Biscoitos de Gengibre escrita por Clarisse Hugh


Capítulo 1
Biscoitos de Gengibre




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Biscoitos de Gengibre

(e mais algumas canções de Natal)

 

Puta merda!

Ouço meus batimentos cardíacos retumbando em meus ouvidos e é sem saber como minhas pernas me carregaram até ali que tranco a porta do banheiro, escorregando lentamente até estar sentado no tapete, encarando fixamente minhas mãos trêmulas.

A menos que eu esteja oficialmente maluco, Baz acabou de confessar que sente alguma coisa por mim através de uma canção natalina. E, contrariando a lógica de anos consecutivos declarando-o como minha nêmesis, eu gostei pra caralho dessa informação. Tanto que, quando esse mesmo colega de quarto me convidou para passar as festas com ele e sua família em Hampshire, eu não só aceitei como tenho praticamente certeza de ter selado a promessa com um beijo no canto de sua boca.

Meu deus do céu, eu acabei de beijar Baz Pitch!

A Penny vai me matar quando descobrir.

Praticamente escuto a voz dela, escandalizada. Eu tive que estabelecer uma cota, Simon!, ela exclamaria. E bem, como eu ia saber que ia acabar gostando do cara? Mais importante ainda, que ele se interessaria por mim?

(É, algo me diz que a cota vai permanecer, ainda que por razões diferentes.)

Apesar da ausência de hesitação de minha parte nos minutos anteriores, neste momento sou consumido por um milhão de pensamentos e dúvidas. Não posso evitar. Sempre fui melhor agindo do que pensando e, depois de anos de inimizade explícita entre nós dois, é inevitável me questionar. Será que eu entendi tudo errado? Minha parte mais desconfiada sussurra: E se for só uma tramoia para me desestabilizar e destruir?

Descarto essa ideia porque não havia como Baz ter planejado o que aconteceu, mas mesmo sendo real... Me lembro do alívio nos olhos da Agatha quando nos separamos de vez e, de algum modo, sei que caso a cena se repita com Baz vai doer muito mais. Porque no fundo é isso, não? A razão pela qual minhas mãos não pararam de tremer desde que me tranquei neste banheiro e por trás de minha respiração entrecortada. A manifestação física da insegurança que sinto o tempo todo.

E se assim que ficarmos juntos Baz perceber que eu não valho a pena, se arrepender e me deixar sozinho? E a família dele? Até onde sei, eles me odeiam. Pode ser que eles nem sequer me aceitem na casa deles, não? E se eles brigarem com Baz por minha causa? Será que eles sequer sabem que ele é gay? Jesus, isso significa que eu sou gay?! Como posso ter vivido tanto tempo sem me dar conta disso antes? Sou mesmo um péssimo Escolhido e... Cristo, são infinitos questionamentos. Me sinto hiperventilar enquanto reajusto meu mundo, transformando as certezas de como o conhecia até então.

Respira, Simon. Forço-me a obedecer meu próprio pensamento e apenas a este último. Aproveito para me livrar de meu uniforme, vestindo os shorts do pijama enquanto gradativamente me sinto retomar um ritmo cardíaco normal. O ar gelado em contato com minha pele majoritariamente exposta ajuda a dispersar aquela soma alarmante de preocupações, ao menos por agora.

Tento me concentrar nos ladrilhos das paredes e no brilho amarelado da lâmpada do banheiro, mas é o característico cheiro de cedro e bergamota dos produtos do garoto com quem tenho dividido o teto pelos últimos sete anos que finalmente me tranquiliza. Sua familiaridade me conecta ao presente e faz com que me sinta em casa.

(Não quero pensar muito sobre as implicações disso. Não assim, tarde da noite e com tantas outras incógnitas pesando sob meus ombros).

Respiro fundo uma, duas, três vezes antes de voltar ao quarto e é com alívio que noto as luzes apagadas, com exceção de meu abajur. Baz está deitado, dormindo ou ao menos fingindo dormir e, portanto, não perco tempo: me ajeito em minha própria cama, sabendo que uma boa noite de descanso é o melhor a fazer. Vou ter tempo de sobra para pensar amanhã.

Antes que o sono me venha, entretanto, não consigo evitar visualizar o rosto de Baz enquanto cantava aquela música pra mim. Seus olhos acinzentados, tão impossivelmente vulneráveis e honestos, como poucas vezes antes o tinha visto. Me viro um pouco no colchão, tentando não fazer muito barulho, mas de modo que consiga ver sua silhueta repousando sobre os lençóis. Tenho vontade de bater em minha própria testa, porque observando seus cabelos escuros espalhados pelo travesseiro, aparentando tanta maciez mesmo à distância... É quase absurdo que eu não tenha notado antes o quanto sempre desejei tocá-lo.

O quão dócil Baz é, por debaixo da máscara de indiferença e superioridade.

O quão lindo...

Suspiro profundamente, forçando-me a fechar os olhos, mas talvez o tema natalino tenha se infiltrado em meu subconsciente mais do que imaginei, porque sou preenchido pela lembrança de um clipe festivo que assisti há uns anos na casa da Agatha, enquanto ela pintava as unhas murmurando a letra da música entre uma camada e outra de esmalte.

Santa, tell me if you're really there. Don't make me fall in love again if he won't be here next year, a cantora – Selena Gomez? Dua Lipa? Ariana Grande? É, acho que é essa última – pedia, enquanto dançava em seu quarto com as amigas. Santa, tell me if he really cares. 'Cause I can't give it all away if he won't be here next year…

Talvez seja meio bobo, afinal não faço ideia da intensidade dos sentimentos dele – nem dos meus, se for honesto – muito menos se amanhã Baz não vai fingir que esta noite jamais aconteceu, mas me pego murmurando esses poucos versos para mim mesmo. Pedindo para Papai Noel, Deus, ou qualquer força mágica boa nesse universo que possa me escutar, para que eu não me apaixone se não for pra valer...

 

●○⸙○●

 

 

O dia seguinte amanheceu nublado e preguiçoso, exatamente do jeito que eu gosto e, embora não tenhamos exatamente conversado sobre a noite anterior, Baz me ofertou um sorriso de canto discreto quando nossos olhares se cruzaram no refeitório.

O que foi... ótimo, pra falar a verdade. Soltei um fôlego que nem sequer sabia estar segurando, aliviado, enquanto caminhava em direção a minha mesa usual. Por outro lado, essa pequena interação deixou bem claro pra mim mesmo que eu já estava mais envolvido do que imaginava.

(Não que devesse ser surpresa. Desde o quinto ano adquiri o hábito de espionar o cara tentando provar seu vampirismo e, mesmo não encontrando uma única evidência, continuo seguindo ele pra tudo quanto é lado até hoje... Bom, antes tarde do que nunca, não?).

Também foi engraçado vê-lo tomando café da manhã antes de mim, já que eu normalmente desço primeiro, graças ao meu amor por scones e tal. Cheguei à conclusão de que ele deve ter acordado cedinho para ir às Catacumbas, já que no dia anterior acabamos... nos distraindo. Senti minhas bochechas corando levemente e isso me levou à fatídica situação em que me encontrei naquela manhã: minha melhor amiga sentada diante de mim, lendo uma enciclopédia de feitiços qualquer, comendo uma torrada distraidamente enquanto eu balançava minha perna em ansiedade.

— Hum... Penny?

— Sim, Simon?

— Você entende bem mais dessas coisas do que eu, então eu queria saber se, tipo, seria muito ruim se duas pessoas que se odiavam começassem a namorar... Quero dizer, isso é necessariamente um péssimo indicativo, ou tem como ser uma coisa boa?

Ela finalmente desvia os olhos do livro, piscando duas vezes bem devagar, antes de exibir um sorriso largo e visivelmente relaxar em sua cadeira.

— Não me diga que você e Baz finalmente se acertaram?

— O quê?! Como você...? Eu...

E é claro que eu ia começar a ficar ainda mais vermelho e gaguejar.

Mais sutil impossível.

— Simon, você sabe que eu te amo, mas Basilton é herdeiro de uma das famílias de magos mais poderosas. – Ela pontuou cada frase somando os argumentos nos dedos da mão esquerda. – Você tem uma dificuldade tremenda de controlar sua própria magia, por mais extensiva e forte que ela seja, e vocês tem sido “inimigos tentando se matar” por sete anos.

Por menos que eu goste de ser lembrado de minhas dificuldades com uma varinha – mesmo teoricamente sendo “o Escolhido” – consegui enxergar a lógica desta linha de raciocínio. Por vezes tenho certeza de que, se não tivesse Penny ao meu lado, eu já não estaria aqui para contar história.

(O que não significa que eu goste de saber que eu poderia ter me ligado a respeito de tudo isso muito antes, caso fosse mais perceptivo).

Ignorando a careta que eu provavelmente exibia, Penélope continuou:

— Só há duas explicações plausíveis para que ele nunca tenha saído vitorioso nessa empreitada ou pelo menos te machucado de verdade alguma vez: ou ele é um feiticeiro incompetente ou só finge te detestar e jamais tentou te ferir de fato. E eu me recuso a perder o posto de melhor aluna do nosso ano para um mago incapaz, então só podia ser a segunda opção, Si.

Meu ímpeto de acusá-lo de ter me empurrado das escadas morreu em minha garganta, porque a verdade é que, no fundo, eu sempre achei aquela queda muito mais consequência de um tropeço meu do que qualquer outra coisa.

— Além do mais, já faz um bom tempo que eu vinha desconfiando que seus motivos para stalkear Baz no campo de futebol tinham mais a ver com a possibilidade de vê-lo sem camisa no final dos treinos do que a vontade de descobrir algum “plano maligno” e...

— Penny!

Senti meu rosto inteiro pegando fogo e, inutilmente, tentei cuspir algo em resposta. Sem sucesso. Levantando apenas uma sobrancelha, com ares de julgamento, minha melhor amiga me questionou:

— Vai seguir negando, Simon?

E o problema é que, ainda que eu não tivesse me dado conta até pouco tempo, não havia como negar que ela estava certa. Engolindo a vergonha, me concentrei em outra questão, mais relevante no momento, como o fato de que Penélope Bunce aparentemente consegue ler meus sentimentos melhor do que eu mesmo.

— Mas... Mas se estava assim tão na cara, por que você nunca me disse?!

Num instante, ela perdeu o ar pretencioso e me encarou com ternura, ajustando os óculos.

— Eu não tinha como ter certeza. E esse é o tipo de coisa que ninguém pode decidir por você. São seus sentimentos... Mas, em minha defesa, sempre deixei bem claro que usar o argumento de que ele é “bonito demais” como evidência de seu vampirismo não fazia o menor sentido.

— Às vezes eu odeio quando você tem razão. – Resmunguei, cruzando os braços.

— Odeia nada. Mas me conta! O que exatamente aconteceu?

Dediquei o restante do café da manhã a descrever com detalhes a noite anterior e me senti bem, como se fosse possível para mim viver uma vida normal.

Essa sensação estrangeira permaneceu comigo nos dias que se seguiram, especialmente porque o Oco parece ter se compadecido do Mundo dos Magos neste final de ano, o que, surpreendentemente, não ajudou em nada a acalmar meus nervos. Isto é, porque agora já se passou uma semana, os alunos vão começar a deixar Watford amanhã e eu ainda não sei em que pé está meu relacionamento com Baz.

Estou deitado em minha cama, braços cruzados atrás da minha cabeça e encarando o teto fixamente, quando escuto o dito cujo limpar a garganta, para chamar minha atenção. Me viro em sua direção e posso notar seu nervosismo, especialmente porque ele não me olha nos olhos.

 É isso. Ele vai me dizer que foi tudo um erro e...

— Você... já arrumou suas coisas?

Sou pego tão de surpresa, que minha resposta sai muito mais seca e curta do que eu desejaria:

— Não.

— Oh. – Praticamente consigo ver sua expressão se desmanchando e ele se forçando a permanecer impassível. Será possível? Todo esse tempo ele esteve tão temeroso e perdido quanto eu?— Você mudou de ideia sobre ir comigo, não é? Está bem, Snow, não vou mais te importunar com isso...

Percebo ele se apressando para deixar nosso quarto e sei que não posso permitir.

— Espera!

Ele interrompe seus passos, mas não se vira em minha direção, nem diz nada.

Bom, minha vez, acho.

— Eu não mudei de ideia, Baz. Eu só... Quer dizer, você não falou mais nada depois daquele dia, então eu pensei que você tinha se arrependido e... Enfim. Foi isso.

Morgana, por que eu sou assim tão enrolado com as palavras?

Se eu fosse esperto e eloquente como Baz, certamente estaria rindo agora, exceto pelo fato de que, quando olha pra mim, há afeição em sua mirada.

— Você tem razão, eu realmente não reforcei o convite. Me desculpe. Eu sou... novo nisso. 

Em quê?, quero perguntar, desesperadamente. Em convidar pessoas para o Natal? Em não me odiar? Em querer estar em minha companhia? Não tenho a oportunidade de expressar minhas dúvidas em voz alta, entretanto, muito menos de dizer que tudo isso é novo pra mim também, porque ele continua:

— Mas a oferta segue de pé, se você quiser.

— Quero.

Outra resposta curta, mas essa diz exatamente o que eu queria.

Ele sorri pra mim, tímido e incerto, como se fosse eu quem estivesse lhe oferecendo um presente e, não pela primeira vez, me questiono qual encantamento tomou conta da minha vida.

— Posso te ajudar a fazer as malas, se você quiser.

“Se você quiser” parecem ser palavras mágicas. Enquanto seguirmos acrescentando-as em nossas falas, o acordo tácito e frágil no qual estamos caminhando parece se manter intacto.

— Valeu. Não que eu tenha muito o que levar, pra dizer a verdade. – Brinco. – Tenho quase certeza de que vou ser barrado na porta por não atender ao código de vestimenta.

— Não seja bobo, Snow. Somos pessoas normais, não aristocratas. E, além do mais, eu certamente tenho roupas para te emprestar, caso seja necessário.

Por algum motivo, me imaginar usando as roupas do Baz, especialmente sua camisa do futebol com seu sobrenome e número dispostos nas costas, causa uma sensação ridícula no meu estômago – borboletas dando duplos mortais twist carpados – e eu sei que preciso mudar de assunto agora.

— Mas sério, Baz, isso não vai te causar problemas, né? Você tem certeza? Sua família não vai querer me matar e te levar junto por confraternizar com o inimigo ou algo assim?

As bochechas dele coram levemente ao som de “confraternizar com o inimigo” e é a coisa mais preciosa do mundo.

— Claro que não, Snow. Ninguém vai te fazer mal, eu não vou deixar. Daphne e meus irmãos vão te adorar logo de cara. A Fiona provavelmente vai encher meu saco, mas nada fora de controle, e o meu pai... – Nós dois engolimos em seco, em sincronia, mas Baz não permite que eu me assuste demais. – Bom, eu posso dizer que temos um trabalho da escola para fazermos e por isso você foi pra casa comigo. De qualquer forma, não vai ter problema nenhum. Eu prometo, Simon.

Sem dizer mais nada, enlaço sua mão na minha e lhe oferto meu melhor sorriso.

De algum modo, sei que vai ficar tudo bem.

 

●○⸙○●

 

Talvez eu estivesse equivocado.

Nunca é tarde demais para fugir, penso, enquanto eu e Baz esperamos Fiona Pitch vir nos buscar. Merlin...

— Pare de ficar balançando essa perna, Snow! Você vai acabar encharcando a barra da sua calça com a neve, molhar o carro da minha tia e, aí sim, ela vai te matar.

— Ah, ótimo trabalho me acalmando, Baz! – Resolvo aproveitar o contexto para murmurar o trocadilho que inventei ontem, enquanto arrumávamos meus pertences, já que esta é uma hora tão boa quanto qualquer outra. – You’re a mean one, mister Pitch...

— Há, há, há. Muito engraçado. – Ele revira os olhos, mas logo estica sua mão enluvada, apertando suavemente meu antebraço. – Você não tem porque ter medo da Fiona. Sério. Ela vai te olhar feio e te interrogar durante a viagem? Provavelmente. Mas ela faz isso com o Niall e até com o Dev, que é da família. É basicamente o jeito dela te dar as boas-vindas.

Encaro-o fixamente por alguns segundos, tentando descobrir se ele está sendo sincero ou só tirando uma com a minha cara, mas logo essa informação se torna inútil, porque um conversível vermelho estaciona bem na nossa frente e sou recepcionado pela visão de sua motorista trajando óculos escuros, jaqueta de couro e cabelos muito pretos com uma mecha branca.

Demorei demais. Agora é tarde demais para fugir.

Observo o Grande Gramado e a Torre dos Mímicos de forma quase melancólica: Se eu não sobreviver a essa viagem, foi bom viver por aqui por um tempo...

(Minha nossa, a capacidade dramática do Baz está me influenciando!)

Por falar nele, como um verdadeiro cavalheiro, percebo-o discretamente se colocar entre mim e sua tia – que desceu do carro e me encara intensamente – já fazendo menção de guardar nossos pertences no porta-malas, como se esta fosse uma ocorrência absolutamente normal.

— Fiona.

— Basilton.

Uau. Que recepção calorosa.

Baz corta o silêncio constrangedor, indicando para que eu me acomode no banco de trás.

— Pode ir, Snow. Eu só vou colocar nossas mochilas aqui e...

— Não tão rápido, mini Mago. – Fiona me interrompe, com uma mão firme em meu ombro, olhando-me de cima a baixo. Acho que agora eu provavelmente tenho que começar a rezar. – Me dê uma razão plausível para que eu leve o herdeiro do maior inimigo da minha família diretamente para dentro da nossa casa.

É quase engraçado ser a pessoa acusada de estar tramando algo, para variar. Respiro profundamente e cerro o maxilar, como quando me concentro para uma batalha, fazendo o possível para organizar minhas ideias antes de abrir a boca.

— Com todo o respeito, Fiona, mas foi Baz quem me convidou. E eu não tenho nada a ver com a guerra contra as Famílias Antigas. Meu negócio é com o Oco. Minha relação com o Mago é de gratidão por ter me trazido à Watford e de respeito como meu diretor e guardião legal. Apenas isso. Não estou fazendo isso para me infiltrar ou o que quer que seja que você suspeita. Pra ser sincero eu mal sequer o vi esse semestre, então... – Encerro, dando de ombros.

Fiona estreita os olhos por mais um segundo e então destranca a porta traseira, sem dizer nada. Com o canto dos olhos, posso ver Baz tentando esconder um sorriso, então acho que me sai bem.

Entro no carro antes que ela mude de ideia e posso perceber Baz oscilando entre sentar ao meu lado ou dirigir-se à frente. Sua tia parece perceber também e acaba decidindo por ele, abrindo um sorriso presunçoso, ao dizer:

— Pode ir lá fazer companhia para o seu Escolhido, Basilton. O banco da frente continua reservado para pessoas que não foram sequestradas pelos Lorpas...

Bufando, meu colega de quarto se ajeita no banco à minha direita, enquanto faço uma cara confusa. Fiona nos observa pelo espelho retrovisor e seu sorriso debochado se alarga ainda mais.

— Há! O Escolhido não tá sabendo dessa história ainda? Essa viagem vai ser divertidíssima.

— O que ela quis dizer com isso? – Murmuro em sua direção, enquanto Fiona dá partida no carro, iniciando nossa jornada.

Baz tem os olhos cerrados, pura exaustão em sua expressão enquanto aperta a ponte de seu nariz.

— Eu não pretendia te contar assim, mas... Nas semanas do início do semestre, enquanto eu ainda não tinha retornado para Watford, bem, eu não estava prolongando minhas férias nem elaborando planos mirabolantes para te derrotar. Eu... – Sua voz quebra um quase nada, mas eu percebo e sei instantaneamente que o que virá a seguir vai me abalar tanto quando ele. – fui sequestrado. Pelos Lorpas. Pelo menos foram eles quem executaram o serviço. Passei algumas semanas preso num caixão até Fiona me encontrar e...

Não escuto mais nada.

Meu mundo inteiro é ruído branco.

Em minha cabeça só ressoam palavras soltas:

Sequestrado. Num caixão. Por semanas.

Sozinho.

— Snow?

Fiquei louco com sua ausência, mas não estava lá para salvá-lo.

Eu não podia imaginar que...

Meu deus, logo ele que sente tanto frio em condições normais e...

— Snow.

Sinto um aperto na minha mão direita e a realidade começa a voltar em foco, lentamente, mas ainda muito distante.

Sou todo pavor, salpicado pelos acordes suave do piano que escapa pelo rádio.

— Ei.

Outro aperto, mais firme, e, com ele, orbes acinzentadas.

Baz.

— Simon. – Um terceiro toque, e o gelado de sua palma em contato com a minha é um bálsamo. – Eu tô bem. Estou aqui.

Retorno ao momento presente.

Noto Fiona propositalmente encarando a estrada a sua frente para nos dar um pouco de privacidade. Sou capaz de dar sentido aos versos que ecoam pelos autofalantes – You squeeze my hand three times in the back of the taxi. I can tell that it's gonna be a long road. — e, mais do que tudo, percebo o garoto ao meu lado. Alguém que, por tanto tempo, jurei ser a personificação da maldade e destruição mútua, quando na verdade é quem eu mais quero salvar. Quem eu quero feliz. Quem eu quero... Algo que ainda não me atrevo nomear.

(Don't read the last page. But I stay when it’s hard or it’s wrong or we're making mistakes. I want your midnights. But I’ll be cleaning up bottles with you on New Year's Day.)

Sei que o caminho que estamos reescrevendo não será fácil. Especialmente quando já erramos tanto um com o outro, mas...

Aqui estamos nós.

Fazendo diferente.

Ele me confortando, quando deveria ser o contrário, considerando a informação que acabei de descobrir.

É como na canção: quero suas meia-noites e que mais vier pela frente.

— Você está bem?

Não sei dizer se fui eu ou ele quem verbalizou a pergunta, mas nós dois assentimos e o aperto em meu coração alivia um pouco.

(Hold on to the memories, they will hold on to you. And I will hold on to you.)

Não solto sua mão por toda a viagem até Hampshire.

 

●○⸙○●

 

O restante do trajeto foi bem mais tranquilo.

Nem de perto tão carregado emocionalmente.

Em determinado momento, Fiona fez um comentário qualquer para quebrar o gelo, começamos a conversar e não foi tão esquisito quanto imaginei. Nos demos muito melhor do que eu poderia ter previsto e é só por isso que eu não entrei num estado completo de choque quando, ao estacionar em frente à mansão, Fiona veio se despedir de mim dizendo:

— Sabe, Escolhido, você não é de todo mal. Até que gosto de você. Não faça com que eu me arrependa.

— Jamais. – Respondo, engolindo em seco, mas com firmeza.

— Resposta correta, rapaz. Resposta correta...

E, com uma última piscadela – uma piscadela!!!— entra no carro e se manda para não sei onde, deixando Baz e eu sozinhos para enfrentar o que quer que nos receberá por detrás dessa enorme porta de madeira maciça.

(Uma senhorinha simpática chamada Vera, aparentemente.)

Ao entrar, observo, embasbacado, cada detalhe da residência Pitch. O imponente lustre na sala de estar, a escadaria gigantesca, as ricas tapeçarias e os quadros antigos nas paredes. O quanto tudo é sim, bastante sóbrio e refinado, mas igualmente vivido...

Há brinquedos espalhados no chão, próximos ao sofá, e um cheiro delicioso vem de onde posso supor ser a cozinha.

Essa mansão certamente não se assemelha nada com o covil maligno que conjurei em minha cabeça desde a primeira vez em que o Mago me disse que Baz e sua família eram nossos inimigos.

(Não quero pensar em mais quantas coisas eu posso ter absorvido errado, por conta de uma visão de mundo que nem sequer é a minha...)

Minha trilha de pensamentos é interrompida, entretanto, por uma criança bastante animada correndo em direção ao Baz e o abraçando com força.

— Ouch, Mordelia! Também senti saudades, mas me deixe respirar!

Ignorando-o totalmente, minha impressão é de que ela o aperta com mais intensidade.

— Você demorou...

— Vim o mais rápido que pude.

— Mesmo assim. Demorou.

— Bom, estou aqui agora, filhotinho de gremlin. – Olhando de fora, percebo claramente que o “insulto” é carregado de afeto e chego a me perguntar se, ao se dirigir a mim, ele soa assim também. – Pode parar com o drama.

— De quem será que ela puxou, não, Basilton?

Viro-me em direção ao som e vejo quem eu presumo ser a madrasta de Baz, uma mulher jovem sorrindo largamente, carregando um bebê nos braços. Dando um jeito de se desvencilhar de sua irmã, Baz também lhe oferece um sorriso como cumprimento e finalmente adereça minha presença.

— Mãe, deixe-me te apresentar Simon Snow, meu... colega de quarto.

Neste ponto, espero não estar corando nem suando copiosamente. Também tenho certeza, por conta desta pequena hesitação, de que eu e ele precisamos urgentemente achar coragem para conversar e definir exatamente qual pronome de tratamento devemos usar um com o outro.

(Meu deus, será que vou terminar esse feriado chamando Baz Pitch de meu namorado?!)

— Mas é claro! Como vai, Snow?

— Pode me chamar de Simon, senhora. Obrigada por me receber.

— Imagine! É um prazer. – Mesmo com o menininho nos braços, ela dá um jeito de me abraçar, me fazendo sentir acolhido. Sei que provavelmente é ridículo, mas fico com um pouco de vontade de chorar. – E igualmente, você pode me chamar de Daphne, viu? O almoço está quase pronto, então vou pedir a Vera que prepare o quarto de hóspedes enquanto comemos, está bem?

— Com toda certeza, Daphne. Você acabou de falar a palavra mágica para o Snow. Agora ele provavelmente vai lhe oferecer gratidão eterna ou algo do tipo.

Okay. Agora eu certamente estou parecendo um pimentão.

— Baz!

— Não implique com nosso hóspede, Basilton... – E então, virando-se para mim, como que a confidenciar um segredo, ela complementa, num falso sussurro. – Não ligue pra ele. Tenho minhas suspeitas de que isso é só para tentar me convencer a fazer mais uma receita do pudim favorito dele sem ter que me pedir, te usando como bode expiatório.

Não consigo evitar uma risadinha, embora Daphne não pareça ter terminado:

— Mas não se preocupe, querido. – Ela retorna ao volume normal de sua voz, dirigindo-se ao Baz. – Vai ter pudim de sobra pra você, especialmente porque me encarreguei de preparar scones de cereja para o Simon, como você pediu, assim todo mundo fica contente!

Lutando com sua palidez costumeira, as bochechas de Baz tingem-se de cor-de-rosa e esse é certamente um dos meus momentos favoritos de toda minha vida.

Fazendo menção de deixar o cômodo – abertamente satisfeita com o resultado de sua fala – Daphne chama Mordelia para lhe acompanhar:

— Vamos, filha. Me ajude a pôr a mesa antes que suas irmãs desçam e comecem a fazer uma bagunça...

Quando ficamos sozinhos de novo, sei que estou sorrindo de orelha a orelha e aproveito para somar minha própria provocação ao constrangimento do garoto mortificado ao meu lado:

— Então quer dizer que você se preocupou em avisar sua família que eu gosto de scones de cereja, hein? Infelizmente para você, sua madrasta é incrível, então preciso nomeá-la minha pessoa favorita na família Grimm...

Baz empurra meu ombro de leve, fazendo questão de bufar como um velho ranzinza, mas seus lábios curvam-se para cima enquanto ele me conduz até a cozinha.

 

●○⸙○●

 

Eu até tentei dormir no quarto de hóspedes mais tarde, naquele primeiro dia, mas as dobradiças do guarda-roupas ficavam rangendo e tenho certeza de que algo estava se movendo embaixo da minha cama.

Harpias, Baz me informou, com a maior naturalidade quando eu apareci assustado pra caralho na sua porta, no meio da madrugada.

Desde então, me acomodei no sofá em seu quarto e, embora o clima siga levemente estranho, incerto e constrangedor quando estamos só nós dois... Acho que em breve chegaremos em algum lugar.

Quer dizer, nos dias que se seguiram as coisas foram assumindo um certo ar de naturalidade. Uma sensação cotidiana bem-vinda e inesperada. Pude conhecer Daphne um pouco melhor, fiquei sabendo que Malcolm Grimm está em Londres e deve chegar em Hampshire na véspera de Natal, e fui propriamente apresentado à Mordelia, Petra, Sophronia e Swithin.

Ficou implícito que eu e Baz estávamos responsáveis por entreter os pequenos enquanto a senhora Grimm e Vera cuidavam dos preparativos de final de ano, mas eu não me importei nem um pouco. Sempre gostei de cuidar das crianças mais novas nos orfanatos e brincar com eles me proporcionou as experiências natalinas mais divertidas que eu já experimentei.

(Daphne até providenciou uma meia com meu nome para pendurar sob a lareira e eu precisei me concentrar com muito afinco para não desabar em lágrimas. Me pergunto, talvez meio delirante, se essa é agora uma realidade que posso ousar me permitir sonhar ter).

Fizemos bonecos de neve, travamos batalhas épicas com espadas de madeira improvisadas (lutas essas que rapidamente se transformaram em guerrinhas de bolas de neve), assistimos trocentos filmes de Natal e hoje combinamos de decorar biscoitos de gengibre com todos os irmãos.

(Vai ser uma baita aventura, conseguir a colaboração deles todos juntos sem fazer uma bagunça na cozinha, mas estou animado.)

Vera prometeu que poderíamos usar a cozinha às 14h00, então no momento estamos aproveitando o que Mordelia apelidou de “Aquecimento Temático”, ou seja, ela está nos forçando a fazer coreografias ridículas para uma lista infinita de canções de Natal.

Tenho um festão dourado enrolado em torno do meu pescoço e cada uma das irmãs do Baz – menos a própria Mordelia, que é “grande o suficiente para dançar sozinha”, segundo suas próprias palavras – segura uma das minhas mãos para que eu as gire no ritmo da música. Já ele, o traidor, se acomodou no sofá com Swithin no colo, dando um jeito de se safar dos passinhos constrangedores.

A verdade, no entanto, é que não me incomodo nem um pouco.

Não só porque é maravilhoso estar na companhia de crianças que parecem gostar de mim e não se assustam com a minha mágica, mas também porque acho que nunca vi Baz sorrir tanto quanto nos últimos dias.

(E eu talvez precise de alguns momentos à sós com meus próprios pensamentos para digerir o efeito que vê-lo cuidando de um bebê causou em mim.)

(Quero dizer, eu não tenho culpa de conseguir visualizar perfeitamente nós dois cuidando de um neném nosso. É tradição se casar cedo no Mundo dos Magos, não?)

É com a cabeça ainda meio tonta, povoada de ideias, que dou um jeito de discretamente tirar uma foto do Baz com seu irmão mais novo acomodado em seu peito e, no impulso, colocá-la como bloqueio de tela do meu celular.

Meu aparelho é velhinho – eu praticamente só o uso para ver às horas, jogar o joguinho besta pré-instalado nele e para ter alguma forma emergencial de contatar a Penny, caso necessário – mas de algum modo não pude resistir à vontade de eternizar esse momento.

Inclusive, a música tocando agora – quem diria que os Jonas Brothers tinham voltado a cantar juntos?! – parece resumir um pouco dessa minha sensação.

 

You make every day feel like it's Christmas

Never wanna stop

Feelin' like the first thing on your wish list

Right up at the top

I can't deny what I'm feelin' inside

Nothin' fake about the way you bring me to life

 

É bem isso. Com cada uma dos momentos vivenciados nos últimos dias reverberando em mim, sou consumido por essa vontade de jamais parar de me sentir como agora.

Vivo.

Feliz.

Completo.

É transbordando de algo sincero e potente que junto minha voz à das meninas para cantar o refrão:

You make every day feel like it's Christmas. Every day that I'm with you.

(Pensando em Baz, claro. Sempre ele.)

Quando a melodia se encerra, percebo algo na expressão de Baz e tenho a impressão de que ele quer me dizer algo, mas não chego a descobrir sobre o que se tratava, pois recebemos nossa permissão para invadir a cozinha. Com gritinhos animados, sem perder nem mais um segundo, a pequena horda de Grimms me arrasta até o cômodo onde nossa próxima atividade nos aguarda.

Chegando lá, percebo que os itens já estão porcionados nas medidas corretas para nossa receita e, mais uma vez, sinto-me extremamente grato. Tenho a sensação de que, sozinho, eu não saberia nem por onde começar. Aliviando ainda mais meus receios, Daphne prontamente declara que irá nos orientar com o passo a passo e, neste ponto, acho que Baz estava certo e eu poderia lhe oferecer gratidão eterna.

A partir daí, é quase mágico testemunhar os ingredientes transformando-se conforme vão sendo adicionados à tigela. Ovo, manteiga, mel e um punhado de açúcar refinado. Mascavo também. Começam a entrar as especiarias – canela, gengibre em pó, cravo moído, essência de baunilha, noz moscada ralada na hora – e o aroma da mistura parece cobrir a cozinha como um cobertor quentinho.

Baz levanta Sophronia para que ela possa misturar tudo com uma colher de pau e, embora mal tenha tocado na receita até agora, eu espero não ter estragado nada acidentalmente, porque não sei como uma massa tão líquida vai poder se transformar em biscoitos. Daphne anuncia que a mistura já está homogênea – uma palavra aparentemente fundamental na culinária – o suficiente e é hora de acrescentar a farinha de trigo e o bicabornato de sódio.

Acredito que deve haver algum modo de fazer esse processo de forma limpa e organizada, mas com quatro crianças e um Simon Snow na cozinha não parece ser possível. Pelo que entendi, a ideia era colocar a farinha aos poucos até conseguir uma massa mais consistente, amanteigada e úmida, mas que não grude nas mãos. E nós conseguimos! Só não sem antes criar uma nuvem branca que sujou toda a mesa e nós mesmos de farinha.

— Por Merlin, Simon! Você consegue ser pior que o Swithin e ele tem dois anos!

(Não levei a crítica à sério. Primeiro, porque Baz estava ainda mais branco do que o normal por conta da nossa pequena bagunça, tornando um pouco difícil levá-lo à sério, mas também porque ele não parou de gargalhar por uns cinco minutos, então eu sei que foi só da boca pra fora.)

Daphne assumiu as rédeas da situação antes que estragássemos a receita de vez e pude assistir, quase hipnotizado, seus movimentos precisos ao abrir a massa na espessura correta com o rolo.

— Agora temos que deixá-la no congelador por mais ou menos meia hora, antes de cortarmos os biscoitos no formato desejado e levá-los ao forno, assim eles ficam crocantes.

Puxa vida... Quem diria!

Me pergunto se ela me ensinaria mais coisas para fazer na cozinha, caso eu lhe pedisse. Foi tão divertido e eu nunca havia cogitado que poderia gostar tanto de preparar comidas quanto gosto de comê-las... Quem sabe essa não seja uma coisa que eu possa fazer no futuro? Seria legal ter um plano concreto, para variar...

Guardo essas ideias para um outro momento, no entanto, pois sou distraído pela imagem adorável do Swithin bocejando.

— O que houve, pequeno? Está com sono? – Baz lhe pergunta, e ele faz que sim com a cabeça. – Bom, mãe, vou aproveitar a pausa para levar esse garotinho aqui para o berço, tudo bem?

— Claro, querido! Também preciso buscar os sacos de confeitar para que possamos fazer o glacê para decorar nossos biscoitos de gengibre. Você fica com as meninas por um instante, Simon?

— Sem problemas.

Eu normalmente ficaria inseguro numa situação como esta, por conta da minha magia instável e tudo o mais, mas tenho conseguido me controlar muito bem ao longo da última semana e aprendi que Daphne costuma fazer as coisas do jeito Normal mesmo, então não vejo problemas mesmo.

Tão logo ficamos sozinhos, Mordelia e Sophronia se ocupam de lamber a massa acumulada na tigela e estou tão concentrado em observá-las, que Petra me pega desprevenido com seu questionamento abrupto.

— Você é mesmo o mago mais poderoso de todos, não é?

Às vezes é bem difícil de acreditar nisso. Pergunte só para o seu irmão, tenho vontade de lhe dizer, mas não acho que seria apropriado, então opto por outra resposta.

— Bom, um monte de gente acredita nisso.

Cedendo à minha própria curiosidade, acrescento um pouco depois.

— Por que você está perguntando?

— É que eu nunca vi Baz assim tão feliz. E você nem sequer está com sua varinha! Deve ser algum feitiço super poderoso...

Eu... não sei bem o que falar, muito menos acho uma boa ideia dar vasão a reação que esse comentário resultou em meu peito na frente de uma menina de cinco anos, então engulo meu choque e minha emoção, para poder entretê-la.

— Ah, sim, e super secreto também, viu? Mas tem um outro feitiço para causar alegria nas pessoas que eu adoro usar...

— É mesmo?!

— Aham. Se chama cosquinhas.

Suas gargalhadas são tão deliciosas quanto a fornada de biscoitos dourados que obtemos cerca de uma hora depois.

 

●○⸙○●

 

As palavras da irmãzinha do Baz ecoam em minha cabeça por horas. Mesmo já tendo terminado meu banho há uns quinze minutos, não me decidi sobre o que exatamente estou me sentindo inclinado a fazer. Minha única certeza é de que preciso fazer alguma coisa, porque amanhã já é dia 24, o pai do Baz vai chegar, eu não sei como serão as coisas e... Bom, não é à toa que sempre fui melhor agindo do que pensando.

Solto um longo suspiro antes de abrir a porta do banheiro da suíte do cara que se recusa a deixar meus pensamentos e... Uau.

Jeans.

Baz está usando jeans e essa pequena peça de vestuário simplesmente acaba de virar meu mundo de cabeça pra baixo, porque se eu tinha dúvidas sobre o que eu sentia por ele até agora, elas acabaram de sumir.

Tenho vontade de agarrá-lo e não soltar mais.

De entremear meus dedos em seus cabelos macios.

De puxá-lo para perto pelos passadores da sua calça e então...

— Finalmente! E depois você tem coragem de dizer que eu demoro para me arrumar, Snow. Humpft...

Tentando me recuperar, mergulho em nossas provocações costumeiras como uma segunda natureza.

— A culpa é toda sua. Ninguém mandou me dar uma camisa de botões para usar.

As feições de Baz relaxam e, com um sorrisinho tímido, ele se aproxima para ajeitar meu colarinho.

— Sem dúvidas, uma excelente escolha. Você está bonito...

— O-obrigado. Você também.

Não sei se é apenas ilusão da minha parte ou, por um instante, ele se inclina como se fosse aproximar nossos rostos, apenas para hesitar na sequência, mordendo seu lábio inferior e desviando seus olhos.

— Será que já está na hora de descermos? Merlin sabe que eu não me atreveria a te separar de uma boa refeição... – Ele brinca, para disfarçar, enquanto pesco meu celular no bolso da calça sem pensar muito e o desbloqueio para checar o horário.

  — Simon... O que... O que é isso?

Merda! Esqueci completamente que ele veria meu novo papel de parede!

Olhando fixamente para o chão e me embolando nas palavras por conta do meu nervosismo, começo a tentar me explicar:

— Ah, é só que... Hoje mais cedo você tava com seu irmãozinho no colo e eu achei tão... Bom, daí eu tive que tentar fotografar e a imagem realmente ficou boa! Tipo, dá pra acreditar?! Então achei que seria uma boa ideia tê-la onde eu pudesse ver com frequência, especialmente nesse último ano com as coisas com o Oco e as decisões sobre o futuro, sabe? Pra me motivar. Porque... Bem, porque pra mim isso aqui tem cara de final feliz. Você entende?

Jesus... Eu sou um desastre.

Murmurando, envergonhado, encerro meu monólogo:

— Eu vou parar de tagarelar agora. Desculpa.

Quando tomo coragem para encarar Baz de frente, entretanto, há emoção crua em seus olhos. Suas mãos geladas encontram o caminho até meu rosto e me acariciam como se eu fosse algo precioso.

— Eu vou te beijar agora, tá?

— Tá. – Respondo, num fio de voz, coração quase batendo para fora do peito.

Sempre visualizei Baz como essa pessoa poderosa e implacável, praticamente inatingível. Quando nossas bocas se encontram, no entanto, é delicado e vacilante, mas também tão certo.

Duvidei, por diversas vezes, das profecias sobre meu tal destino glorioso e talvez elas realmente estejam erradas em relação a seu conteúdo, mas não sobre mim. Porque nesse momento... Com esse beijo... Eu certamente me sinto escolhido.

— Você não faz ideia de quanto tempo eu esperei por isso... – Baz confessa, num fôlego só, assim que nossos lábios se separam.

— Essa semana toda? É, eu também.

Ele ri, incrédulo, divertido e tão tão suave.

— Bem mais que isso.

Seus dedos seguem tocando meu maxilar e os fios de cabelo mais curtos em minha nuca quase com reverência.

Não quero que ele pare nunca.

— Você podia ter me beijado antes...

— Eu, com toda a certeza, não podia. Você teria quebrado meu nariz uma segunda vez se eu tentasse fazer isso no quinto ano, Simon.

Quinto ano?!

Eu... uau.

Meu deus, como eu sou lerdo!

— Talvez. – Concedo, por fim. Se bem que... – Ou eu te beijaria de volta.

É tão engraçado ver expressividade no rosto normalmente tão controlado de Basilton Pitch. Ele chega até mesmo a se afastar alguns centímetros de mim para reforçar sua incredulidade.

— Você não espera que eu acredite que você sentia o mesmo por mim nessa época, né?

E então, voltando atrás, como se afastar-se de mim tivesse sido a pior ideia do mundo – o que eu concordo!— acrescenta numa voz mais suave, uma que eu apenas descobri recentemente:

— Não tem problema ser algo recente pra você. Não é uma competição de reciprocidade, amor...

O vocativo carinhoso quase acaba comigo ali mesmo, mas encontro forças em mim mesmo para continuar a conversa.

— Eu sei. É só que... Bom, claramente em algum momento eu comecei a gostar de você, não? Pode muito bem ter sido por aí. Meus sentimentos eram intensos, isso eu garanto.

Seus olhos acinzentados brilham, maravilhados, e é como se finalmente um feitiço meu tivesse dado certo: entonação, propósito e execução.  

— Você, Simon Snow, é inacreditável.

Dou de ombros, sorrindo sem parar.

— De qualquer forma, isso não tem mais importância, porque agora você pode me beijar quando quiser...

— Ah, é? – Ele fecha os olhos, deliciado. – Não dá para discutir com essa lógica.

Trocamos risos e beijos até meu estômago – traidor! – começar a roncar, o que faz Baz rir mais ainda.

— Vem. Vamos botar comida em você.

Com sua palma da mão estendida tenho diante de mim o prospecto de uma refeição deliciosa e mais beijos depois. O que posso dizer? É certamente a tal da Noite Feliz...

 

●○⸙○●

 

É madrugada, eu acho, quando alguma coisa me acorda.

Não estou com frio nem calor e minha barriga permanece com aquela sensação gostosa de quem comeu bem. Também não sinto vontade de ir ao banheiro, então sei que nenhuma reação biológica foi responsável por interromper meu sono.

Estranho, por um segundo, o fato de eu estar numa cama e não no sofá, até que a noite de ontem – hoje? – me vem a mente e aí a confusão passa a ser por eu estar sozinho.

— Baz?

— Me desculpe. Eu não queria te acordar.

Ele fecha a porta de acesso à varanda num único movimento e o suave luar que invade o quarto pela janela é o suficiente para que eu o veja tremer de leve.

— Aconteceu alguma coisa? – Pergunto, já me levantando.

— Não! Não se preocupe. Eu fui... caçar.

Ah.

Eu tinha me esquecido.

— Você podia ter me chamado pra ir junto.

— Não seja ridículo, Simon.

— Por quê? É sexy...

Acendo a lâmpada da mesa de cabeceira bem a tempo de vê-lo corar.

— Você não faz o menor sentido, seu pesadelo ambulante.

— Okay, okay. Mas venha me insultar aqui debaixo das cobertas, porque você deve estar morrendo de frio, seu teimoso.

Tenho razão e ele sabe, por isso nem sequer discute, se acomodando ao meu lado e permitindo que meu abraço lhe aqueça de novo. Além disso, eu finalmente encontro uma vantagem para os centímetros que ele tem sobre mim ao afundar o rosto em seu pescoço e ser recepcionado pelo familiar aroma de cedro e bergamota.

— Você tem um cheiro tão bom, Baz...

— Só me faltava essa agora. – Ele responde num sussurro, divertido, enquanto faz cafuné nos meus cachos rebeldes. – A vida é mesmo injusta. Se fosse eu falando isso, seria coisa de vampiro esquisitão, mas o Escolhido tem liberdade poética...

— Ah, vai me dizer agora que eu não posso elogiar o perfume do meu namorado?

— Seu...?

Continuo então, antes de perder minha coragem, lembrando da noite que deu início a isso tudo:

They call it the season of giving. I'm here, I'm yours for the taking.

Enlaço seus dedos nos meus. Estou aqui, sou seu.

So please just fall in love with me this Christmas. — Baz me acompanha, é claro, porque a gente combina. – There's nothing else that we will need. Won't be wrapped under a tree. I want something that lasts forever.

Desta vez, entretanto, não preciso me esconder no banheiro para pensar. Tenho certeza do que quero. Desejo algo para sempre...

I'll wear you like a Christmas sweater. I want something to last forever, so kiss me on this cold December night.

Nossas vozes estão embargadas, então não dizemos mais nada. Ele beija minha testa, minha têmpora, minha bochecha e minha boca. Adormecemos nos braços um do outro e é o sono mais tranquilo desde que posso me lembrar.

 

●○⸙○●

 

Nossa véspera de Natal foi recheada de neve, biscoitos de gengibre e beijos escondidos, o que nos induziu a uma falsa sensação de tranquilidade. Isso é, porque pouco antes da ceia, Malcolm Grimm retorna de Londres.

— Querida, desculpe o atraso. – Justifica-se, enquanto abraça sua esposa. – O Clã estendeu as reuniões até o último minuto, a neve bloqueou um monte de passagens e eu ainda tive que esperar a Fiona. Ela inclusive deve estar estacionando e...

Suas palavras morrem na garganta ao se deparar comigo na sala de estar.

— Daphne, eu achei que você estava brincando... – Comenta, exasperado. – Basilton, não acredito que você deixou sua tia te convencer a fazer algo assim!

Quando entendo o que ele quer dizer, tenho vontade de gargalhar. Há! Está vendo só? Até o pai do Baz o acusa de tramar contra mim. Vou esfregar isso na cara dele no futuro! Agora, porém, meu maior objetivo é concertar essa situação.

— Não, senhor. Não é nada disso. Baz não planejou nada.

Essa talvez não tenha sido a coisa certa para dizer, pois ele então levanta uma sobrancelha (no que eu começo a identificar como um gesto de família), desconfiado.

— Como você pode ter tanta certeza?

Merda. Agora ele suspeita de mim.

Começo a suar frio e rezo para conseguir manter minha magia sob controle, enquanto tropeço num jeito de tentar explicar minha presença.

— Também não é isso, senhor Grimm. Quer dizer, a gente t-tem um trabalho pra fazer, por isso e-eu vim.

— Rapaz, eu não nasci ontem. Tenho certeza de que seus professores não passaram nenhuma atividade para o feriado. Alguém pode me dizer o que realmente está acontecendo aqui?

Baz se coloca ao meu lado, próximo o suficiente para que eu sinta a temperatura de sua pele mais gelada que a minha, mesmo através das camadas de roupa. Me acalmo instantaneamente e, quando ele começa a falar, minha mão encontra um caminho até a sua, institivamente, e ele a aperta, me assegurando.

— Fui eu quem o convidou, pai. Não é plano de nenhum dos lados, eu te garanto. Descobri que Simon não tinha onde passar as festas e pensei que seria bom se ele pudesse estar aqui conosco. E eu estava certo, porque os últimos dias foram ótimos.

Respirando fundo, como se tomasse coragem, Baz entrelaça seus dedos nos meus e acrescenta, num tom mais baixo e vulnerável:

— Pai, eu jamais colocaria a vida da minha família em perigo. Simon é uma boa pessoa. Eu... gosto dele. Confio nele. Por favor, confie em mim também...

Malcolm nos encara fixamente por algum tempo, com o cenho franzido, até seu olhar recair para onde permanecemos de mãos dadas. Ele arregala os olhos um quase nada e depois dá um suspiro resignado, murmurando algo que soa bastante como um “mas é claro...”. Fiona, cuja presença eu ainda não havia notado, pois ela deve ter adentrado a casa no meio do “interrogatório”, apenas ri.

— Você se diverte, não é, Fiona? Pois eu culpo você e o sangue dos Pitch por isso. – O senhor Grimm massageia as próprias têmporas, como numa tentativa de livrar-se de uma dor de cabeça e eu não tenho certeza de estar entendendo o que está acontecendo aqui... – Não se passa um dia sem que eu me pergunte se é uma maldição ou uma bênção que ele tenha puxado tanto à Natasha.

Fiona ri mais ainda, dando de ombros, como se forçada a concordar e é assim que, quase sem acreditar, percebo Malcolm Grimm dando um tapinha nas costas de Baz antes de virar-se para mim e pronunciar, com um meio-sorriso:

— Muito bem, filho. Seja bem-vindo à mansão Pitch, senhor Snow.

Estendo-lhe a mão, ainda incrédulo, mas cheio de sinceridade.

— Muito obrigado, senhor. Mesmo.

— Imagine. Bom, acho que já passou da hora de comermos, não? Estou faminto.

Simples assim, tudo estava resolvido.

O resto do jantar correu normalmente, entre pratos suculentos, brindes cheios de gratidão e conversas animadas. Em momento algum fui tratado como um intruso e não me lembro de nenhuma outra vivência onde eu tenha me sentido mais parte de uma família de verdade.

Talvez eu esteja começando a compreender a tal magia do Natal.

Bem depois de nos empanturramos de gemada e panetone, quando já ajudamos Daphne a lavar a louça e também arrumamos os presentes das crianças embaixo da árvore, eu e Baz nos recolhemos para dormir.

Caminhamos lado a lado até seu quarto e, assim que a porta se fecha, sinto a necessidade de comentar a única coisa que me chamou a atenção nesta noite.

— Está tudo bem, Baz? Você está tão calado.

Ele encara as gárgulas no dossel de sua cama, pensativo, ao responder:

— É só que... Eu acho que meu pai suspeita que... eu e você...

— Hum... É, também... Também tive essa impressão. – Comento, corando de leve.

— E ele... Agiu normalmente. Melhor do que normalmente. Não só naquela hora, mas a noite inteira. Não é?

­— E-eu acho que sim. Tem algo de errado? Você queria que eu...?

— Não! Não. É só... Ele te aceitou, Simon. Isso significa... Ele me aceitou.

— Oh, Baz...

O envolvo num abraço forte em questão de segundos e espero que ele entenda. Não sei exatamente quais palavras dizer ou o que significa se assumir para um pai e temer sua reação, mas sei que é algo importante e significativo.

Estou aqui, tento falar sem precisar abrir a boca.

— É besteira minha reagir assim. – Ele murmura contra meu peito, a voz de choro. – Eu já tinha contado que sou gay, mas ele nunca falou nada, então assumi algo ruim, sabe? Eu... nunca pensei que viveria isso. Tô tão feliz...

Sua voz quebra ainda mais na última sílaba e só posso lhe oferecer o aconchego dos meus braços e alguns beijos cheios de carinho que deposito em sua testa.

— Porra, Simon. Eu te amo tanto...

O ar me sobra e me falta. Minha magia vibra na ponta dos dedos e eu desenho estrelas em seus ombros e sua cintura. O aperto com ainda mais força, inconscientemente tentando fundir-nos para que assim ele possa saber o tamanho da emoção aqui em meu peito, mas meu vocabulário todo some e é muito, tanto e não o bastante e...

— Você sabe que não sou bom com palavras... Mas, eu... Eu...

— Shhh. Está tudo bem. Eu entendo, amor. Te entendo... Só me abraça, por favor.

Então eu o abraço e o beijo e o aninho junto a mim para velar seu sono enquanto o calendário transforma 24 em 25, derramando bênçãos natalinas sobre nós.

Um dia, Baz...— prometo a mim mesmo naquela noite, antes de dormir – Um dia vou ser capaz de traduzir pra você tudo isso que estou sentindo.

É uma sensação inédita e profunda, que parece transcender as três palavras costumeiras, mas acho que elas terão de servir, pra começar.

— Eu também te amo, Baz.

Me declaro, de toda forma. Mesmo que ele não possa me ouvir, mergulhado no mundo dos sonhos.

Mas está tudo bem.

Amanhã posso dizer de novo.


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Notas finais do capítulo

Curiosidade: Meu arquivo do Word ficou com exatas 25 páginas, o que achei propício para o Natal hahah
Boas festas e um 2022 cheio de fanfics! ♥



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