornais, especialmente o que minha mãe viu de manhã. 

O amigo da vizinhança, o Homem-Aranha. Nunca tinha o visto de perto, sem aquela máscara, somente nos meus sonhos. E não um, mas três deles. Três, sendo dois muito intensos e repetitivos na minha cabeça. 

Gayle estava certa. Eu não conseguia tirá-los da mente nos últimos meses. Claro que sonhar com eles quase todas as noites nesse ano não contribuía em nada.

Eu não sabia por que isso acontecia. Não entendia por que passei a sonhar com pessoas que não existiam e que certamente não seriam o Homem-Aranha na vida real. Eu nunca tinha visto o rosto daquele herói. Como minha cabeça foi tratar de imaginar perfeitinho, três rostos distintos dele? E não era sempre o mesmo sonho, como uma obsessão ou coisa assim. Era mais como um seriado que apenas eu assistia. Às vezes havia reprises, mas nunca cheguei ao episódio final. Ao menos eu achava que não.

Nesses sonhos, eu não era exatamente eu, Michelle Jones, mas uma jovem encrencada até a medula.

Bom, tecnicamente estar prestes a se espatifar no chão não era uma vida dos sonhos, mas pelo menos eu não tinha que fugir de ninguém, a menos que aquele crítico gastronômico viesse atrás de mim com a conta do alfaiate... De qualquer forma, alguns desses sonhos me faziam acordar com a cara toda quente e uma estranha, porém familiar, sensação de perda. Por mais que eu tivesse visto de relance três heróis com a mesma nomenclatura, eram dois que perpetuavam mais na minha mente, parecendo duelar por controle. Havia o mais alto e o mais baixo, que tinha alguns detalhes dourados no uniforme. Esse parecia ser mais presente, o causador da minha pulsação acelerada. Já o outro... O outro era alto, tão alto quanto eu, e sempre sondava minha cabeça com o mesmo gesto heroico do primeiro sonho: o meu resgate. Ele me salvou do abismo. 

Esse em específico também não me saía da cabeça, mesmo quando eu não estava pensando nele. Nos últimos tempos eles estavam me atrapalhando um bocado. Sempre que eu tentava retratar alguma coisa, uma paisagem, um cachorro com a cara engraçada que eu tinha visto na rua, acabava me perdendo nos rabiscos e, quando examinava o resultado final, lá estava o rosto de um deles estampado no papel. Era irritante.

Eu parecia um desses fãs malucos que ele tem...

Assim como também era um aborrecimento constatar que o romance e a intensidade que eu vivia na minha imaginação parecia mais real que qualquer outro que eu tivesse vivido de fato. Embora eu jamais fosse confessar em voz alta, ir para a cama havia se tornado meu momento preferido do dia. Eu ansiava por isso, voltar para o meu mundo de faz de conta, onde tudo se encaixava e eu tinha mais facilidade na minha vida. Onde eu me encontrava. 

É. Eu sei. Eu estava apaixonada por uns sonhos.

E estava apaixonada e dividida por rostos que não existiam. 

Então, a verdade era esta: eu estava desempregada, prestes a ver minha família ser jogada na rua e apaixonada por uma fantasia. Argh.

Muito bem, Michelle.

Injuriada com minha própria estupidez, fechei o caderno com um movimento brusco e fui para o banheiro. Enquanto ligava o chuveiro e esperava o velho aquecedor acordar e fazer sua parte, me peguei desejando que minha irmã estivesse certa dessa vez. Que algo bom finalmente fosse acontecer em minha vida.

 

 


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Notas finais do capítulo

Glossário:

*Madelaline Watson e Gayle Watson são respectivamente mãe e irmã de Mary jane Watson nos quadrinhos. Apareceram pela primeira vez em "The Amazing Spider-Man #21".

Só com essa explicação, a cabeça chega explode em teorias, não é? Podem me encher delas também!

Até o próximo capítulo!



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