Abruptos Egoísmos escrita por Minerva Lestrange


Capítulo 1
Abruptos Egoísmos




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Havia acabado de entrar na McCormick Street quando a explosão vinda do luxuoso Centro de Convenções chamou atenção dos transeuntes ao redor, que realmente, se voltaram para o fim da rua. Imediatamente sentiu o celular vibrar em alerta e, em meio as pessoas correndo na calçada, esticou o braço e, no instante, se encontrava no uniforme do Flash correndo velozmente na direção do local.

— Barry. – A voz de Cisco soou no comunicador à direita. – Parece ser um grupo de terroristas domésticos. Estamos captando imagens de pessoas filmando do lado de dentro, estão fortemente armados e fazendo reféns.

— São metahumanos?

Estacou na frente da faixada destroçada do maior centro de eventos de Central City, analisando o cenário que, naquele instante, já se encontrava completamente vazio. Deveriam ter levado todos para dentro.

— Têm os rostos mascarados, não consegui nenhuma identificação. Espere... – Ouviu um rápido diálogo do outro lado enquanto passava pelo hall e seguia com velocidade pela escada de serviço, uma vez que o elevador fora completamente destruído. Subindo com rapidez, imaginou como a polícia poderia começar a lidar com aquilo, caso os terroristas não tivessem poderes. – Os trajes deles impedem que eu consiga qualquer assinatura biológica ou de matéria escura... Que audácia!

Entretanto, o tom indignado de Cisco logo se perdeu no ruído alto de uma saraivada de tiros e gritos apavorados que pareceu ter preenchido toda aquela ala. Barry seguiu na direção que indicava o auditório, se deparando com a porta trancada pelo lado de dentro.

— Cisco, preciso de imagens da sala de conferências. – Olhou ao redor procurando uma forma de entrar sem deixar a situação ainda mais caótica, considerando o número de reféns e o fato de não saberem nada sobre os possíveis terroristas. – Que evento estava programado para hoje?

— Um Congresso de Medicina.

No instante seguinte, o capacete projetou perante seus olhos, numa viseira completamente tecnológica, as imagens das câmeras de segurança da sala de conferências, onde a maioria dos presentes de jaleco se dirigiam com pressa ao palco, se amontoando sem ordem aparente enquanto seis indivíduos, os quais não conseguia identificar por gênero devido ao macacão genérico marcado por braçadeiras verdes escoltavam as pessoas enquanto fortemente armados com tecnologia militar. 

— Cisco, identifique os presentes e os palestrantes, isso não pode ser um simples ataque doméstico. – Desligou a projeção com o deslizar de sua digital pela lateral do capacete. – Enquanto isso, vou entrar.

— Aviso quando encontrar algo relevante.   

— Okay.

Ainda que não tivesse os dados sobre os sequestradores, decidiu invadir a sala de conferências e tentar desarmá-los da maneira mais rápida possível para evitar maiores danos a qualquer um do grupo de reféns em jaleco que mantinham.

Consciente de que havia dois invasores posicionados de frente para a porta, deu a volta do prédio e encontrou uma entrada lateral, que ficava mais próxima ao palco, e seguiu por ali, sendo imediatamente engolido pelo ambiente de tensão instaurado entre as pessoas empurrando umas às outras para chegar ao palco antes que houvessem mais ameaças além daquelas gritadas pelos indivíduos armados conduzindo a todos.

Sua primeira ação foi desarmar e desacordar os invasores, que se encontravam junto as portas de entrada, conseguindo derrubá-los por trás e seguindo em frente sem maiores percalços. Decidiu começar, porém, com os que se encontravam mais no centro do auditório, ameaçando e empurrando as pessoas para apressá-las. Se estavam com pressa, Barry tinha mais ainda.

— Barry, há algo que deve saber. – Ao que parecia, os trajes não escondiam superpoderes, pois em alta velocidade, alcançou o cano de uma metralhadora e desequilibrou mais um dos uniformizados com facilidade. Porém, antes que Cisco continuasse em seu comunicador, a dor o pegou de surpresa, paralisando-o na velocidade comum devido ao ataque repentino. Assustado, olhou ao redor tentando compreender de onde surgira a bala e viu, nos camarotes do auditório o momento em que um rosto mascarado se afastou da mira e o olhou como que para se certificar de que realmente acertara. – Você acabou de ser baleado?!

— Uhum...

Levou uma das mãos ao lado direito do abdome, incapaz de fugir da dor insuportável e dilacerante do tiro. Há muito não experimentava uma dor tão insuportável quanto ela, pois sem esforço era mais rápido que qualquer projétil e se desviava com facilidade.

— Como isso é possível?

Dessa vez, entretanto, a bala parecia ter sido acelerada, como se pertencesse ao mesmo espaço-tempo que Barry enquanto corria, sendo, por isso, capaz de encontrá-lo como a uma pessoa comum. Imaginava que o atirador tivesse alguma habilidade metahumana nesse sentido, mas sua luva já se encontrava completamente suja de sangue quando sentiu os joelhos fraquejarem e precisou se apoiar numa das cadeiras para se manter de pé.

— O que eu preciso saber?

— Caitlin fez check-in nessa convenção às... 08h42min da manhã.

Barry estacou antes de se colocar pronto para a corrida, afinal não podia continuar ali após o tiro, pois nem sabia se havia atingido qualquer órgão vital, embora sangue demais parecesse escorrer entre seus dedos. Se voltou ao grupo de reféns à direita, atento para os rostos assustados, tentando encontrar as feições conhecidas da doutora, mas no meio da desordem isso parecia complicado.

— Ela provavelmente está aí, nessa sala, você tem que...

Outra explosão, do lado de fora dessa vez, fez as estruturas do Centro de Convenções tremerem e as pessoas do lado de dentro gritarem.

— Flash!

Conseguiu se concentrar na massa de cabelos castanhos que tentava lutar contra o fluxo de pessoas subindo ao palco. Notando que agora mantinham contato visual, o velocista fez um sinal de cabeça para que ela não se aproximasse, mas Caitlin apenas empurrou algumas pessoas para o lado e continuou a seguir na direção dele.

— Eu a encontrei.

No mesmo instante, todavia, seus olhos captaram um movimento à esquerda, de um dos indivíduos de macacão que, provavelmente notara o movimento atípico e agora se dirigia até ela já colocando-a sob a mira da metralhadora.

— Barry, a bala resvalou em seu fígado e se alojou pouco antes da vesícula. – Informou Cisco, já meio desesperado. – Você tem que sair daí, agora.

Ofegante, Barry voltou a olhar para o local onde o atirador ainda se encontrava, agora voltando a trabalhar por trás da mira enquanto ajeitava a posição. Toda a movimentação aconteceu num intervalo de poucos segundos assim como a tentativa frustrada da doutora de se desvencilhar dos outros reféns para chegar até ele e a decisão de correr até ela antes que um dos atiradores resolvesse atacá-la - ou a ambos.

Em alta velocidade, tentou ignorar a dor só por um instante e correu se desviando das pessoas até agarrá-la pela cintura e chegar sem maiores percalços a porta lateral por onde havia entrado, a qual fora atingida por uma saraivada de tiros assim que passaram. Observou Caitlin olhar assustada para o local, mas, felizmente, a porta era feita de um material ferroso resistente e apenas puderam ver os relevos formados na superfície por cada bala do outro lado.

— Como conseguiram te acertar com uma bala? 

Evitando um urro de dor, pois poderia apostar que o projétil não era dos menores, apoiou uma das mãos na parede e outra no ferimento já sentindo o suor escorrendo por sua têmpora. Caitlin se aproximou como se ainda fizesse isso todos os dias e, pegando o lenço que utilizava ao redor do pescoço, sob o jaleco, o embolou para pressionar o buraco em seu lugar.

— Eu... Eu não sei.

— Precisamos sair daqui.

Olhando preocupada ao redor, Caitlin o rodeou com o braço e instintivamente apenas a seguiu em direção a outra porta. De fato, estavam realmente expostos naquele corredor que, embora vazio, ainda dava acesso à principal sala de conferências, onde o ataque acontecia.

Com dificuldade, a acompanhou até o fim do corredor e entraram na primeira porta destrancada, que se revelou uma sala de reuniões espaçosa, com uma mesa de madeira ao centro rodeada por 20 cadeiras e uma área de descanso. Em sua mente, ainda se perguntava o que Caitlin fazia ali depois de todo aquele tempo e por que não contara a ninguém que estava na cidade, mas definitivamente não esperava qualquer contato dela considerando os últimos anos.

Centrou-se na dor ardente e pulsante em seu abdômen apenas seguindo as indicações da doutora, que o ajudou a se acomodar no sofá de couro.

— Aqui. – Evitando um gemido dolorido, Barry alcançou na lateral do cinto amarelo um dispositivo projetado por Cisco que reforçava a fechadura e era capaz de obstruir a entrada por algum tempo, a não ser que estivessem mais fortemente armados do que pensava. – Tem que fixar ao lado da maçaneta.

Caitlin imediatamente fez o que disse, pressionando o botão ao centro do dispositivo arredondado e se afastando antes de ver as quatro hastes de metal se esgueirando pela porta até a parede.

— Cisco tem alguma informação sobre a bala?

Ela perguntou avidamente, colocando a bolsa profissional que carregava nos ombros no chão sem cuidado algum e substituindo a mão dele, que ainda segurava o lenço pressionado contra o local onde a bala havia entrado. Fechou os olhos, xingando mentalmente que não houvesse saído, o que dificultava tudo, inclusive a cura acelerada.

— Pega o comunicador.

Percebendo a dificuldade de Barry em se manter conversando, Caitlin o analisou rapidamente antes de se aproximar para desativar o capacete, que desapareceu em um segundo deixando seu rosto livre. Então, ela estacou por um instante, como que estranhando a dinâmica que há muito não compartilhavam.

— Oi.

O tom da castanha foi suave em detrimento da situação e Barry não conseguiu evitar o sorriso em retorno ao dela, pequeno nos lábios bem contornados de vermelho, mas também nos olhos. Deus, sentia tanta falta de Caitlin que, às vezes, era insuportável lembrar de como um dia haviam sido. Possuíam um modus operandi, uma confiança inabalável, uma rotina que ultrapassava quem chegava e partia do laboratório, pois ela sempre estava ali... Até que partiu também.

— Ei.

Engoliu em seco, por um instante quase se distraindo da dor até que a doutora estendeu a mão para tirar o comunicador de seu ouvido e colocar no dela.

— Cisco, é Caitlin. – Ela sorriu um pouco mais enquanto percorria o rosto dele com os olhos, apenas ouvindo o amigo do outro lado. – Podemos conversar sobre isso depois. Preciso que me passe todas as informações que tem sobre o ferimento de Barry.

A observou menear a cabeça, como se Cisco pudesse ver do outro lado e, logo, ela emendou numa discussão sobre um procedimento rápido para fazer sem que precisassem ir até o laboratório. Puxando a mão de Barry para colocar sobre o lenço e pressionar o ferimento, Caitlin se ajoelhou e abriu a bolsa com agilidade, posicionando-a aberta logo ao lado sofá onde deitava.

— Ainda carrega instrumentos médicos na sua bolsa?

Murmurou, conseguindo virar o rosto para ver apenas uma parte de tudo que estava lá dentro. Era realmente uma bolsa repleta de equipamentos de primeiros socorros, mas também de ferramentas mais elaboradas, assim como algumas pinças, agulhas, tesouras e potes cheios de líquidos que não conseguiria identificar naquele momento.

— São para emergências. – Ela deu de ombros e alcançou um par de luvas. – Cisco, me diga exatamente...

Então, ela fez uma careta e retirou com pressa o comunicador, apertando o ouvido esquerdo em meio a um grunhido mal humorado.

— O que houve? – Segurou o braço dela, preocupado.

— Provavelmente cortaram a comunicação externa com o prédio usando um bloqueador de sinal. – Ela respirou fundo e o olhou resignadamente, mas decidida. – Será você e eu.

— O quê?! – Ela não estava pensando em...?

— Vou remover o projétil. – Caitlin afirmou com praticidade e certeza, ainda de joelhos, alcançando uma agulha e um dos vidrinhos dispostos na bolsa.

— Isso... Não é necessário.

Afirmou incerto, pois, embora fosse ela ali, não sabia se queria passar por uma minicirurgia num local completamente sujo e sem a segurança de todos os aparelhos de alta tecnologia de que dispunha no laboratório. Na verdade, duvidava que a própria doutora os submetesse a isso anos atrás.

— Barry, o seu metabolismo já está agindo para curar o ferimento. – Ela respirou fundo, explicando pacientemente num resquício da época em que trabalhava no S.T.A.R. Labs. Porém, estava muito diferente agora, não só nos cabelos mais naturais e menos escovados, como também nas poucas linhas de expressão ao redor dos olhos e boca. – Não podemos deixar a cura agir com o projétil dentro do seu corpo ou vai precisar de cirurgia para a retirada. Desse jeito... É mais rápido e menos dolorido, eu garanto.

Barry suspirou, consciente de que qualquer coisa que ela dissesse o convenceria, afinal de contas era Caitlin Snow e ela nunca vinha com qualquer argumento que não merecesse ao menos ser ouvido. Além disso, aquela era a área dela, podia ver a confiança escorrendo de cada sílaba e até mesmo da postura e tom, que se tornaram ainda mais profissionais com o passar dos anos.

— Tudo bem... – Murmurou, sem conseguir conter a onda de sono que o atingiu, provavelmente devido à pressão baixando cada vez mais.

— Parece amador, eu sei... – A mão dela moldou seu rosto, cobrindo a têmpora para chamar sua atenção, então abriu os olhos para vê-la um pouco mais perto, se assomando sobre ele ainda ajoelhada ao lado do sofá, felizmente baixo. – Mas eu cuido de você, okay?

O sorriso dela era tipicamente consolador, mas tão... Caitlin que não conseguiu não concordar com um simples aceno de cabeça. Além disso, a palma quente parecia acolhedora demais para que deliberadamente negasse qualquer coisa a ela. Naquele momento e por todos os últimos quatro anos sentia que seria capaz de aceitar qualquer coisa que viesse de Caitlin.

— Okay.

Sussurrou sonolento, vendo-a se afastar novamente e de forma hábil voltando a preparar seus materiais.

— A anestesia que carrego comigo não é própria para metahumanos com metabolismos acelerados, então terei cerca de... – A viu abrir rapidamente a embalagem de um cateter e uma nova agulha, puxando o líquido do vidro transparente com habilidade antes de se voltar a ele. – Quantos quilos está pesando? É melhor abaixar o uniforme.

— 82.

Já não conseguia mais se mover com tanta rapidez quanto gostaria, pois a cura acelerada combinada ao objeto estranho dentro de seu corpo o levava a um estado completamente atípico, onde seu metabolismo provavelmente não saberia como agir. Assim, se virou no sofá e deixou que ela puxasse o zíper embutido de seu uniforme, gemendo de dor quando o ajudou a retirar as mangas e, finalmente, abaixar o material até a linha da cintura.

— Cisco me mataria se eu picotasse seu uniforme, sinto muito. – Ela explicou em tom baixo, tateando suas costas para encontrar o lugar certo da anestesia epidural. – Então... Considerando seu peso e a velocidade de cura comum do seu corpo, terei cerca de... Três minutos para retirar a bala do seu corpo e conter o sangramento sem fazê-lo sofrer muito.

— Que divertido... – Murmurou detestando cada segundo da agulha perfurando suas costas em meio a uma careta. – Preciso contar de 10 a 1?

— Não, você não vai dormir.

Caitlin ainda esperou alguns segundos antes de virá-lo com cuidado novamente de costas, enquanto Barry sentia a dor do projétil instalado em seu abdômen sumir como se houvesse sido simplesmente retirada. Então, ela começou a trabalhar ainda mais agilmente, colocando um medidor digital de pressão arterial em seu pulso, um oxímetro em seu dedo e retirando o lenço completamente ensanguentando antes de substituir com gases, completamente concentrada na contagem correta.

Piscou pesadamente, sentindo o efeito da anestesia se espalhar pesadamente por seu corpo, completamente concentrado no perfil da doutora ajoelhada ao lado do sofá nem minimamente preocupado com a bala.

Sabia que Caitlin gostava de deixar os cabelos presos enquanto fazia qualquer procedimento cirúrgico, mas notou que ela não havia sequer se lembrado disso dessa vez. Sempre havia gostado de observar sua concentração enquanto trabalhava e, embora fizesse tanto tempo que não a via realmente como agindo, algumas coisas não mudaram: o repuxar no canto direito dos lábios ainda estava lá, assim como o leve franzir de cenho natural entre as sobrancelhas.

As mãos dela trabalhavam rápida e graciosamente, como sempre, com as luvas já cheias de sangue alcançando de maneira automática uma pinça que, tinha certeza, o deixaria dolorido assim que o efeito da anestesia acabasse.

— Cisco teve tempo de me dar as instruções para localizar onde está a bala.

Caitlin murmurou usando a pinça para tatear com cuidado, pressionando seu abdômen com uma das mãos com a mão esquerda para tentar sentir algo. Apesar de estar, obviamente, correndo contra o tempo, parecia confiante na própria calma. Barry, por outro lado, estava inteiramente estirado no sofá, mas podia ver parte da região das costelas completamente ensanguentada.

— Argh, eu odeio sangue. – Ela soltou um riso baixo quando Barry torceu o nariz, infantilmente.

— Interessante, pensei que fosse cientista forense...

— Odeio contato com sangue. – Respirou fundo, como se esperasse que ela terminasse uma mensagem, focando os olhos no teto alto e genérico da sala de reuniões de maneira pensativa. – Especialmente o meu.

Conseguia ouvir o movimento lá fora ainda, mas sabia que havia se passado pouquíssimo tempo e, provavelmente, a polícia também já começara a lidar com aquilo, seja lá do que se tratasse aquele ataque. A paz dentro daquele cômodo, mesmo na situação desfavorável em que se encontrava, parecia mais atrativa do que qualquer coisa lá fora.

— Encontrei. – Voltou a olhá-la, empurrando mais algumas gases no ferimento para conter o sangramento, que já não parecia ser muito àquela altura, pois qualquer possível hemorragia já havia sido contida por seu próprio metabolismo, o que ajudava no procedimento em si e a doutora sabia disso. Haviam passado por tantos episódios parecidos que sequer se lembrava. Engoliu em seco, repentinamente com sede, e Caitlin desviou os olhos para checar sua pressão arterial. – Não consigo pinçar, com os dedos posso fazer mais rápido.

Barry não emitiu qualquer opinião dessa vez, consciente de que ela precisava de concentração. Caitlin retirou alguns gases, descartando-os no chão sem cuidado e, apertando os lábios em tensão, lentamente começou a refazer o caminho da pinça utilizando dois dedos. Agora, notou, a doutora parecia mais cuidadosa, embora mais certa e, antes, que fizesse seu cérebro pensar em algo para dizer, ela levantou a mão e ajeitou a postura, mostrando o projétil longo e típico de metralhadoras entre os dedos enluvados sujos de sangue.

— Isso é uma... Inconveniência.

— E com... – Ela conferiu o relógio de pulso de couro no próprio pulso e soltou um riso quase arrogante. – 30 segundos de folga.

Ela apenas meneou a cabeça e colocou a bala entre seus pertences, ajeitando a postura para terminar o trabalho, retirando todos os gases e pegando os novos e últimos exemplares embalados para começar a fechar o ferimento.

— Cait... – Sua língua ainda estava completamente mole pela sensação dormente da anestesia. Gostava mais daquela sensação de calma e inércia do que jamais admitiria, mas gostava ainda mais do olhar atencioso e compreensivo, que estava sempre naquele rosto. Tocou a lateral do jaleco dela, na altura do quadril esquerdo, de maneira incerta, porque qualquer contato que não fosse aquele da cirurgia parecia necessário tanto tempo fazia que não tinha nada dela. – Eu realmente sinto sua falta.  

A viu hesitar minimamente, terminando de fixar o esparadrapo numa simples atadura, uma vez que qualquer sutura ou ponto seria inútil em relação ao metabolismo dele, como haviam aprendido anos antes. Então, ela o forçou um sorriso em meio a um menear de cabeça.

— Você está dopado, Barry. – Ele sorriu piscando lentamente, enquanto Caitlin terminava de limpar todos os locais por onde o sangue havia escorrido em seu abdômen.

— Eu nunca deixei de sentir sua falta. Em todos esses anos.

Afirmou mais seriamente, realmente fechando os dedos ao redor do tecido do jaleco dela. Apesar da situação quase preocupante de apenas minutos antes, não queria que o momento terminasse e ela se afastasse, como sabia que faria, pois tudo o que tivera dela em mais de quatro anos havia sido aqueles breves momentos naquela sala em que, sim, estava dopado e, antes disso, minado pela dor.

Da forma que via, parecia cruel e irônico que estivessem resumidos a apenas isso, pois a falta que ela fazia era tão latente e dolorida que, às vezes, se pegava sorrindo em amargor para os objetos daquela caixa de madeira repleta de lembranças que nunca o levariam a lugar algum, muito menos a ela.

Agora, todavia, queria sentar com ela, talvez tomar um simples café sem a aflição da emergência, prolongar o momento e perguntar tudo o que gostaria, tudo o que ficara suspenso no tempo por todos aqueles anos. Se perguntava se essa impressão de que algo estava ali, pairando entre eles era apenas dele ou se Caitlin também o notava, inominável e inevitavelmente alimentando pequenos momentos perdidos na grande distância que mantinham.

Deus, ainda pensava naquele beijo há tempos atrás e naquilo que pareceu mais uma despedida conjugada a um pedido de desculpas torto e quase sem razão e, também, em como conhecia a exata textura dos cabelos dela; algumas manias que, felizmente, não foram deixadas de lado com o tempo e o perfume suave que sempre emanava dela, como notou na última vez em que se viram rapidamente, numa escala de aeroporto qualquer quando acompanhava Nora a um passeio da escola a Nova York.

Caitlin pareceu ter engolido em seco antes de abaixar os olhos para a bagunça de lixo hospitalar resultante do procedimento rápido, complementada pelo par de luvas avermelhadas que retirava com calma. Então, ela finalmente voltou a encará-lo num suspiro cansado, o brilho vencido nos olhos castanhos ao levar a mão para contornar seu rosto, incertamente testando o contato antes de pentear com delicadeza os fios de seu cabelo.

— Não é justo quando você me olha dessa maneira.

— Isso não começou de maneira justa. Me deixou pensando em você por dez anos. – Murmurou de volta apenas aproveitando a carícia, no que Caitlin sorriu brevemente.

— Bem, você sabe mesmo como impressionar uma garota.

Ela constatou como que para si mesma e Barry levou os dedos às pontas dos fios compridos, escorregando entre os dois de forma natural e macia.

— O que veio fazer em Central City?

Perguntou, consciente de que precisava esperar o metabolismo acelerado terminar de agir em seu corpo para a cura completa do ferimento, mas também porque queria saber tudo dela, pois todas as informações que vinham de Cisco já pareciam insuficientes.

— Minha mãe precisava de ajuda nas Indústrias Tannhauser. – Caitlin recolheu as mãos com um suspiro, como que voltando para a realidade daquele edifício possivelmente rendido e de quem se tornaram depois de tanto tempo. – E eu aproveitei a oportunidade para participar do Congresso. Sabe, sou apenas uma médica geneticista agora...

Caitlin havia dado continuidade em sua carreira na Alemanha e, pelo que acompanhava em periódicos científicos, o episódio da explosão do acelerador de partículas fora deixado para trás. Ela era um nome renomado em seu campo e tinha orgulho da mulher que se tornara para além do Laboratório, do Flash e... Dele próprio.

Depois de tanto tempo, conseguia enxergar o passado sob uma visão menos magoada quanto à decisão tomada por ela. Na época, Barry tinha a impressão de ter sido deixado para trás, mas agora entendia como ela não via possibilidade de expansão em Central nem mesmo relacionada às empresas da família. Caitlin precisava de um caminho só dela, sem Barry ao seu lado ou o nome famoso da mãe como suporte e, agora, a admirava por ter tido a coragem desse passo necessário.

Nada disso, porém, diminuía a angústia de não a ter ali. Apenas a figura dela, debruçada sobre ele, completamente concentrada em consertá-lo era tão familiar que Barry sabia que poderia apenas se desligar do que ocorria ao redor e confiar na doutora, como se o tempo não tivesse escorrido de ambos em direções distintas.

— Cisco contou o que aconteceu. Sobre o divórcio.

Tateou quase temerosamente, observando cada reação nas feições delicadas. As mãos da mulher tremeram quando fechou a bolsa de maneira determinada e Caitlin respirou fundo, voltando a encará-lo de forma analisadora, quase friamente distante – como gostava de parecer no início.

— Acho que casamentos não são muito a ‘minha coisa’.

Barry sorriu brevemente, de repente notando o efeito da anestesia começar a se esvair de seu corpo para dar espaço à velocidade plena e, apesar disso, soava como se seu tempo estivesse acabando. Engoliu em seco, voltando a tatear os cabelos dela, como se um dia houvesse ganhado o privilégio de poder fazer isso, sentindo que estivesse ultrapassando uma linha invisível construída entre eles há muito.

— Porquê não volta para Central City? – A viu tensionar, imediatamente franzindo o cenho ao procurar as palavras certas.

— Meu marido... Não era a única coisa que me mantinha na Alemanha.

— Eu sei, eu sei. Só estou dizendo... – Tratou de começar a se corrigir imediatamente quando ela se incomodou, alcançando o rosto dela incertamente. – Por que não fica, dessa vez?

Caitlin o fitou parecendo demorar processar o que havia dito, os olhos perdidos nos seus por um instante, ignorando o toque na pele dela e o centro de convenções lá fora, até parecer repentinamente chocada.

— Barry...

A observou sorrir um riso nervoso, balançando a cabeça negativamente, como se o que dissesse não fizesse sentido nenhum, apesar de, para ele, soar apenas como um implorar mais do que plausível, apesar de egoísta. Barry nunca deixara de sê-lo, essa era sua maior verdade. Não fosse tão preciosista com seus próprios sentimentos e “autovontades” por tanto tempo veladas, jamais os colocaria naquela situação.

Lá estavam eles, estacados exatamente como no primeiro dia: com Caitlin o consertando enquanto Barry seguia inconsequente numa convicção tão aparentemente fora da realidade que parecia embaraçoso. Porém, com toda a bagagem que tinham, nada mais poderia soar assim como a forma que olhava para ela naquele único instante que tinha.

A essa altura, o efeito da anestesia se fora e a cura acelerada fizera o esperado, agindo agora que o corpo estranho do projétil não se encontrava mais ali. Por isso, começou a se sentar no sofá, chamando a atenção dela novamente para o ferimento, que possivelmente não aparentava sequer cicatriz por baixo do curativo. Ainda ajoelhada, Caitlin automaticamente fez menção de estender as mãos para desprender o esparadrapo, mas Barry a impediu, circundando cada pulso dela com cuidado, mantendo-os para si.

— Eu não sei como é sua vida na Alemanha... E eu quero saber, eu juro. Mas pode ter uma vida tão boa quanto aqui. Você sabe disso.

Caitlin engoliu em seco quando o olhou, como se se perguntasse se estava mesmo falando sério, afinal, horas antes sequer sabia que a doutora estava na cidade, o que considerava... Frustrante, no mínimo. Quando haviam se distanciado tanto? Voltou a contornar o rosto dela com suavidade, centímetros mais baixa por ainda estar no chão, provavelmente de mau jeito, praticamente esperando que fosse interromper o contato e o momento e, simplesmente, deixá-lo ali, num paralelo de como deixara o S.T.A.R. Labs e ele para trás há quase dez anos.

— Barry... – A viu quase sussurrar, então, os olhos firmemente nos dele e as mãos alcançaram seu rosto e barba mal curtos de forma sensível. – As coisas não são tão simples como quer fazer parecer.

— Então, me deixa te ajudar a simplificar só um pouco.

Ela sorriu, abaixando o rosto para esconder o brilho lacrimoso nos olhos. Não sabia o que aquilo poderia significar para a mulher totalmente determinada, que deixara uma vida inteira ali em nome de suas convicções, mas, tão próximos como estavam, apenas se inclinou para apoiar a testa contra a dela, aproveitando a fragrância suave emanando de toda dela, mas principalmente dos fios macios.

Para Barry, o fato de poder ser capaz daquilo tornava a cena surreal, pois Caitlin, por muito tempo, fora apenas uma constante onipresença em sua vida. E não sabia como toda a situação significava para ela, mas tinha certeza que um dia a deixaria saber como seu coração se comprimia em si mesmo em medo, mas também por aquele algo incerto que soava mais e mais opressor a cada vez que colocava os olhos sobre a doutora.  

Contudo, em um meneio de cabeça lento, ela suspirou hesitante contra ele, o nariz contra o dele enquanto os olhos fechados preservavam a sensação de intimidade e de sensibilidade em outros sentidos. Com a respiração contra a sua, alta e descompassada, denotando a expectativa de ambos, Barry já não conseguia sequer raciocinar corretamente. A viu umedecer os lábios, a língua molhada soando tentadora em meio a negativa instável contrastando diretamente com a esperada consistência de Caitlin Snow.

— O que eu estou fazendo?

Ela murmurou roucamente, apoiando a cabeça contra a mão direita dele, encaixada diretamente na curva do pescoço, quente e macia, como se lembrava que era. Barry, porém, não fez questão de responder, pois sua boca colada na dela parecia mais interessante, mais eficaz, menos questionável que qualquer resposta que pudesse fabricar naquele instante. Na verdade, até parecia resposta suficiente.

Caitlin suspirou contra seus lábios encaixados e se endireitou contra ele, tão lentamente quanto a forma como mutuamente estabeleciam um ritmo, os dedos se fechando firmemente ao pé de sua nuca no momento em que suas línguas se encontraram – voltaram a se encontrar -, arrepiando-o por completo. Dessa vez, o suspiro veio de Barry, desfrutando da pele quente do pescoço dela pouco antes de rodeá-la pela cintura sob o jaleco, juntando-a para si e - esperava - sua realidade ao senti-la relaxar cada vez mais a ponto de apoiar os braços em seus ombros despidos enquanto praticamente apoiava todo seu peso nele.

Ofegante, se afastou para encarar o desenho dos lábios vermelhos e molhados e dos olhos brilhantes o mirando, como que numa suspensão pacífica de tempo. Beijar Caitlin era diferente de tudo o que conhecia sobre qualquer mulher, saber que era capaz de ver aquela imagem ao abrir os olhos o fazia quase tremer, tanto interna quanto externamente a julgar pelos dedos completamente entremeados aos fios ondulados e castanhos que sempre o fascinaram.

— Por quê não fica pra valer?

Sussurrou, dessa vez, os lábios colados nos dela numa pressão urgente e necessária, ao menos para Barry, de se manter próximo. Então, Caitlin o beijou novamente, os dedos mais urgentes em sua mandíbula tateando sua barba enquanto apenas apoiava o corpo macio se assomando sobre ele.

O ruído repentinamente alto de algo explodindo há poucos metros de distância os fez recuarem, arfantes e distraídos em si mesmos, ainda que ela houvesse olhado na direção da porta, mordendo os lábios em repentino incômodo e tensão antes de se voltar a ele.

— Você tem que ir salvar a cidade. – Franziu o cenho, tentando compreender o que aquilo significava, pois não havia afastamento ou qualquer resposta concreta, apenas Caitlin ainda ali, contra ele, as mãos descuidadamente bagunçando todo seu cabelo, embora não se importasse nem minimamente. – Nós conversamos depois.

Concordou, então, e se colocou de pé, a mente inteiramente na figura bonita e inalcançável que a mulher pintava à sua frente. A ajudou a se levantar e, em alta velocidade, se vestiu novamente e correu até a janela, com vista para a parte interna no Centro de Convenções, onde, num jardim bem cuidado rodeado pela arquitetura do prédio, um grupo de invasores preparava mais uma explosão, como se procurasse algo escondido no local.

— Não saia daqui, a não ser que seja extremamente necessário.

— Venha me buscar se alguém precisar de ajuda médica. – Caitlin rebateu e Barry voltou até ela rapidamente, sem resistir em rodear o pescoço quente e familiar, aproveitando da textura da pele dela enquanto podia.

— Você não vai sumir dessa vez, não é?

Ela negou com um aceno simples e Barry selou seus lábios o mais rápido que podia, antes de depositar um beijo simples na bochecha dela, o que a fez sorrir como se o considerasse um tolo antes de cruzar os braços e se virar para vê-lo seguir para a saída já sob o manto do herói, embora ainda completamente abalado por tudo o que vinha apenas dela e da possibilidade deles.


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Notas finais do capítulo

Ei!

Mais uma parte de Primária Melancolia, porque, convenhamos, da última vez nossos corações foram destroçados - sim, até o meu. Espero que gostem dessa "reunião", dessa vez com um pouco mais de ação, mas com foco total em Barry e Caitlin. E para quem leu as duas partes, sim, faz dez anos desde a primeira e esse afastamento ME D?“I.

Enfim, me deixe saber nos comentários suas opiniões, embora tudo o que tenha planejado até aqui seja isso. Quem leu a primeira parte sabe que foi um tiro de inspiração meio do nada, que continua retornando pra mim de tempos em tempos. E se não leu, recomendo que o faça pra entrar com a gente nesse eterno sofrimento snowbarry ♥

Até breve!



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