Escalada escrita por Lou5858


Capítulo 1
escalada - capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Blueberrytree, Dans e Taty, obrigada demais por terem segurado minha mão durante esse processo todo. Clozinha, meu anjo, obrigada pelo vídeo! Popô, te amo!



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~ ESCALADA ~

— Não me importa o que você vai fazer para chegar aqui. A Europa é pequena, então se precisar alugue uma moto ou venha correndo, Deus sabe que você poderia se beneficiar de um exercício físico. Mas se amanhã você não estiver aqui, nem apareça.

E desligou sem me dar oportunidade de explicar o ocorrido.

Suspirei cansada, porque infelizmente três anos na indústria da moda não foram suficientes para me preparar para esse tipo de tratamento. Minha chefe na Zoet Fashion não se interessava em saber que a razão pela qual eu estava presa em Berlim era porque o voo lotou e fui realocada para a manhã seguinte. E se ela não se importava, eu tampouco o faria. Liguei o iPod e deslizei o dedo no círculo central. Coloquei os fones de ouvido deixando o pop da Beyoncé dar firmeza aos meus passos e saí do aeroporto.

Na saída, busquei focar no padrão das tiras de camurça e couro metálico da minha sandália Légia, para me proteger de buscar meu reflexo em algum espelho e checar se eu realmente poderia me beneficiar do exercício. Cedi e notei no reflexo do vidro a seda perolada do meu vestido de saia franzida marcar o quadril, evidenciando a gordurinha acima da marca da calcinha. Dei tapinhas no tecido e suspirei arrependida por ter confiado que meu corpo acolheria calças de cintura baixa tão bem quanto os corpos de Paris Hilton e Britney Spears.

Minha imagem atual era irreconhecível. O look despojado era suficiente para que eu frequentasse as semanas de moda: corajoso e extravagante, mas completamente diferente de mim. O meu cabelo castanho estava cortado em chanel e tinha mechas acobreadas. Era moderno e exatamente o que Zoet Fashion esperava de seus funcionários.

Assim que me acomodei no táxi, o Nokia vermelho com arranhões e botões já amarelados por excesso de uso, que era tão de segunda linha quanto as minhas responsabilidades naquela empresa, ressonou em um toque estridente. Uma notificação de aviso de mensagem da minha chefe com uma demanda que eu definitivamente não conseguiria cumprir porque estava em outro país. Estafada, fechei os olhos e me permiti relaxar.

De dentro do carro notei a cidade passar e meus olhos se acostumaram com uma cultura que não era a minha. A estranheza gerava uma sensação de não pertencimento. Ainda assim, por razões desconhecidas, encostei a cabeça no vidro gelado e sorri. Pelos próximos minutos tentei adivinhar o significado dos vocábulos e lembrei que fiz o mesmo da primeira vez que estive em Berlim.

— Vou descer aqui, por favor — pedi ao taxista quando ele parou no semáforo.

— Não chegamos no hotel, senhora — explicou.

— Tudo bem. Aqui está bom.

— São 4,30 euros.

Saí do veículo, e mesmo sem saber onde estava, segui. Após alguns minutos de caminhada me percebi margeando o Rio Spree. Estremeci com a brisa outonal e amargurei a ausência da minha bagagem, despachada para Milão junto com minha chefe porque havia ali dois itens essenciais para a preparação do desfile.

Decidi usar as horas disponíveis para aproveitar a cidade e ao visualizar a estação do restaurante flutuante, entrei. Tão logo me sentei, aceitei a taça de champanhe oferecida pelo californiano bonito que estava na cidade a negócios.

Não sei exatamente em que momento parei de prestar atenção na conversa, mas meus olhos passaram a buscar pelas artes de rua que vislumbrei quando caminhei pela margem desse rio há algumas semanas. Sorri quando notei uma delas em uma parte do prédio espelhado. O grafite era enorme e tomava quase todo o muro. Era composto por uma criança que grafitava uma edificação que copiava a real, mas nas janelas do desenho as cortinas levavam estampas de dólares ensanguentados.

— Eu não consigo entender como algumas pessoas insistem na ideia de que grafite é arte. — Senti o vento da risada bater em meus cabelos e percebi que o americano bonito talvez estivesse perto demais.

— Você não acha que seja? — Virei o rosto com cuidado, me esforçando para manter uma distância educada.

— Claro que não. Aquilo ali é vandalização de propriedade privada. Arte é estudo e cultura. É requinte — murmurou essa última parte baixinho, me encarando com algo que eu poderia jurar ser malícia.

Em outras circunstâncias, provavelmente me interessaria saber o que ele considerava ser requintado, mas olhei por trás dos ombros e quando vi a pintura, suspirei. A ironia do desenho irretocável. Estiquei a conversa por mais um tempo até que o barco parou em uma das estações e ele se levantou para buscar mais champagne.

Enquanto esperava, observei a paisagem e vi uma construção grande na margem. Preservada em sua destruição, parecia ser uma ruína da guerra, algo não tão incomum em Berlim. Curiosa, peguei o paletó que o californiano deixou na cadeira e saí do barco.

Quando já estava segura na calçada, ouvi gritar meu nome de dentro do restaurante. Olhei por cima dos ombros, e a expressão que ele tinha no rosto era de irritação, especialmente quando o barco começou a navegar. Eu sabia que o gestual efusivo indicava que estava pedindo o paletó, mas pela primeira vez em muito tempo, não senti vontade de obedecer. Observei o barco se afastar da margem do rio e, sentindo a adrenalina do momento, acenei sorridente.

A impulsividade da minha ação gerou uma onda de contentamento que rapidamente se transformou em medo ao perceber dois homens andando apressados em minha direção com walkie-talkies nas mãos. O olhar atento sugeria que me tinham como objetivo. Talvez o californiano fosse mais que um rosto bonito.

Corri na direção contrária e me embrenhei em uma loja de departamentos. Esbaforida e sentindo meus músculos da perna queimarem pela breve, mas explosiva investida, decidi duas coisas: 1) seria impossível fugir usando salto e 2) eu definitivamente poderia me beneficiar do exercício.

Ainda na loja retirei os sapatos e relaxei. Depois de um tempo, já mais calma porque percebi que consegui despistá-los, saí. Quando dei por mim, estava nas proximidades de um enorme parque, que reconheci posteriormente como o Mauerpark.

Da primeira vez que passei pela locação há algumas semanas, notei uma multiplicidade exagerada de artistas de rua. Tinha de tudo. Vi estátuas humanas, adestradores de cães, de cobras e de aves. Poetas, palhaços e skatistas que andavam tão bem, que pareciam ser parte de um número ensaiado. Musicistas de todos os jeitos, e ainda aqueles menos tradicionais, que faziam som com o que estivesse disponível. Berlim tinha uma atmosfera cosmopolita e parecia imparável.

Deixei meus pés descalços me levarem onde eu sabia querer ir desde que me percebi presa na cidade: na esquina em que ele tocou no Mauerpark. Com alguma sorte, voltaria a encontrar o guitarrista ruivo de olhos verdes que vi quando estive na cidade para a Semana de Moda de Berlim.

A lembrança da primeira vez que o vi ainda estava latente. Me recordava com clareza da sensação de ser atraída para o parque por causa do som que ele fazia. No dia, eu estava voltando para o ateliê com algumas encomendas de minha chefe. As sacolas pesadas sendo a desculpa perfeita para que eu usasse aquele local para descansar.

Na ocasião, meus olhos rapidamente encontraram o dono da voz. O timbre que acompanhava o instrumento era tão bonito quanto o resto: aveludado, rouco e com um quê de mistério. O homem era branco e, à distância, parecia ter os olhos claros. Seus cabelos estavam escondidos por um boné virado para trás e o rosto tinha um maxilar marcado.

As roupas tinham alguns rasgos e manchas, e eram tão largas que possivelmente caberiam dois dele. Tinha uma corrente prateada pendurada no bolso da calça que balançava no ritmo que impunha à música. Usava um par de tênis encardido que pisavam em pedais que transformavam sua música em algo diferente de tudo o que já ouvi. A voz rouca, atraiu meus olhos mais uma vez ao rosto, e a ação me fez perceber que os olhos dele faziam em mim o mesmo que há instantes fiz nele.

Obviamente senti meu corpo reagir à atenção dispendida. Ainda assim, sentindo uma coragem que só possuía quando estava viajando, me permiti ser visualmente desnudada por ele. Quando nossos olhos se encontraram descobri que os dele eram verdes. Ainda segurando o meu olhar, mudou a melodia, mas agora dedilhando notas sensuais. O sorrisinho sacana que ele tinha no rosto mostrou que sabia o que estava fazendo.

A despedida precoce, naquele dia, veio com o toque estridente do meu celular. Esbaforida, cheguei ao ateliê e repousei as sacolas em cima da mesa de corte. Só então percebi que sequer descobri o nome do cantor. Quatro dias depois, quando finalmente tive um dia de folga, retornei ao parque, mas não o vi lá.

Hoje percebi que, ainda que a memória do encontro seguisse vívida, a esquina estava silenciosa.

Me sentei em uma arquibancada de cimento em meia-lua que margeava uma pista de skate. Meus olhos correram pelos meninos fazendo giros em bicicletas, pelos homens fazendo manobras aéreas no skate, pelos cachorros brincando, e pelo grupo de adolescentes fumando um baseado. Apesar de, aparentemente, estar fora da minha zona de conforto, me senti em paz.

Ainda em uma espécie de transe, notei a imundice dos meus pés e gargalhei. O vestido de seda e mangas bufantes completamente amassado pelo blazer, que estava enorme no meu corpo em um claro sinal de displicência. Dado às minhas atuais circunstâncias, era o auge de uma rebelião contra a indústria da moda.

Ouvi um ruído alto vindo de dentro do blazer e, curiosa, tateei os bolsos internos. O som vinha do Blackberry, que rapidamente desliguei. Além do celular, havia uma caneta dourada com uma inscrição em preto "U.S. Bancorp", alguns cartões de visita da mesma empresa em nome de J. Witherdale. Provavelmente de James, o californiano bonito. Tal como na estação do restaurante flutuante, deixei a adrenalina falar mais alto e joguei tudo no lixo.

Caminhei pelo gramado do parque em uma tentativa de limpar os pés, e enquanto andava, me surpreendi com um largo bloco de pedra avermelhado no meio do nada. Me aproximei o suficiente para ler a placa que explicava que aquele era um pedaço do Muro de Berlim. Ali aprendi que o parque ficava no que era conhecido por "faixa da morte", uma extensão curta de muro que dividia parte de Berlim e que dava aos soldados de guarda oportunidade de abater quem tivesse cruzado um dos paredões. Deixei meus olhos buscarem esse muro intermediário, que era divisa do que um dia foi guerra, e puxei o ar quando percebi ser todo coberto por grafite.

A arte que vi ali era revoltosa e reivindicava seu direito à vida ao se possuir de uma construção tão marcada pela guerra, transformando-a em um museu ao ar livre. Arte. A ironia do grafite no prédio espelhado, completamente apagada pela arte visceral exposta no muro à minha frente.

Nem sei ao certo por quanto tempo olhei aqueles desenhos, mas quando voltei a caminhar, já começava a escurecer. Coloquei uma lista de reprodução de música instrumental e fui para o metrô em um torpor. No automático, entrei no vagão, e por lá permaneci até entender que havia passado da estação.

Perdida, mas ironicamente consciente de que era impossível me perder sem possuir um destino, retirei os fones e me permiti voltar a escutar o mundo fora do iPod.

O som que me atingiu de imediato foi familiar e eu teria rido do clichê se não estivesse tão ansiosa em constatar que a voz vinda do vagão ao lado era mesmo a do cantor que vi no Mauerkpark da primeira vez que visitei a cidade. Notei quando passou o boné, coletando alguns trocados dos passageiros e permaneci imóvel até o metrô parar e ele descer. Agindo em um impulso pouco conhecido, também deixei o vagão e o segui para fora da estação e pelas ruas de Berlim.

Fui com cautela, e ainda assim senti um frio percorrer a minha espinha porque o local em que estávamos passava longe das áreas turísticas. Encostei no muro quando o vi entrar em um bar e enquanto deliberava a minha próxima ação, notei que ele rapidamente saiu do estabelecimento segurando um skate e uma mochila preta. Por um instante imaginei que viria em minha direção, mas após acender o que parecia ser um cigarro, seguiu na direção oposta. E eu? Segui.

No final do beco, havia uma barraca de comida, onde ele parou e pediu algo. Senti meu coração acelerar quando veio na minha direção. Tentei me mesclar ao muro, torcendo para ele não me ver.

— Falafel? — ofereceu, parando à minha frente, com uma naturalidade que era até difícil aceitar.

— Oi? — perguntei e afastei meu corpo quando aproximou a sacola de mim.

— Você fala inglês?

— Sim, sou americana — justifiquei com uma risada baforada, sem fazer a mínima ideia do porquê.

— Você está com fome, it girl? Quer falafel? — disse, levando o cigarro à boca. Observei com admiração enquanto fazia círculos com a fumaça.

— Por que você está me oferecendo comida?

— A gente andou bastante do metrô até aqui e eu imagino que você esteja com fome. — Deu de ombros. Observei tragar o cigarro.

— Você está fumando maconha? — indaguei, notando que o fumo já estava pela metade e era envolto por uma folha de seda marrom.

— Ainda não. Por quê? Você tem? — Estreitou os olhos e me vasculhou à distância.

— Não — respondi incrédula e ele sorriu.

— É, você não tem cara mesmo.

— Por que você está aqui? — perguntei, e espichei o corpo quando percebi que encostou no muro ao meu lado.

— Você vai querer ou não? — Ofereceu o bolinho, e eu só aceitei depois que o vi dando a primeira mordida. — Mas anda, me diga então por que você tá me seguindo?

— Como você sabe que eu estava te seguindo? — Ele sorriu e deu um outro trago no fumo. Enquanto isso observei a tranquilidade que sentia, mesmo ao lado de uma mulher que supostamente o seguiu. Ah os privilégios masculinos...

— Você não sabe passar despercebida nos lugares, não é? — Ofereceu o cigarro, e quando declinei descartou no chão.

— O que te indicou isso?

— Que você não sabe passar despercebida ou que você estava me seguindo?

— Que eu estava te seguindo. Que eu passo desapercebida eu sei. Costumo ser invisível nos lugares que frequento. — Pisei no cigarro descartado. — Faz parte do meu trabalho.

— Por alguma razão acho impossível que você seja invisível em qualquer lugar. — Me olhou de lado, disfarçando, mas notei quando seu olhar percorreu minha perna descoberta pelo vestido curto. Tentei controlar, mas senti as mãos suarem. Esfreguei no paletó, tentando afastar a insegurança, porque esse olhar estava preso comigo em um beco esquisito de Berlim. — Mas foi isso aqui. — Chutou de levinho a minha sandália com a ponta de seu tênis imundo. Ele tinha um sorriso pequeno nos lábios. — Da próxima vez que for seguir alguém, evite o salto.

Adicionando a lista de coisas que não se pode fazer enquanto usa saltos: 1) fugir de ricaços depois de roubar seus pertences, 2) caminhar na areia e 3) Perseguir músicos bonitinhos.

Voltei a me sentir confortável quando ele deu um passo para trás. Mordisquei a falafel enquanto o observava colocar o skate no chão e a praticar algumas manobras aéreas.

— Me diz então, se você acha que estou te seguindo, o que ainda está fazendo aqui? — perguntei quando ele voltou a parar em minha frente. Coçou a nuca e me fitou os olhos.

— Por alguma razão eu continuo achando que sou eu quem deveria perguntar isto. — O sorriso era torto e as sobrancelhas levantadas em uma expressão que era metade implicância e metade deboche. Os olhos eram definitivamente verdes.

— Você é americano, não é? Está aqui desde quando?

— Sou. Vim pra cá quando os Estados Unidos começaram a guerra contra o terror, e a minha lanchonete de comida árabe favorita fechou. — O tom era ao mesmo tempo jocoso e soturno. Estranhei.

— Então já tem uns três anos que você está aqui...

— Eu deveria ficar realmente preocupado com o quanto você me perseguiu?

— Não. — Mexi no cabelo, virando-o para o lado, um hábito comum quando eu estava nervosa. — Só acho que você fala bem alemão pra alguém que acabou de chegar. Mhm... Eu chutaria que chegou em 2001.

Ele estreitou os olhos e me fitou por alguns instantes. A expressão indecifrável.

— Quem é você?

— Ah! Desculpe, me chamo Isabella. — Limpei a mão engordurada no paletó e estendi em sua direção. Ele não apertou.

— Certo, mas quem é você? — Quando inclinei o rosto em dúvida, prosseguiu. — Por alguma razão você escutou meu alemão e descobriu o tempo que estou aqui e não parece intimidada com a minha presença.

— Eu deveria?

— Você só fala em perguntas? — exasperou virando o boné para frente e voltou a subir no skate. — Por Deus, mulher, o que você quer comigo? — disse logo que tombou depois de uma manobra mal sucedida.

— Eu já disse ué! Eu não estou te seguindo por uma razão específica, só... sei lá — justifiquei com naturalidade, mas por dentro estava puta que ele não se lembrou de mim.

— Sei lá... — repetiu. — Para alguém tão bem-vestida você deveria ter um vocabulário melhor. — E lá estava outra vez aquele sorriso. Rolei os olhos e abaixei para buscar o cigarro descartado. Coloquei na sacola onde antes estava a comida.

— Você vai fazer algo por agora? — perguntei enquanto descartava na lixeira há alguns metros dali, quase na esquina da rua. Não vi em que momento a expressão se transformou em uma gargalhada, mas quando virei o rosto fui incapaz de controlar a minha em resposta.

— Você está me chamando pra sair? — E o tom era tão incrédulo que me fez rir.

— Não. Só curiosa mesmo.

— Com o quê?

— Com o que um musicista-skatista-migrante faz em uma quarta-feira à noite em Berlim.

— Por deus, quem é você? — repetiu com um tom ultrajado, mas agora a expressão parecia mais suave.

— Já disse. Bella, a americana.

— Vamos fazer assim: te conto o que tenho planejado se você me falar de verdade sobre você. — Pegou a mochila de forma teatral, como se a bagagem estivesse segurando o mistério do universo. — Não adianta, você não vai acertar o que tem aqui — explicou, provavelmente em resposta à minha tentativa de aproximação assim que ouvi o barulho de metal se chocando dentro dali.

— Eu trabalho em uma grife feminina de alta costura — bufei. — E devia estar agora em Milão, mas deu lotação no meu voo e ganhei uma noite em Berlim. — Estreitei os ombros como se fosse óbvio. — Eu tenho 24 anos, nasci em Washington, mas fui criada em Phoenix e depois me mudei para Nova Iorque, onde estudei design de moda. Moro lá até hoje e quase adotei um gato. Há umas três semanas estive aqui pra Semana de Moda de Berlim e te vi tocando no Mauerpark, e acho que é por isso que decidi te seguir… uma tentativa inconsciente de me apegar a um rosto familiar... sei lá — frisei a última parte com deboche.

— E aí você achou prudente me seguir até Mitte?

— O que é isso?

— Mitte? — Arregalou os olhos e parou à minha frente. — É o bairro em que estamos. — O rosto parecia apreensivo.

— Ah...

— Onde você está hospedada?

— Perto da Potzdamme.

— E o que você está fazendo aqui? — Tinha um tom alarmante na voz. Era sutil, mas estava ali. — Você não tem mesmo medo do perigo?

— Eu estou em perigo?

— Isabella você está drogada? — Aproximou nossos rostos, provavelmente tentando ver a minha pupila.

— Não estou.

— Estou preocupado com você.

— Eu deveria ter medo? De você, digo…

— Não! Quer dizer, sim! — Segurou o skate debaixo do braço. A expressão incrédula era complementada por um sorriso tentativo. — Você deveria ter muito medo de estar sozinha com um berlinense fudido.

— O beco não está exatamente vazio... — Apontei com a cabeça para o bar de onde ele saiu há poucos instantes. — Além disso, estou quase certa de que você não é berlinense. — Sorri e dei um passo na direção da rua. — Então me conta, você está fazendo o que aqui há três anos? E o que vamos fazer hoje à noite?

— Deixa eu reformular, Bella... Eu deveria estar com medo? — Gargalhei alto quando notei que sorria, e o puxei pelo braço.

— Vem, vou te pagar uma bebida.

Por mais preocupante que isso fosse, a única coisa que senti foi a excitação de fazer algo que eu definitivamente não deveria. Por isso quando ele maneou a cabeça me olhando com descrença, sorri.

Alguns minutos e pouca conversa trocada depois, eu estava em cima do skate sendo puxada por ele. O segurava pelo ombro e reclamava que ia cair a cada metro percorrido. A alegação de que meus pés estavam doendo era real, mas talvez tivesse me usado disso para meu próprio conforto.

— Onde estamos indo?

— Hackesche Hofe. É um espaço meio esquisito aqui em Berlim, mas é bacana e tem cerveja boa.

Caminhamos por mais algum tempo até que ele apontou para uma espécie de rua sem saída que era composta por uma porção de prédios coloridos. O espaço estava cheio de lâmpadas decorativas.

— Mhm... De todos os lugares que fui, o que mais gostei de conhecer foi Grécia. Passei uma temporada lá com um ex — respondi e flexionei os joelhos acima do skate tentando fazer uma curva sozinha. Ele me olhou e sorriu. — Acho que os gregos têm uma energia diferente, sei lá. Ei, sabe o que eu acabei de perceber? — Ele me olhou com uma sobrancelha levantada. — Que eu nem sei seu nome. — Ri e o segurei pelo braço, freando o skate de maneira descoordenada. — Cacete, eu preciso comprar um sapato mais baixo.

— A companhia aérea te colocou em um hotel, certo? Quer passar lá pra trocar? O plano é me mover muito hoje à noite, e como estou quebrado, estava planejando ir de skate mesmo. A pé agora, né? — Olhou de maneira pontual ao seu skate que agora era meu meio de transporte.

— Minha mala foi pra Milão.

— Eita, e agora?

— Pego amanhã quando desembarcar, ué. — Tonteei ao descer do skate, mas me mantive de pé.

— Tudo bem? — perguntou em meio a uma risada.

— Acho que a anatomia do meu corpo já se acostumou com meus desequilíbrios — disse com um suspiro teatral. — Mas me fala, qual seu nome? — Ele pisou no bico do skate para levantar o objeto e o colocou debaixo do braço.

— Edward — respondeu depois de um segundo que pareceu longo demais.

— Por que me parece que você mentiu? — Estreitei os olhos e ele riu.

— Não menti. Juro! Só fiquei indeciso. Ali. — Apontou para uma barraquinha quando fiz menção de falar. — Quer comer algo também ou vai só de cerveja?

— Só cerveja, mas sai pra lá porque quem vai pagar sou eu! — protestei e tomei sua frente. — Mas qual é a cerveja boa daqui? — Ele sorriu, falou algo em alemão com o vendedor e pegou duas garrafas com um rótulo colorido.

— Deu 3,40 euros. — disse ele. Entreguei o dinheiro e estreitei os olhos pra cerveja. — Que foi? Por que tá olhando esquisito assim?

— A gente vai beber quente assim mesmo? — reclamei e ele riu. Bateu sua garrafa na minha e deu um longo gole. — Isso parece uma sopa de cevada engarrafada!

— Para de drama e toma logo. — Riu. — Esse tipo de cerveja não se bebe gelada. — Choraminguei, mas bebi conforme me indicou.

— Me fala mais daqui? Não consigo te visualizar frequentando um lugar como este — ponderei, observando a arquitetura vibrante e moderna. Voltei os olhos a ele e constatei que com sua aparência desleixada, definitivamente não encaixava naquele espaço.

— Um lugar como este?

— É... Não sei definir ao certo. Ele parece local, claro que parece, mas ao mesmo tempo é tão turístico. Pouco espontâneo, sabe?

— Diferente de mim?

— Totalmente. — O fitei e notei que ele sorria. Aquele sorriso que me lançou da primeira vez que o vi. — Você jura que não lembra mesmo de mim? — perguntei antes de conseguir frear. Às vezes minha boca trabalhava antes do cérebro.

— Não.

— Não lembra ou não jura? Porque quan-

— Vem. Você não me visualiza aqui porque eu não frequento esse lugar — disse e pegou na minha mão. — Aqui só é passagem, mas vou te levar mesmo pros fundos da Hackesche Hofe. Pra sorte dele, eu era mais curiosa do que orgulhosa.

— Por quê? O que tem lá pra mim?

— Pra você não sei, mas é uma galeria de arte. Antigamente tinha várias pessoas em situação de rua que moravam lá, mas foram expulsas pros turistas entrarem.

— E por que você está me trazendo aqui então? — Olhei em volta, observando várias pinturas, colagens em estilo lambe-lambe e grafites.

— Porque a vida não é justa e é deste tipo de migalha que pessoas como eu sobrevivem. — Quando o olhei, notei que tinha uma sobrancelha levantada.

— Você conhece algum desses artistas? — perguntei. Ele acenou com a cabeça e me guiou até um portal, onde havia um grafite enorme cobrindo sua extensão. Era um arco formado por desenhos de munições em escala de cinza. Na lateral, ao lado da única manchada por tinta vermelha, havia a assinatura "Maze". Olhei de perto e me encantei com o realismo de uma pintura feita com spray de tinta.

— Quem é? — Acariciei a única palavra daquela obra. — O que é isso?

— Uma bala para cada espancamento sofrido por um árabe aqui em Berlim no ano de 2002. Esse aqui foi para Benjamin.

— Quem? — perguntei com uma suavidade irreconhecível na voz.

— Meu vizinho egípcio. Acharam que as latas de tinta que tinha na mochila eram bombas. — Arfei e, instintivamente, segurei sua mão.

— Sinto muito — sussurrei. — Sinto muito mesmo — repeti com um pouco mais de força enquanto acariciava a parte vermelha do desenho. Ele apertou a minha mão em resposta.

— Maze é você? — Edward maneou positivamente a cabeça. — Tem mais?

— Não aqui. — Pigarreou. — Beba a sua cerveja... Vai esquentar — disse com um sorriso pequeno.

Conversamos mais algum tempo naquele espaço, mas Edward não me contou muito de si. Exceto que aprendeu a grafitar em Chicago, onde morou antes de se mudar para a Alemanha. Disse também que se mudou para o país porque decidiu seguir a irmã, que, por sua vez, seguiu um alemão tatuador por quem se apaixonou em um festival em Vegas. Eu contei sobre meu objetivo profissional de criar minha grife, e sobre trabalhar com artistas locais no desenvolvimento de estampas. No meu futuro ideal, confidenciei, minhas peças seriam sustentáveis e livres de trabalho escravo.

— Eu vou seguindo a maré — explicou depois de eu insistir que me explicasse como era seu processo criativo.

— Isso não é bom o bastante! Você nem desenha? Não faz esboços?

— Às vezes sim, mas não é regra. Eu só não planejo mesmo. Já teve vez de mobilizar maior galera pra fazer uma coisa e acabar fazendo outra.

— Mas Edward… Seus grafites não dependem que você cometa crimes? Como você corre esse risco sem planejamento?

— Crimes? Não exagera, modelete. São só algumas transgressões — respondeu rindo enquanto me puxava, porque eu obviamente tinha voltado para cima do skate. — Espera aí, tive uma ideia.

Notei Edward pegar uma corrente prateada e prender no botão do paletó que eu ainda vestia. Em seguida me sorriu com o rosto inteiro e deu uma corridinha, puxando-me consigo. O skate se moveu e eu me esforcei muito para conseguir me manter de pé. Não deu certo, e o plano acabou comigo no chão.

— Bella, não vai dar pra eu continuar te arrastando por Berlim se eu quiser fazer tudo o que preciso fazer hoje. A gente vai precisar comprar sapatos novos pra você ou roubar uma moto — disse com tanta assertividade que só consegui gargalhar. — O quê? — perguntou e eu percebi que ele tentava esconder o sorriso.

Andamos até chegar na Alexanderplatz, que reconheci por causa da enorme Torre de TV. Notei os vários turistas tirando fotos no relógio mundial e lembrei que ainda precisava revelar o filme das fotos que tirei aqui da última vez que estive na cidade.

— Aonde vamos agora?

— Você parece uma criança. Relaxa e aproveita o tour guiado por um local. — Fez um floreio com as mãos indicando a direção do relógio mundial e eu gargalhei.

— Edward, você não é um berlinense!

— Para de rir, Bella. Sou mais local que você. Se eu te largar aqui você não sabe nem pedir informação. Credo, que tapa ardido! Mas é sério, ué! — Riu. — Você sabe pedir ajuda em alemão?

— Não, mas eu sei te empurrar na frente desse ônibus, então se liga hein? — ameacei com os olhos semicerrados, mas ele sorriu. Completamente não intimidado.

— Quero te levar na Mulholland Drive. É um pub onde um camarada meu vai tocar hoje. — Riu, provavelmente da minha expressão de consternação.

— Camarada? Meu Deus, agora além de berlinense você acha que é comunista? — Ele deu de ombros e sorriu.

— Consciência de classe é tudo o que importa, bonitinha. — Rolei os olhos e brinquei com o isqueiro dele. Ele bateu o ombro no meu e sorriu e assim, contra a luz da cidade me arrependi da mala despachada pra outro país porque não conseguiria tirar uma foto dele. — Tudo bem se a gente for ou você quer fazer outra coisa?

— Tudo bem, mas a gente não pode pegar um táxi?

— Eu tô com a grana contada — explicou.

— Eu pago, Edward! Pelo amor de Deus, o problema é esse?

— Eu não sabia que estava andando com uma magnata.

— Não crie expectativas porque eu só tenho um cartão corporativo.

— Por mais que gastar o dinheiro de uma estilista rica seja tentador, quero testar mais uma coisa antes ser seduzido pelo conforto do capitalismo — disse, levantando as sobrancelhas. Balancei a cabeça, sorrindo e notei quando ele parou à minha frente. O ar ficou até mais pesado quando percebi o quão próximos estávamos.

Ao longo das últimas horas a atração sexual que me fez tomar a ação impulsiva de segui-lo, foi pouco a pouco se transformando em um sentimento de conforto. Era fácil conversar com ele e eu estava me divertindo tanto, que a vontade de levar Edward direto pro meu quarto do hotel, cada vez cedia mais espaço à vontade de jogar conversa fora.

No entanto, quando ele parou na minha frente e colocou uma mexa do meu cabelo atrás da orelha, sem pressa em retirar a mão da minha pele, nos olhamos. Foi a partir daí que percebi que o conforto devolveu o espaço à atração. Ele me encarou em silêncio com aquele mesmo sorriso sacana que tinha nos lábios da primeira vez que o vi. Ficava cada vez mais difícil acreditar que ele não lembrava de mim. Senti as minhas mãos suarem quando ele fitou meus lábios e acariciou meu maxilar. Segurou meu queixo com a pontinha dos dedos, enquanto seu sorriso ia minguando. O olhar cada vez mais intenso me fazia sentir uma sede por ele quase inexplicável. Eu não sabia se era impressão, mas parecia até que nossos corpos estavam ainda mais próximos. Antes que pudéssemos reagir à atração, ouvimos o barulho alto de buzinas de carros que passavam na avenida ao nosso lado.

— Você confia em mim? — disse e levou os olhos aos meus.

— Eu não sei — murmurei de maneira honesta. Ele riu.

— Agora... Depois de horas zanzando comigo, decide que não sabe se confia em mim? — Balançou a cabeça incrédulo. — Você é incorrigível, Bella.

Dei de ombros e apertei o paletó no meu corpo quando senti um arrepio me percorrer. Não estava certa se por ele ou pelo frio. Edward virou de costas para mim e flexionou os joelhos, ficando um pouco mais baixo do que eu.

— O que tá fazendo?

— Vem. Sobe.

— Quê?

— Confia em mim — pediu, me olhando por cima do ombro. Rolei os olhos e bufei, mas pulei nas suas costas.

— Tá todo mundo vendo a minha bunda — choraminguei e ele riu. Tirei o boné da cabeça dele e coloquei na minha. Edward apertou minhas pernas que envolviam sua cintura e pulou no skate.

Foi fácil confiar depois disso. Logo apoiei meu queixo no ombro para ouvi-lo falar com mais clareza sobre os locais por onde passávamos. Me impressionou sobre como tudo ali respirava história. A catedral de Berlim que sobreviveu aos bombardeios de tantas guerras, o Memorial da Queima dos Livros na Gendarmenmarkt que só era percebido por aqueles que estavam realmente procurando.

A partir dali, fiquei em um silêncio pouco comum quando ele me levou para conhecer a Topografia do Terror, o Bunker de Berlim e o Checkpoint Charlie, outros pontos turísticos que marcaram o horror da guerra. Apesar do peso de cada um dos espaços, a cidade trazia sua versão da história em uma narrativa singela. Edward me mostrava que Berlim não era nem de perto uma cidade óbvia, e seu passado, por mais demarcado que estivesse, era sutil e cheio de detalhes.

Quando chegamos no boulevard Unter den Linden, caminho que levava aos Portões de Brandemburgo, ele desceu do skate e fez um carinho na minha coxa direita. Perdida em pensamentos, fiquei alguns instantes encarando a rua margeada por árvores cobertas por luzes. Voltou a acariciar minha pele, e percebi que era sua forma de pedir que descesse. O fiz e fui de imediato abraçada.

— Foi uma péssima escolha de passeio, né? — murmurou, apoiando a bochecha acima da minha cabeça. — Foi mal eu sou um pouco existencialista e aparentemente questionar a existência humana é minha melhor ideia de romance.

— Você está de romance pra cima de mim, Edward? — Levantei as sobrancelhas sugestivamente e gargalhei quando percebi que seu rosto foi tomado por uma expressão sacana. — Foi um ótimo passeio. Obrigada. Só fiquei reflexiva sobre como a história aqui parece ter um lado só. — Apertei o antebraço e o puxei na direção de um dos principais pontos turísticos do país. — Você já considerou grafitar monumentos?

— Já. Claro que já! Acho que todo grafiteiro adolescente que se preze já sonhou em fazer um pixo no Monte Rushmore.

— O que mudou?

— Eu descobri que não quero deixar esse tipo de marca. Depredar por depredar não faz sentido.

— Que tipo de marca você quer deixar?

— Quero que a minha arte seja significativa. Não quero ser o moleque revoltoso que foi preso por depredação do patrimônio público sem deixar nenhuma mensagem. Mas, sei lá, ao mesmo tempo eu gosto da ideia de ser também o artista que faz uma puta escalada e grafita a piroca do Marx na principal estrutura de simbolismo do sistema financeiro moderno. — Deu de ombro e eu ri, novamente em cima do skate enquanto era puxada por ele.

— É isso que o grafite é pra você?

— Não sei... Às vezes acho que o grafite é mesmo coisa de quem não tem o que fazer — disse rindo. — Porque, porra… na maioria das vezes é só um bagulho divertido mesmo. Sei lá, você tem ideia do que é ter uma linguagem, um estilo de vida que só pessoas como você conseguem entender? Grafite é isso, sabe? A gente acaba conversando muito mais entre a gente do que mandando mensagens pra sociedade.

— E em qual desses extremos você tá? No que acha que o grafite tem que ser uma mensagem para pressionar o sistema ou um estilo de vida divertido e despretensioso?

— Um não anula o outro e penso que passeio pelos dois. Grafite é uma expressão urbana da arte que é divertida e importante pra cacete. Arte de rua é essencialmente ilegal, e ainda assim, os policiais não são tão engajados na captura do grafiteiro. Sabe por quê?

— Talvez por que não seja óbvio quando é arte ou quando é vandalismo?

— Sim. É paradoxal, não é?

— Ainda assim, tem algo grandioso em marcar algo como isto — murmurei encarando e apontando para a enormidade do Portão de Brandemburgo, por onde passávamos debaixo.

— Acho que tem seu valor. Tem um quê de fazer exatamente o que o sistema te proíbe de fazer. Os monumentos existem pra história não morrer, né? Mas se a gente destrói os símbolos, o que nos resta?

— Acha que é uma forma de se apropriar de narrativas? — refleti animada, imaginando o portão por onde Napoleão passou quando tomou a Alemanha abarrotado de grafites.

— Acho, mas ao mesmo tempo acho que fazer um pixo de uma rola em um arranha-céu de algum milionário, é mais interessante do que um tag nos portões de Brandemburgo. — disse com um sorriso de canto de boca. Ri da expressão, mas o olhei por uns instantes sem saber exatamente qual era o meu estranhamento. — O que é? Por que você tá me olhando assim?

— Você sabe que não entendo nem metade das coisas que você fala, né?

— Que? Como assim? Perdi a capacidade de falar minha língua natal?

— Não — ri e o empurrei com o ombro. — Escalada? Pixo? Tag? — questionei enquanto pagava mais duas cervejas.

— Escalada é quando a gente sobe pra largar o pixo, ou o grafite, em prédios e fachadas. Obviamente na alta madrugada, e quanto mais alto melhor. Ah... pixo é o escrito, grafite é o desenho, sabe? E a escalada é o ponto mais alto da carreira de um pichador — disse, rolando os olhos, mas o sorrisinho intacto. — Tag é a assinatura do grafiteiro. Valeu. — Tocou sua garrafa na minha em um brinde e deu um gole.

— Parece perigoso... — Bebi a cerveja em uma tentativa de engolir suas palavras.

— Sim, mas isso é apenas uma parte da graça.

— Parece extremo.

— E essa é apenas a outra parte. — Rolei os olhos. — Tudo o que eu faço na minha vida é extremo. Já te falei, eu sou existencialista. — Me puxou para perto de si e cutucou minha costela. Não fazia ideia do porquê estava com essa sensação de preservação, mas não gostava da ideia de vê-lo em perigo. — Porra Bella, agora sério... A vida é uma só. Todo dia eu acordo quase morrendo sufocado pelo capitalismo... E entre matar ou morrer, eu prefiro matar.

Rolei os olhos, mas bati meu ombro contra seu corpo. Ele me aninhou em seu braço enquanto caminhávamos pela praça.

— Como tá seu pé? — perguntou quando segurei o cós da sua calça com minha mão livre em resposta ao seu braço nos meus ombros.

— Tudo bem, tô acostumada a passar o dia inteiro de salto.

— Isso não me parece saudável, nem seguro.

— Ah tá... porque subir num arranha-céu pra desenhar uma rola comunista parece o estado da arte da segurança. — Ele riu e pegou seu boné de volta. Quase argumentei, mas ele tinha um sorriso tão bonitinho que me perdi no momento. — Vamos comer antes de ir pro pub?

— O que você quer?

— Me surpreenda. — Edward segurou minha mão e me puxou para dentro de um ônibus. Pegou algumas moedas e pagou nossa passagem ao motorista.

No caminho apontou para outros espaços, me contando histórias ali vivenciadas. Quando chegamos ao destino, minhas bochechas estavam doloridas de tanto rir porque suas histórias sobre o primeiro ano em que passou na cidade eram hilárias. Entramos em um restaurante chamado Curry 36 e torci para que não fosse indiano. Beijar a boca desse homem — e eu beijaria aquela boca — com gosto de molho apimentado tipo sriracha não era exatamente como eu pretendia que nossa noite seguisse. Não entendi o que ele pediu, mas sorri quando pouco tempo depois chegou salsicha com batatas e mais cerveja.

— Ei, ei, ei! A currywurst é minha, sai pra lá — disse ele levantando o prato, tirando do meu alcance. O olhei ultrajada.

— O quê?! Eu te peço pra me surpreender e você pede batata frita? Pra uma americana! Você tá me sacaneando? — Ele estreitou os olhos, se aproximou de mim e falou alguma coisa em alemão. — O que você disse? — sussurrei sentindo o coração no pescoço.

— Que "tudo tem um final, menos a salsicha que tem dois". — Notei o lábio tremer e cerrar, impedindo o sorriso de escapar.

— O quê?

— É um ditado popular daqui. — Rolou os olhos de maneira divertida e deixou escapar o sorriso. — Mas meu ponto é que eu não pensei em te pedir a salsicha porque quando eu olho pra você, o fim é a última coisa que passa pela minha cabeça. — Levantou as sobrancelhas sugestivamente. Seu tom de voz era ridículo, meio grave, e eu tinha certeza de que tentava imitar um locutor.

— Ah não... Você não mandou essa, cara. — Ouvi uma voz feminina por trás da minha cabeça e sorri quando notei a expressão desavergonhada de Edward.

— Tô tentando o meu melhor aqui, Rosie — disse. — Ela é dura na queda.

Virei o rosto e percebi que ele abraçou uma mulher enquanto murmurava algo em alemão. Quando a soltou, encarei a pessoa à minha frente. Os olhos azuis eram expressivos e marcavam o rosto feminino. Os cabelos loiros eram compridos, raspados na lateral e as pontas eram roxas. As roupas que vestia certamente poderiam ser usadas por Avril Lavigne no seu próximo clipe.

— Rosalie. — Estendeu a mão na minha direção. — Já peço desculpas antecipadas por esse babaca — disse em inglês, com sotaque, assim que apertei sua mão, mas o sorriso nos lábios indicava que estava brincando.

— Bella. Muito prazer.

— Americana?

— Meu Deus, eu só falei por dois segundos! — exclamei rindo.

— A gente é treinado para identificar vocês de longe.

— Eu ia passar lá na sua casa daqui a pouco, Rosie.

— Pra quê?

— Pra ver minha querida amiga que não vejo há semanas...?

— Não fode. Pra que você ia lá em casa, Maze? — disse em um tom sério, mas ele gargalhou.

— Queria saber se você podia emprestar algum sapato pra Bella. Acho que vocês calçam parecido — afirmou em um tom inquisitivo e ela maneou a cabeça. Mexi no cabelo, trocando o lado da divisão tentando fingir que não estava tão deslocada.

— Vocês vão no Herakut?

— A ideia é essa.

— Sério? — Ela o olhou com as sobrancelhas franzidas, e, em seguida, me encarou.

— Só estou seguindo. Juro. — Levantei as mãos e ela riu.

— Tudo bem você ir, só estou surpresa. Toma — disse e entregou algo ao Edward.

— Valeu. — Guardou as chaves no bolso.

— Coloca no esconderijo depois, tá? Talvez a gente se veja mais tarde se eu conseguir fechar o braço do cliente.

— Vou torcer pelo mais tarde então.

Ela piscou um olho pra mim, pegou a salsicha do prato esquecido e correu para fora do restaurante antes que ele pudesse reagir.

— Interessante a sua amiga.

— É a minha tatuadora — explicou. — A gente se conheceu na minha primeira semana aqui. Eu estava precisando de grana e ela me ofereceu um espaço para ser sua assistente quando viu uns desenhos meus, mas não curti o trabalho, aí saí de lá, mas ela segue na minha vida até hoje.

— E esse evento, é o pub? — perguntei logo depois dele pedir mais duas porções de currywurst.

— Não. Herakut é uma dupla de grafiteiros que vão pintar um mural hoje e eu queria te levar pra ver como é o grafite em sua mais fina pompa. — Rolou os olhos. — E aí sim te levar pra conhecer os perrengues de quem não tá no topo.

— Como assim?

— Herakut é a junção de Hera com Akut. A Hera é formada em arte clássica e estudou design gráfico, e o Akut é um grafiteiro renomado para cacete. Eles decidiram fazer arte juntos. É bonito, e é a parte do grafite que é vista como arte. — Assenti e peguei a salsicha. — Queria que você visse como funciona quando o grafite é apropriado pelo sistema.

— Mhm isso aqui é gostoso demais! — exclamei depois de engolir. — Puta merda, Edward! Maze. Eu devo te chamar de Edward ou Maze?

— Edward é meu nome de nascimento. — disse e aproximou o rosto do meu. — Maze é minha tag no pixo — sussurrou no meu ouvido. — Me chama do que quiser, mas se essa informação vazar eu vou até o inferno te caçar. — Apertou a minha cintura e instintivamente me aproximei. Ele roçou os lábios embaixo da orelha, mas logo se afastou.

Na casa de Rosalie, ele pegou o primeiro par de tênis que encontrou e vasculhou o ambiente até achar um par de meias limpo. Deixamos minha sandália, o skate e a mochila de Edward no canto da sala. Antes de sairmos, passamos no banheiro onde saqueamos um pouco de flúor dental e duas cervejas da geladeira. O caminho até o pub foi curto porque ficava na rua de trás. A porta era pequenininha, mas o letreiro que indicava a entrada era enorme.

Edward me puxou pela mão, fez um aceno com a cabeça e falou algo em alemão para o segurança da porta que nos deixou passar. Quando cruzamos a entrada, ouvi alguém do lado de fora chamar por "Maze" e fiz menção de parar, mas ele seguiu me puxando.

— Eu acho que ouvi te chamarem.

— Eu sei.

— Não vai falar com a pessoa?

— Hoje não.

O pub estava lotado. A luz era baixa e o cheiro era terrível. A música era um eletrônico que me irritava e as pessoas estavam tão drogadas que eu só queria sair dali. Edward me segurou pela cintura e nos direcionou por entre aquelas pessoas até o bar.

Foi depois que ele me posicionou à sua frente, com minhas costas encostadas em seu corpo, que aquele ambiente deixou de ser um problema. A música eletrônica criava o anticlímax ideal para o que eu estava sentindo, mas a respiração quente dele no meu pescoço e a forma com que seus dedos passeavam tentativos pelo meu quadril, me faziam esquecer de tudo exceto nós dois.

Observei quando o bartender depositou à nossa frente as duas cervejas que pedimos e paguei, antes que Edward pudesse fazer menção de fazê-lo. Torci para que a bebida estivesse gelada para refrescar o inferno que ele criava em mim. Dei um longo gole e deixei minha cabeça cair para trás, apoiando no peitoral dele. Edward espalmou a mão na minha barriga e aproximou mais os nossos corpos. Eu sentia as batidas aceleradas da música eletrônica em compasso com as do coração dele contra meu ombro. Espichei o corpo, empinando a bunda e sorri quando me apertou. Não tardou para sua mão acariciar minha barriga por cima da seda do vestido.

— Tudo bem se eu te tocar assim? — murmurou baixinho enquanto o fazia com uma suavidade indecente. Fechei os olhos e mordi o lábio para impedir que escapasse um gemido. Notei que ele encarava o meu reflexo no espelho à nossa frente e a intensidade da sua expressão foi suficiente para criar um rebuliço inteiro dentro de mim. Com a mão trêmula, coloquei a garrafa de volta no balcão e tateei atrás de mim. Agarrei o tecido da calça e o trouxe para mais perto. — Eu quero muito beijar a sua boca — murmurou e senti a ponta gelada do nariz roçar a pele do meu pescoço. Deixei a cabeça cair para trás, apoiando-a no peitoral dele. A mão transpassada no meu tronco me apertou contra si. — E você? Puta merda, Bella, eu tô enlouquecendo aqui pensando no seu gosto. — A minha única reação possível foi virar o rosto em busca de seus lábios com uma afoita descontrolada.

Nossas bocas se encontraram em um beijo indecente. Edward era grande, e tão perto assim parecia cobrir meu corpo todo. Seus braços me tomavam em uma avidez pornográfica. Meu vestido, curto, não tardou até ficar com a saia franzida na altura do quadril. Eu não sabia se o paletó escondia a minha seminudez, e tampouco me importava. Não morar nessa cidade fazia da obscenidade algo ainda mais excitante.

Eventualmente passou a beijar meu ombro, puxando o paletó para baixo e abrindo caminho pelo tecido da manga bufante que cobria meu ombro. O vento gelado no meu mamilo foi a evidência não requisitada da minha seminudez.

— O seu amigo realmente precisa de você aqui? — gemi quando senti a evidência do seu tesão.

— Hm? — Sua boca agora chupava atrás da minha orelha enquanto seu dedo apertava meu mamilo por dentro do meu decote V.

— A gente precisa ficar aqui? — perguntei ofegante quando ele gemeu no meu ouvido ao roçar sua excitação na minha bunda. Senti sua mão, perdida dentro do meu decote, descer pela minha barriga até me apertar por cima da calcinha. — Pelo amor de Deus, Edward! Foco! — exclamei.

— O quê? — ofegou e imediatamente soltou meu corpo, quase como se só agora estivesse recobrando a consciência do que estava fazendo. — Puta merda, me desculpa. — Pigarreou. — Me descontrolei.

Virei meu corpo, ficando de frente para ele e gargalhei quando notei o estado físico dele. O rosto completamente vermelho combinando com os lábios inchados, a pupila dilatada deixando um círculo esverdeado fininho à mostra e a respiração acelerada faziam dele quase uma miragem.

— Você precisa estar aqui? — perguntei.

— Não tanto quanto achei. — Me olhou e sorri quando notei que ele abaixou meu vestido, cobrindo-me.

— E seu amigo?

— Ele vai sobreviver.

— Me leva pra sua casa então.

Por sorte ele morava no fim da rua. O estúdio era pequeno o suficiente para que passássemos as próximas duas horas transando em quase todas as mobílias disponíveis.

Minha garganta estava seca, eu estava faminta e exausta. Minhas coxas estavam doloridas e um pouco assadas na parte interna e os três pacotes de camisinha espalhados pela casa eram evidência de que o sexo foi muito mais do que eu poderia esperar.

No banho, enquanto notava as partes em que ele me ensaboava, percebi várias manchas vermelhas pelo meu corpo, e quando esfregou a espuma do sabonete no meu sexo, senti incômodo.

— Que foi? — perguntou com suavidade.

— Sexo demais para tempo de menos — comentei e beijei a ponta dos dedos que me acariciavam o rosto.

— Desculpa.

— Pelo quê? — perguntei e entrei debaixo do jato do chuveiro, deixando a potência da água relaxar meus músculos.

— Eu não fui exatamente gentil.

— Você foi perfeito. — O beijei no queixo. Edward baixou o rosto e colou nossos lábios com uma gentileza que, de fato, não se fez presente nas últimas horas. — Sério, tá tudo bem. Eu também não fui gentil. — Pisquei e beijei um arranhão no seu peito, feito no ápice do meu primeiro orgasmo.

Voltou a me beijar com uma vontade que deixava evidente a intenção de ir além, mas antes de conseguir aprofundar, a campainha tocou. Ele me encarou em dúvida, como se fosse uma visita minha e então sua visão pareceu clarear.

— Já vou! — gritou na direção da porta. — Deve ser a Bag. Espera aí — pediu e saiu tão rápido do banheiro que nem vi se conseguiu se secar.

Encarei intrigada a toalha jogada em cima da pia e o reflexo da bunda no espelho. As costas musculosas e brancas contrastando com os braços coloridos por tatuagem.

— Porra, Edward, que inferno, cobre o pau! — Ouvi uma voz feminina reclamar na direção da sala. Edward gargalhou, mas não ouvi o resto porque abri a cortina do banheiro no mesmo momento.

Me sequei rápido, mas fiquei indecisa quanto ao que fazer, eu sequer tinha roupas para vestir ao meu alcance. Sentei-me na privada e esperei por um sinal, que não demorou muito a aparecer.

— Você precisa de algo, Bella? Tá tudo bem aí? — Ouvi a voz dele mais próxima.

— Eu não tenho roupas aqui — murmurei.

— Aparentemente nem ele — disse a mulher, que eu supunha ser Bag. O apartamento era realmente pequeno. — E isso não o freou de vir me receber com o pau balançando.

Completamente confusa, prendi a toalha no corpo e saí do banheiro. Pra minha surpresa, a primeira coisa que percebi foi um homem loiro sentado no batente da janela. Ele vestia uma camisa preta larga, uma calça jeans imunda e um tênis all star podre. Tinha em mãos um caderno e uma caneta. O rosto era lindo, mas tinha uma expressão perturbada.

Perto de Edward havia uma mulher baixinha. Ela tinha os olhos escuros e um piercing no centro do lábio inferior. O cabelo era um moicano de um vermelho artificial e a lateral era raspada.

— Você é a Bella — constatou e enlaçou nossos braços. — Sou Alice.

— Você é a Bag...? — perguntei. Ela usava uma calça jeans clara surrada, um cinto de spike preto e um colete de couro. Tinha os braços cobertos por tatuagens e os pés descalços. Era tanta informação que meus olhos eram incapazes de se fixar em uma coisa só.

— Precisamente. — Sorriu. — Você é americana? — Encarei Edward em ultrage e ele apenas riu, levando as mãos para cima.

— Qual indicativo?

— O seu inglês sem sotaque? — perguntou rindo.

— Ah. Faz sentido. — Sorri e mexi no cabelo. — Prazer, sou a Bella. De onde vem o Bag?

— Eu era uma adolescente punk, e a Bag era uma mulher famosinha na cena em 1970 e pouco. Acho que eu tenho algo em comum com ela? — Direcionou o olhar inquisitivo ao Edward que apenas balançou os ombros. — Aquele é o Jasper. Dá oi, Jaz — pediu e ele apenas me ofereceu um aceno com a cabeça. — Pronta? — Apontou para trás, onde Edward me aguardava atrás de uma mesa.

Ao me aproximar, arregalei os olhos quando notei que ainda estava nu. Ele tinha um drink âmbar em mãos e um sorriso torto convidativo.

— Você não vai se vestir? — murmurei contra a pele do pescoço quando ele me recebeu com um abraço.

— Eu evito quando posso. E agora eu estou na minha casa, então posso.

— Isso também é uma revolta contra o sistema?

— Claro! Imagina ter que cobrir meu corpo por uma convenção social, Bella?! Eles querem ditar tudo o que eu posso ou não mostrar. Eu não vou dar mais essa vitória para eles. Não dentro da minha propriedade. — Bebeu a dose do seu drink de maneira teatral.

— Não é nada disso — riu Bag. — Edward só é fresco e não gosta da sensação de tecidos no corpo quando sai do banho. A verdade é que não sabe se secar — também porque não gosta da textura da toalha no corpo — e aí quando se veste, a roupa gruda. É assim desde que eu conheço, não se engane com o papinho de revolucionário.

Edward retrucou de forma madura apenas rolando os olhos e me beijou no pescoço.

— Você precisa de uma roupa? — Me fitou os olhos de uma maneira intensa, possivelmente lembrando de quando rasgou o vestido do meu corpo.

— Acho que seria bom. Obrigada.

Durante a hora seguinte, ficamos dentro de casa conversando. Descobri que ele e Bag, se conheceram na adolescência em um lar adotivo, no ano em que Alice, o nome de registro dela, deixou o reformatório infantil em Chicago. Ela contou que foi detida porque roubou uma loja de conveniência quando estava drogada por cocaína. Edward disse que sua irmã completaria quatro anos limpa e o carinho que dividiram naquela troca de olhar foi uma das coisas mais puras que já vi em muito tempo. Foi ele quem a recebeu no momento que sua sentença terminou e desde então são unha e carne. O outro homem, Jasper, era namorado dela, e aparentemente o atual líder da grife, que, ironicamente, no mundo da pichação, significava a união de vários grupos de pichadores.

— Você vai no Herakut? —Edward perguntou ao Jasper, que seguia desenhando no caderno. Ao longo da última hora o ouvi dizer pouquíssimas palavras.

— Não.

— Por quê? — O amigo respondeu apenas rolando os olhos. — Sério, Jasper... Por quê?

— Porque eu não vou ficar dando palco pra rico metido à cult, Maze. Você vai? — perguntou, levantando os olhos do caderno e o encarando.

— Eu quero levar a Bella — disse depois de um aceno de cabeça.

— Por quê? — Deslocou os olhos azuis na minha direção.

— Pra ela conhecer um evento midiático antes de ver uma escalada.

— Eu vou ver uma escalada? — perguntei sem conseguir esconder a excitação na voz.

— Era isso que eu tinha planejado pra hoje. — Ele deu de ombros e notei que tinha uma pontinha de um sorriso nos lábios.

— Desde quando? Achei que era na terça. — Bag perguntou com um tom de voz sério.

— Vou adiantar.

— Edward você checou o esquema de segurança? É prudente adiantar quase uma semana? Eu não consigo ir contigo hoje.

— Eu vou com a Bella.

— E o que a Bella sabe sobre escaladas, Edward, pelo amor de Deus existe uma diferença entre ser imprudente e um idiota!

— Alice... — Jasper murmurou, puxando-a para seus braços. — Deixa o cara. Ele não chegou aonde chegou à toa.

— Quem vai contigo além dela? — Seus olhos encontraram os meus e ela pareceu envergonhada. — Desculpa te ofender, mas é porque você realmente não parece entender sobre escaladas.

— Tudo bem. Eu não sei nada mesmo. É seguro, Edward?

— Vai ficar tudo bem. — Beijou o topo da minha cabeça e cutucou o nó que fiz na camisa que me emprestou. — Sério, confia em mim. Eu sei o que tô fazendo.

— Merda, Edward. Onde vai ser?

— Relaxa, Bag — disse e a puxou para um abraço.

— Sai. Eu não vou te abraçar enquanto você estiver pelado. Pelo amor de Deus, vai colocar uma roupa! — exclamou, empurrando-o, e eu gargalhei.

Antes de irmos embora, ficamos mais algum tempo conversando e Edward explicou seu plano para Alice. A despeito de discordar em ver o irmão fazendo a escalada hoje, começou a digitar no teclado do celular, provavelmente mandando sms para conseguir as peças fundamentais para garantir a ele a melhor experiência possível. Eu não poderia sentir mais admiração pela relação deles. Em alguma medida até invejava por não ter esse tipo de relação com familiares meus.

O evento de Herakut era, de fato, midiático. Havia uma espécie de andaime com plataforma elevatória onde os dois ficavam para conseguir alcançar toda a extensão do paredão. Ela com um rolo de tinta e ele com latas de spray. O ambiente estava cheio — considerando que eram duas e pouca da manhã — e Edward parecia desconfortável ali. Falou com algumas pessoas de maneira breve, e parecia sempre apressar uma despedida.

Por onde passávamos, eu sentia olhares desprendendo da parede para nos observar. Era como se eu estivesse acompanhando alguém famoso. E, talvez, de fato fosse. O evento me fez questionar quem era Maze.

Edward ficou mais algum tempo transitando entre os grupos. Sempre que possível, falava em inglês para me incluir na conversa. Ainda assim, apesar dos esforços, aquele evento não era divertido e eu estava começando a ressentir o tempo aqui. Acolhi quando sugeriu que fossemos embora antes do mural ficar pronto.

— Você me cansou demais — reclamou quando nos afastamos e eu ri.

— Graças a Deus que você falou. Minhas pernas estão bambas até agora.

— No ritmo que tô disposto a andar, vamos demorar três dias pra chegar.

— E aquela ideia de roubar uma moto? — Sorri quando ouvi sua gargalhada. — Aonde vamos agora?

— Pra Holzmarkt. É um mercado a céu aberto na margem do rio Spree. Depois a gente segue para o Muro da Fama do Grafitti pela East Side Gallery.

— É aquela parte do Muro de Berlim que é grafitada?

— A East Side, sim. Desde 1990 é liberado grafitar lá com a autorização do governo. O Muro da Fama é uma fachada de um cinema que fechou e que foi apropriada pelo grafite. Tem tanto grafiteiro grande que deixou um pixo lá que os políticos nem ousam apagar.

— É lá onde você vai fazer a escalada?

— Não, Bella. Lembra que te falei que a escalada precisa ser no alto? Eu vou fazer no prédio da frente do Muro da Fama do Grafite, que é próximo dali.

— E o que tem lá?

— É onde mora a filha do governador. — Tomou a dianteira e se aproximou de uma moto preta. — Não foi você quem disse que nunca andou a cavalo?

— Isso. Nunca andei — respondi sem me importar com a aleatoriedade da pergunta porque a noite inteira foi assim. — Edward você acha razoável grafitar o prédio da filha do governador enquanto não tem nenhum esquema de segurança?

— Relaxa, Bella, não vou sequestrar ninguém. E a Bag tá cuidando dos detalhes. Vai dar certo, confia.

— Mesmo assim, sei lá estou com a sensação que vai dar mer- O que você está fazendo? — exclamei quando percebi que ele tinha quebrado o painel da moto e estava mexendo nos fios. — Edward você está roubando uma moto?

— Se me perguntarem eu digo que foi ideia sua — disse e me puxou para trás dele assim que ouvi o ronco do motor. — Relaxa é só um empréstimo. Vem, sobe.

Parte em negação, parte em elação, subi. Abracei a cintura dele e enterrei a cabeça nas costas quando deu partida. Logo levantei o rosto e notei as luzes passarem velozes ao nosso redor e com os cabelos ao vento em um momento de liberdade purinha, perdi as contas de quantos sinais vermelhos avançamos. A moto roubada e as leis de trânsito sendo infringidas, claramente em um ato desesperado de conseguir aproveitar o máximo que essa noite em Berlim poderia nos oferecer.

Eventualmente deixamos a moto em uma rua pouco central e seguimos andando. A hora seguinte passou em um borrão e eu não sei recordar o momento exato em que nossas mãos se encontraram, mas lembro quando percebi meu coração contrair desconfortável, nostálgico, em antecipação pelo fim da noite. Em contrapartida, ele seguia me contando sobre os detalhes da cidade e da sua vida, enquanto dedicava-se também em apresentar o máximo de cervejas e comidas quanto possíveis. Eu já estava na segunda garrafa de cerveja desde que chegamos na East Side Gallery. O kebab esquecido dentro da bolsa porque estava empanzinada.

— Você sabia que esse beijo aqui realmente aconteceu? — Apontou para um grafite de dois homens se beijando.

— É o Stalin, não é?

— Não — disse sorrindo. — As pessoas costumam achar que é o Stalin e alguma variação de um presidente norte americano. — Eu concordei efusiva, provavelmente me acusando. Ele riu. — Era o... Eu posso chamar de presidente soviético? Tinha presidente lá? Enfim, o líder soviético e o comandante aqui da Alemanha Oriental, Erich Honecker. Os líderes soviéticos se cumprimentam com beijos na boca. Falam que era um ato político. Acho que, talvez, na prática, não tivesse tanto tesão assim quanto aí no grafite do Vrubel, mas você pegou a ideia... — Levantou as sobrancelhas e me puxou pela mão.

— Eu não imaginava. Estranho parecer o Stalin, né? A pintura é de quando?

— Pô, acho que uma das primeiras. Chutaria 90, 90 e pouquinho? Acho que ele até fez parecido pra confundir mesmo.

Caminhar pela rua do muro durante a madrugada foi uma experiência que certamente seria dos meus momentos favoritos da vida. Eu quase podia sentir parte da história mundial pulsar daquela pedra para e por mim, era como um solavanco me fazendo querer pulsar também.

De lá, decidimos caminhar cerca de vinte minutos para o Muro da Fama do Grafite, onde ele encontraria algumas pessoas e faria a escalada. Os prédios eram baixos, com cerca de quatro ou cinco andares e havia bares e restaurantes em todas as esquinas, o que eu entendia ser o principal desafio. Quando chegamos, Edward entrelaçou nossos dedos e apertou um pouco mais nossas mãos. Percebi que sequer me observava. O olhar estava fixo em um prédio alaranjado.

— É ali que ela mora?

— Se eu te falar que é exatamente naquela única janela acesa, você acredita? — Balançou a cabeça incrédulo. Beijei as costas da sua mão, tentando assegurá-lo que ficaria tudo bem. Acho que consegui passar alguma mensagem, porque seu ombro relaxou.

— Vem cá, deixa eu dar uma de soviética pra cima de você — murmurei, e o puxei pela gola da blusa preta de manga comprida. A única coisa que vi antes dele colar nossos lábios foi seu sorriso.

— Quem vê assim nem imagina que estava pelado com ela não tem nem uma hora. — Ouvi Bag dizer, não tão distante de onde estávamos. Afastei nosso rosto, sorrindo, mas ele voltou a me beijar com ternura. Ela se aproximou e entregou a mochila que tínhamos deixado na casa de Rosalie.

— Valeu. O Emmett tá vindo? — perguntou e com a concordância da irmã, continuou. — Minha ideia é subir por aqueles vãos no concreto e de lá saltar para aquela sacada. — Olhou para Bag e as outras pessoas que haviam chegado, então apontou para uma parte onde a escada não alcançava. — É lá que eu pretendo deixar o pixo.

— E não é perigoso? Por que você não sobe pela escada de incêndio, sei lá, não tem como usar uma corda? O apartamento dela também chega ali, não chega? — perguntei, ignorando os prováveis olhares de reprovação das pessoas que tinham chegado para presenciar um espetáculo.

— Chega, mas lembra que eu te falei sobre a escalada ser o principal desafio do grafiteiro? Sobre ser uma demonstração de superação porque mostra que tipo de artista ele é? Então... Eu não quero ser um pixo de uma escada de incêndio.

Acho que ele percebeu a angústia na minha expressão, porque puxou minha mão e beijou a palma.

— O que disse? — reclamei, porque o que falou foi abafado pela minha pele.

— A gente não precisa fazer isso hoje. Eu sei que você vai embora daqui a algumas horas e se você preferir fazer qualquer outra coisa, só dizer o que, e fazemos.

— Você mobilizou toda essa galera. Tá todo mundo aqui pra te ver, olha em volta.

— Hoje eu tô pouco me fodendo pra qualquer coisa que não seja você — murmurou, passando o braço pela minha cintura e unindo ainda mais os nossos corpos.

— Você quer fazer isso? — Encarei os olhos e o movimento que a pupila fez foi tão automático, que nem que quisesse, poderia ter mentido. Os olhos verdes vibravam em excitação. — Hoje eu quero viver tudo o que te deixa excitado assim.

Sua resposta veio em um beijo tão cheio de vontades que se não fossem seus amigos ali, provavelmente teríamos acabado presos por transar na rua. Atentado ao pudor era crime na Europa, não era?

Observei angustiada quando Edward subiu por entre os vãos do concreto. Sua roupa toda preta contrastando com o alaranjado do prédio. Pouco a pouco ele ascendia e o silêncio aqui do chão se transformava em sussurros encorajadores. Eu não entendia alemão, mas sua irmã não poupava esforços em traduzir os elogios ditos.

Os minutos seguintes passaram em um caleidoscópio de emoções. Viver aquilo ali com os pés fincados no chão, enquanto Edward trabalhava com suas latas de spray de tinta há vários metros de altura foi um dos momentos mais catárticos de toda a minha vida.

Por mais absurdo que pareça, meus olhos não conseguiam distinguir a pichação porque não desgrudavam do artista. Apenas depois que ele estava de volta ao chão, me puxando em uma corrida para entrarmos na van preta que nos aguardava na esquina, me dei conta de que não vi o trabalho terminado.

— Agora só quando voltar pra Berlim. — Piscou implicante quando mencionei. E, coincidentemente ou não, ouvimos ao fundo barulhos de sirene. Edward me puxou para sentar em seu colo enquanto nos acomodava na última fileira da van. Seus amigos conversando algo em alemão enquanto ele deixava a sua mão passear pelo meu corpo sem ressalvas. O banco da frente servia de escudo para o que acontecia entre nós.

— Você tá bem? — Arquejei quando ele me acomodou melhor em seu colo e eu pude sentir sua resposta dura contra a minha bunda.

— Hoje você ainda quer fazer tudo que me deixa excitado?

— Você quer transar aqui? — perguntei, apavorada porque, ainda que estivesse excitada, eu tinha bom senso. Edward gargalhou e ouvi o barulho quase uníssono de risadas ao nosso redor. — Falei alto demais né? — murmurei, escondendo meu rosto no pescoço dele e senti nosso corpo chacoalhar.

— Quer ficar em casa, cara? — Emmett disse do banco da frente.

— Uma boa. — Afundou os dedos nos cabelos da minha nuca e apertou minha cintura. — A gente encontra vocês na Hozes depois, pode ser?

As poucas horas que me restaram na cidade foram gastas saciando necessidades físicas dos nossos corpos. Depois daquela dose de adrenalina da escalada, parecia que nada que fazíamos era suficiente para suprir a vontade que sentíamos um do outro. Então fizemos de novo, e de novo. E quando uma posição não parecia suficiente, tentávamos outra, e depois outra.

Beirando o clichê, era como se naquele momento a nossa existência só fizesse sentido quando nos uníamos em uma entrega absoluta no ápice de um orgasmo. Todas as vezes que o afastamento do sexo se impunha, a necessidade voltava avassaladora me desnorteando como um adicto em busca da dose do seu vício. E hoje, meu vício era ele. E foi por estar descontrolada, que quando ele se levantou para tomar banho, levantei da sua cama, vesti a roupa emprestada, recolhi meus pertences e saí, deixando a lembrança de umas das melhores noites da minha vida para trás.

Uma das melhores partes de seguir para Milão em seguida, foi porque a vitalidade da cidade italiana na Semana de Moda me deixava tão assoberbada de trabalho que era impraticável pensar em qualquer coisa além de alta-costura. Pelos próximos dias, Edward ficou em segundo plano.

Quando estava arrumando a mala para retornar aos Estados Unidos, percebi na minha agenda de telefone um rótulo de uma Erdinger, a cerveja favorita de Edward. No papel havia uma figura de palitinho desenhada com cabelos volumosos e uma barba no mesmo estilo. Estava nu, e gargalhei com a legenda do desenho: "piroca do Marx". Logo abaixo havia um telefone. Eu não fazia ideia de quando ele deixou isso dentro da minha agenda, mas me sentia tão agradecida, que buscar pelo telefone do meu quarto de hotel para discar os números em resposta, foi o único movimento possível.

A despeito de todas as minhas apostas, os meses seguintes foram dele. Basicamente eu dormia e acordava pensando em maneiras de tê-lo na minha vida. Considerei uma transferência, busquei até vagas de emprego em grifes alemãs. Estaria mentindo se negasse que pesquisei uma ou outra bolsa de estudos para mestrado em Berlim. Por outro lado, ainda que ele estivesse atento aos meus planos, não parecia interessado. Edward não conversava sobre futuro e não considerava alternativas para estarmos juntos, apenas acolhia o que lhe apresentava.

Por mais que eu estivesse vivendo uma relação com ele, eu desconfiava que ele não estivesse na mesma página que eu. Eventualmente a aproximação das Semanas de Modas primavera/verão de 2005 foi o motivo ideal para que eu pudesse ter a desculpa de falar sobre um reencontro real.

— Eu estava pensando em tentar tirar uns dez dias de férias depois das semanas de moda da Europa. A Zoet segue pra São Paulo, mas tô pensando em ficar por aí.

— E você acha que vão te liberar? — perguntou.

— Provavelmente não. Mas tenho uns dias de férias. — Esperei para ver se comentaria o assunto, mas tudo o que ouvi em resposta foi o som de grafite riscando o papel. — O que você tá desenhando?

— Seus olhos.

— Eu tô com tanta saudade — bufei. — Como tá todo mundo aí? Emmett e Rosalie?

— Voltaram. De novo.

— E o Jasper?

— Ainda preso esperando a data da audiência. — Pigarreou. — A Alice tá no corre aqui pra dar vazão dos bagulhos dele.

— Eu posso ajudar com algo?

— Não, Bella. A gente se vira aqui.

— Claro. Eu preciso desligar agora. A gente se fala amanhã ou depois?

— Tá bom.

Eu sabia que ele não fazia de propósito. Desde que começamos a nos comunicar ao telefone e VOIP, Edward se mostrou pouco falante, mas foi a partir da prisão de Jasper por depredação de patrimônio público na descida de uma escalada, que a vida dele pareceu ter virado de ponta-cabeça. Entre assumir as responsabilidades de Jasper, e cuidar de Alice, que voltou a ter recaídas com cocaína, seu tempo era escasso. Era egoísta esperar que ele demonstrasse um mínimo de interesse pela possibilidade de me ver?

Em um de nossos últimos telefonemas, em um raro episódio de vulnerabilidade, expôs sua angústia sobre as crianças aliciadas pelo tráfico de drogas em Mitte. Por falta de oportunidades no hip hop elas ficavam às margens e acabavam tendo na acolhida do tráfico o prestígio que buscavam. Nesse dia sua confissão foi tão dolorosa que foi uma das raríssimas conversas em que mais ouvi do que falei.

— É foda crescer sabendo que ninguém quer te ver. Imagina acordar todos os dias sabendo que a sua existência é completamente irrelevante, que se um dia você desaparecesse, nada mudaria. Imagina. Você consegue imaginar? Não, né? É impossível. Você é... — Ouvi quando soltou o ar no telefone. — Porra, Bella, você é espetacular. A sua existência... — Esperei que completasse, mas não o fez. Antigamente seu silêncio falaria de maneira positiva ao meu coração. Edward era mesmo reservado, e frequentemente se engasgava nas palavras quando quase dizia como se sentia ao meu respeito, mas dessa vez senti ressentimento.

— Eu não consigo imaginar. Sinto muito que um dia você tenha se sentido dessa forma. Se te serve de consolo, desde o dia que nos conhecemos, a sua existência virou uma das coisas mais importantes da minha vida. A sua resiliência me inspira todos os dias.

Eu sabia que estava na linha porque ouvia sua respiração, mas também sabia que precisava daquele espaço. O silêncio perdurou por bastante tempo.

— Às vezes eu tenho umas aspirações grandes demais — disse ele em um sopro.

— De que tipo?

— Do tipo que é tão grande que não vale nem a pena ficar pensando. — Soltou uma risada. — Você nunca me contou sobre o final daquele livro que estava lendo — comentou.

— Você quer realmente mudar de assunto? Porque você sabe que se quiser, eu mudo, mas adoraria saber sobre seus maiores desejos.

— Pra quê? Meu maior desejo é simplesmente impossível.

— Engraçado... Você falando assim nem consigo te reconhecer.

— Como assim?

— Eu me apaixonei por uma pessoa que era completamente maluca por caçar coisas impossíveis. Alcançar o inalcançável era o que você planejava no seu café da manhã há seis meses, Edward. O que mudou?

— É diferente quando o que você tem a perder é importante demais — disse em um fio de voz.

Por uma fração de segundos consegui perceber uma fragilidade tão brutal que fui incapaz de reagir. Edward se apressou a desligar o telefonema, alegando ter que ajudar sua irmã com alguns compromissos.

As conversas nas semanas seguintes ficaram ainda mais esparsas. A diferença de fuso, somada à minha carga de trabalho e as responsabilidades dele, impunham dificuldades à nossa comunicação. Suas SMS, quando chegavam, eram pragmáticas e os e-mails cada vez mais raros.

Faltando cerca de dois meses para a viagem para a Europa, ele simplesmente parou de atender e retornar meus telefonemas. Debati, por algum tempo, sobre entrar em contato com Alice ou seus amigos, mas optei contra porque entendi que eu estava acessível, e se ele decidiu parar de me procurar, foi de maneira deliberada. Estava certa de que se tivesse acontecido alguma tragédia, algum deles entraria em contato comigo. Conforme os dias passaram, percebi que depositei expectativas demais e ele só não estava disposto a retribuir.

Durante aquela temporada de desfiles, pensei sobre minhas escolhas e minhas aspirações de futuro, e percebi que nem Nova Iorque, tampouco a Zoet eram o que eu esperava para a minha vida. Assim, passei os seis meses seguintes me organizando para uma mudança internacional, visto que tomei a decisão de me inscrever em um mestrado de design gráfico para moda em Londres, cidade que rapidamente passei a chamar de lar.

Com os anos, a lembrança do que vivemos naquela madrugada em Berlim se acomodou em um espaço de conforto. O sentimento de insegurança pelo afastamento e rejeição, tornou-se cada vez mais próximo de uma sensação de nostalgia. Não era raro recordar os momentos que vivemos juntos na cidade e nos meses seguintes com um sorriso no rosto. Acho que por isso o levei comigo ao longo dos meus anos de estudo. A maneira com a qual encarava a arte era inspiradora.

Meu projeto de conclusão de curso foi composto por peças modulares feitas com retalhos de fibra de bambu. Elas se uniam por zíperes, permitindo que o utilitário construísse uma multiplicidade enorme de visuais possíveis, garantindo a maior usabilidade dos itens em uma tentativa de impactar em um consumo sustentável.

As estampas foram criadas em parceria com Angela Weber, uma grafiteira da periferia de Londres. Ela tinha o traço completamente diferente de Edward, e minhas peças, estampadas por sua arte, foram construídas e inspiradas por, para e com mulheres. Me formei com honrarias e com a visibilidade dada pela Universidade, recebi o convite de executar a minha coleção em grifes relativamente conhecidas. Focando no plano de me distanciar da minha carreira no passado, minha recusa veio de imediato.

Ao contrário, passei os anos seguintes trabalhando para visibilizar o meu e-commerce no My Space e Facebook. Na Inglaterra de 2008 não era tão usual quanto nos Estados Unidos, mas roupas modulares que se uniam por zíper e viravam outras coisas também não eram. Com a loucura de lançar nossa própria marca, a Apfel Modular Fashion, Angela e eu desenvolvemos uma relação muito mais fraterna do que profissional. Por isso não me foi surpresa unir esforços com ela quando AMF foi lançada.

Em 2009 a marca estava mais consolidada e conseguimos criar um plano de publicizar a AMF junto às celebridades. Assim, com a visibilização da marca e o e-commerce gerando lucros, me permiti respirar um pouco e aproveitar as facilidades de se viver na Europa. Foi um ano em que recebi muitas visitas e viajei para tantas cidades que perdi a conta.

O ano de 2009 também foi importante porque precisei tomar a decisão do que fazer com relação à minha regularização migratória. No ano anterior, Angela disse que toparia casar comigo se isso me garantisse um status migratório regular, e por maior que fosse a minha apreciação pela oferta, sabia que ela tinha planos de se casar com seu namorado nos próximos anos. Assim, mesmo incerta sobre meu local de moradia permanente, optei pela abertura da empresa física no país, garantindo, assim, a minha regularização.

Na última semana de 2009, Angela e eu estávamos embalando as últimas encomendas para enviar por correio antes das férias de final de ano da AMF. A lista de reprodução de músicas natalinas estava quase tão alta quanto eu.

— Você já decidiu onde você vai passar o ano novo? — perguntou Angela enquanto colava a etiqueta do remetente no embrulho.

— Eu decidi o que vou fazer, não onde. — Espichei o pescoço para ver se não tinha confundido com o lado do destinatário e sorri quando notei que estava certinho. Logo que começamos a enviar as roupas por correio, Angela cometeu a gafe de trocar o remetente pelo destinatário, nos fazendo receber 58 encomendas de volta.

— O que vai fazer? — riu.

— Vou pular no primeiro voo disponível pela Ryanair. E você?

— Aparentemente vou ficar morrendo de preocupação pela minha melhor amiga, né?

— É. — Ri, dando de ombros.

— E tentando não enjoar nesse meio tempo.

— Relaxa, Gege. Não é como se eu não tivesse feito isso antes. — Rolei os olhos e notei que ela colou a fita gomada na última embalagem. Recolhi nossas taças e bebi a dela, que ainda tinha um terço do vinho esquecido. — Tudo pronto?

— Acho que ainda faltam uns sete meses — disse em um tom choroso e a olhei rindo.

— Eu sei, esse ano foi impossível, né? Mas a gente conseguiu guardar bastante dinheiro para montar uma equipe ano que vem. Em 2010 Apfel chega maior e melhor! — Pisquei e tilintei nossas taças com minhas mãos antes de colocá-las na pia do ateliê.

— Isabella, você está tão embriagada assim ou perdeu todos os seus neurônios? Talvez essas suas férias realmente venham a calhar!

— Por que estou sendo ofendida?

— Porque eu sou uma mulher que fala por dois!

— O que o Ben tem a ver com isso?

— Meu Deus, Isabella, não é possível! — Riu. — Estou grávida!

Larguei as taças na pia e corri para abraçar a minha amiga. O som de vidro quebrando misturado às nossas risadas dizia tudo. Angela e Ben estavam namorando há pouco mais de dois anos e ensaiavam morar juntos há alguns meses, então saber que constituiriam uma família no meio disso tudo, me deixava extasiada.

Dias depois, enfrentei um aeroporto lotado e sorri com a antecipação da viagem. Entreguei o passaporte ao atendente da companhia aérea e deixei a sorte escolher meu destino.

— Pra onde é seu próximo voo disponível? — perguntei, ajustando a alça da mochila nas costas.

— Com embarque aberto tem um saindo em duas horas e meia para Zagreb.

— Onde?

— É na Croácia.

— Ah, sim. Ok! — concordei deslizando o cartão de crédito em sua direção.

— Ah desculpe, acabei de ver no monitor que tem um voo com embarque atrasado então ainda está aberto pelos próximos 59 minutos.

— Ótimo! — exclamei. — Para onde?

— Berlim. Vai precisar de mala?

— Para Berlim? Alemanha?

— Sim. A senhora gostaria?

— Gostaria — respondi mais rápido do que achei possível.

— Precisará de bagagem? Sim? — respondi positivamente com a cabeça porque aparentemente não tinha voz. — Então são 82,48 libras com taxas indo neste voo e retornando no dia 08 de janeiro de 2010. Senhora?

— Claro, ok. Certo. Berlim você disse, não é? Na Alemanha? Embarcando hoje então?

— Sim, em 56 minutos. Ou Croácia. Infelizmente não posso sugerir que tome um tempo para pensar porque o embarque para Berlim fecha em dezesseis minutos.

— Eu quero. Berlim.

Confirmei a compra e senti meu corpo inteiro passar por um processo esquisito de desgelo. Um arrepio me percorreu, me deixando completamente insegura com essas sensações. No voo, considerei o que me fazia tomar a decisão de voltar àquele local e, depois de raciocinar a importância do que vivi ali, entendi que independentemente da existência de Edward, ou dos motivos que o levaram a rejeitar o que a gente viveu, eu deveria ressignificar a cidade e toda aquela experiência. Senão por férias agradáveis, pela possibilidade de um futuro livre desta sensação de rejeição.

Assim que cheguei no centro da cidade, deixei a memória me levar a espaços conhecidos. Logo cheguei no Muro da Fama do Grafite, próximo de onde fez a escalada. Inclusive, até a última vez em que nos falamos, se recusou a me contar o que era, porque dizia que eu deveria ver com meus próprios olhos. Com pesar, notei que o prédio permanecia naquela cor salmão horrorosa desde a última vez que o vi. Procurando pelo seu pixo, percebi que o prédio teve a pintura renovada, escondendo a evidência de que Edward um dia arriscou sua vida ali.

Decidi ir até o Mauerpark, onde cantava, mas também não o vi. Segui pelos pontos turísticos que conhecemos juntos, mas tampouco o encontrei. Decidi não mais procurá-lo e os quatro dias seguintes em Berlim se passaram sem planejamento, de modo que vivi um momento de cada vez. Estava começando a anoitecer, e a ausência do sol me gerava um incômodo com o frio, mesmo depois de tomar um café vietnamita na Miss Saigon. Decidida à voltar para o hotel e me vestir de maneira mais apropriada para aquela noite, esbarrei o ombro com força no pilar de sustentação do viaduto acima da minha cabeça enquanto caminhava pela avenida Kreuzberg na direção do metrô.

Olhei ao redor e vi que o viaduto fora transformado em uma galeria a céu aberto. Os pilares eram compostos por grafites das mais variadas formas. Com esmero retornei até a primeira viga e apreciei as obras à minha frente, tentando não apressar os meus olhos para buscar algum que tivesse com a assinatura dele.

Eventualmente, depois de dezenas de grafites ouvi vozes infantis e o inconfundível barulho de spray de tinta. Em um impulso, me escondi atrás do pilar para tentar deixar meus ouvidos identificarem o som. Reconheci uma voz em específico, e trêmula debati o que fazer, porque era óbvio que eu torcia para que o encontro acontecesse, mas eu genuinamente não acreditava na possibilidade de um.

Estiquei o corpo para vê-lo melhor e sorri ao notar como estava diferente e mais velho, mas ao mesmo tempo ainda era parecido com a imagem em minhas memórias.

Vi quando ele se agachou ao lado de uma menina e com uma lata de jato de tinta fez um semicírculo no muro de concreto. Ela repetiu o movimento, mas os seus eram tentativos. Edward se posicionou atrás dela, apertou o ombro e sussurrou algo no ouvido. Ela levantou o queixo, espichou corpo e repetiu o movimento que antes lhe fora ensinado. Observei quando ele sorriu e ajoelhou na frente da criança celebrando o risco no muro, mas antes que concluísse as congratulações, nossos olhos se encontraram e ele rapidamente se pôs de pé.

Naquela fração de segundo pareceu que Berlim inteira havia acordado. O trem passou no viaduto acima de nós fazendo um barulho estrondoso, algum acidente ocorreu nas proximidades, alguma criança gritou distante de nós, e as ruas ecoaram com sons de buzinas e sirenes. Ainda assim, o caos da cidade parecia ser apenas um murmúrio frente ao turbilhão que se passava dentro de mim.

Meus olhos finalmente desgrudaram dos dele e começaram a buscar por uma saída, mas a despeito da necessidade de autopreservação que queria me levar para longe dali, tornei a buscá-lo. Ele permanecia na mesma posição que estava quando meus olhos o deixaram. A menina loira à sua frente o puxou pela mão e chamou por atenção, mas na ausência de uma resposta, seguiu a direção do olhar do adulto e encontrou o meu.

Meu coração bateu ainda mais forte quando uma expressão esquisita passeou pelo rosto dela. Era uma espécie de admiração — descrença, talvez. Ouvi quando ela chamou a atenção das outras crianças e apontou para mim. Meus olhos voltaram aos verdes de Edward a tempo de observá-lo manear positivamente a cabeça quando elas lhe questionaram algo. As crianças imediatamente gritaram e ao som de suas gargalhadas meu corpo reagiu e me comecei a me afastar dali.

Não havia tomado muita distância quando o ouvi falar palavras de comando às crianças e, em seguida, escutei passos próximos demais. Sua mão, quente, segurou meu punho impedindo que eu continuasse me afastando.

— Bella? — A voz tão quebrada que fiz uma careta. — Não vai — pediu e me puxou pelo punho. Embora não tenha exercido tanta pressão, a mão pareceu pesar uma tonelada. Neguei com a cabeça e recolhi meu corpo. — Merda, foi mal, te machuquei?

— Não.

— O que você tá fazendo aqui? — Se posicionou à minha frente. Levei meus olhos ao chão porque não sabia se conseguiria me distanciar se o olhasse. — Você está tão diferente — murmurou e tocou no meu cabelo, agora em seu castanho natural e longo.

— O que você está fazendo? — Dei um passo para trás. A mexa marrom deixando seus dedos. Quando ele não respondeu, arrisquei observá-lo e o que vi ali, me surpreendeu. Edward tinha uma expressão que parecia resignada.

— Desculpa, eu não devia ter feito isso, acho que foi um impulso. — Deu um passo para trás. O trem passando em cima novamente criando um barulho ensurdecedor quase tão incômodo quanto o silêncio entre nós. — Você... está aqui a trabalho?

— Não.

— Por que, então? — A situação estava tão desconfortável que me permiti olhá-lo nos olhos, tentando buscar uma resposta que fosse suficiente para nós dois.

— Eu vim a passeio, mas não esperava te encontrar.

— E aí você quer que eu acredite nisso quando aparece logo na minha galeria? — disse em um tom indulgente. Aquele sorriso ameaçando aparecer.

— Sua galeria?

— Tecnicamente é da ONG, mas é aqui que a gente expõe as artes da molecada.

— Você realmente está velho. — Sorri.

— Por causa do "molecada"?

— Não só. — Dei de ombros. — Você abriu sua ONG? — murmurei e pigarrei em seguida quando percebi a minha voz tremula ao vocalizar que seu maior sonho havia, sim, se tornado realidade.

— Eu não abri, mas trabalho em uma.

— Parabéns, Edward — disse com suavidade. — De verdade, eu estou muito, muito feliz que você tenha conquistado seu impossível. — Deixei meus olhos passearem por trás do ombro dele e sorri quando notei as quatro crianças trabalhando juntas em um pilar de concreto. Quando voltei meus olhos ao rosto dele, notei que seguia me olhando com um sorriso pequeno nos lábios.

— O que você quis dizer?

— Você uma vez me disse que seu impossível, sua escalada, era conseguir dar oportunidade pras crianças que eram aliciadas pelo tráfico. Olha seu impossível ali. — Apontei com o queixo e sorri. Quando o encarei percebi que ele tinha ternura no olhar, mas a expressão era torturada.

— O mal do pichador é que a gente sempre procura por desafios maiores. — Me fitou de uma maneira tão intensa que perdi a fala. — Por onde você andou? — perguntou depois de alguns instantes de silêncio.

— Como assim?

— Você não estava na Zoet, e nem em nenhuma outra grife de Nova Iorque. Eu tentei te encontrar por tanto tempo — murmurou e eu percebi que seu tronco inclinou em minha direção. Algo em minha fisionomia o fez parar.

— Eu te falei que queria cursar um mestrado na Europa.

— Você estava aqui esse tempo todo?

— Não.

— Onde você estava então? — perguntou exasperado, mexendo na nuca.

— Sem querer soar babaca, Edward, mas eu realmente não acho que te devo satisfações. — Notei seu corpo retesar e tentei não demonstrar o conforto que isso me gerou.

— Claro, desculpe. É só que... Eu realmente... — Pigarreou, mas não completou a frase. — Você quer ir embora, né? Eu só pensei que talvez você quisesse tomar uma cerveja, um café. Não sei. Conversar, sei lá. Quer conhecer a ONG? Dar uma volta?

— Edward, o que está acontecendo contigo? Você está tão agitado.

Ele tirou o boné, arrumou o cabelo e recolocou. Em seguida soltou o ar em um suspiro demorado. Olhou atrás dos ombros e gritou algo em alemão para as crianças que, prontamente começaram a guardar as latas de spray em uma caixa de plástico preta e entraram por uma porta preta metálica.

— Você me acompanha até a ONG? Queria te mostrar algo.

— Onde é?

— Logo ali. — Apontou para o local onde as crianças entraram. Considerei por uns instantes, mas senti meu corpo retesar. — Por favor, vem comigo. Você não acha que uma conversa cairia bem?

— Conversar sobre o quê?

— Sobre nós dois, sobre o que aconteceu.

— Ué, não tem muito o que conversar. Você fez a sua escolha lá atrás. Está tudo bem. — Apertei a mão dele e me afastei.

— Que escolha? Eu não fiz escolha nenhuma. — Ele franziu a testa e mordeu o cantinho do lábio.

— Você escolheu desaparecer quando meus planos começaram a ficar sérios demais para você. — Bufei uma risada. — Normal, vocês homens têm mesmo esse hábito.

— Bella, não foi isso. Não é possível que você ache que aconteceu assim.

— Honestamente não me importa o que você quer que eu pense, Edward. Aconteceu o que aconteceu, e eu segui em frente. Não precisa se preocupar porque agora está tudo bem comigo, e eu estou vendo que contigo também.

— Bella, por favor...

— É melhor deixar assim mesmo. Nossos caminhos são muito diferentes — murmurei, mas porque realmente não sou tão forte assim, aproximei nossos corpos e beijei o rosto.

O toque dos lábios teve um peso emocional tão grande que minhas pernas bambearam. Edward me segurou pela cintura, espalmando a mão nas minhas costas e me puxou. Mesmo com todas as camadas do grosso casaco, senti o conforto do abraço. Por aqueles minutos, fingi que nossa história não permaneceu no passado.

Logo, o recorrente barulho do trem me fez perceber o desconforto do enlace e me afastei. Quando o fiz, percebi resistência nos braços dele, mas consegui impor distância. Sem falar, porque seria realmente impossível justificar a ação, parti.

— Então vai ser assim de novo? Você vai embora sem me dar chance de conversar? — Ouvi a voz se desfazer por trás de mim, mas por pior que tenha machucado ouvir a acusação, continuei.

Da janela do trem notei o terraço do prédio da ONG e percebi as crianças apontando efusivas para um enorme grafite em uma das paredes da construção. Era um desenho em preto e branco de uma mulher com expressões marcadas. Ao redor da fisionomia havia vários padrões coloridos. O que me chamou atenção no grafite foram os olhos. Algo neles me parecia familiar. Encarei o desenho até sumir das minhas vistas, e a minha inquietação só foi respondida quando me olhei no espelho e vi, no meu reflexo, o grafite do muro.

Custei a admitir que "Maze" estivesse me desenhando, mas quando finalmente aceitei, percebi que era grandioso. Nos dois dias seguintes, vi meu rosto estampado em outros quatro grandes grafites da cidade. Grandes demais para serem ilegais. O que mais chamou minha atenção foi quando entrei no Museu de Arte Urbana de Berlim e notei um outro desenho meu, também grafitado por ele, estampado na tela central da exibição.

Senti uma aproximação e ouvi alguém falar em alemão. Olhei a senhora que se posicionou ao meu lado e neguei com a cabeça, e disse em inglês que não falava alemão.

— Ele é incrível, não é? — comentou no meu idioma natal.

— Você conhece? — perguntei. Ela devia ter entre 60-70 anos e vestia roupas sóbrias demais para o tipo de exposição que estávamos experienciando.

— Não pessoalmente, mas acompanho o artista há anos. Ele tem uma trajetória bonita. No início era muito centrado em protestos, e hoje centram nela. Não raro, mistura os dois. — Apontou para o desenho da mulher que era excessivamente parecida comigo. — Quando foi perguntado qual era o nome da musa, disse apenas que deveríamos chamá-la de "Escalada".

Não percebi em que momento virei meu corpo inteiro para observá-la, mas no instante em que arregalou seus olhos ao me observar, notei que se deu conta de que eu era a musa em questão.

— É você? — Olhou de mim para a tela.

— Eu não faço ideia.

Eu gostava de viajar sem itinerário justamente pela liberdade de poder transitar entre espaços sem uma amarra de visitar um local ou outro, mas quando eu saí daquele museu, estava segura do meu destino, porque agora encontrar Edward não era apenas uma coincidência, mas uma necessidade.

Já estava escuro quando bati na porta metálica da ONG.

— Oi? — Um homem me cumprimentou da entrada. Ele tinha olhos marcados por traços indígenas, a lateral dos cabelos pretos raspada e piercings na orelha, nariz e lábio. — Posso ajudar?

— Oi, desculpe, estou procurando Edward. — Estiquei o pescoço tentando ver por trás dele.

— Ah. Ele saiu. É urgente?

— Bom, Talvez. Eu vou embora da cidade em alguns dias. — Fiz menção de mexer no cabelo, mas no meio do caminho lembrei que estava de gorro.

— Putz, o pior é que ele viajou. Ele estava te esperando?

— Ah, viajou?

— Sim, Hamburgo. Volta amanhã ou depois. Mas posso te dar o telefone dele, quer?

— Será que posso deixar algo aí pra ele?

— Claro. Fica à vontade. Quer entrar? Tá frio, né?

— Obrigada. — Removi o casaco, o gorro e o cachecol. Quando entreguei para ele, percebi uma expressão desnorteada.

— Desculpa perguntar isso assim do nada, mas você é a Bella?

— A gente se conhece? — perguntei, franzindo o cenho porque não me recordava da sua fisionomia.

— Puta merda — riu, parecendo desconcertado. — É você mesma?

— Ah... Sim... Desculpe, mas qual seu nome?

— Seth. — Ofereceu a mão. — Sou o Seth, o diretor da ONG.

— Ah! Incrível o trabalho que fazem aqui, parabéns!

— O Edward sabe que você está aqui? Posso te pegar uma cerveja?

— Ah, não avisei que viria, mas não quero incomodar. Só queria deixar uma mensagem.

— Ele costuma ficar naquela sala ali. Pode ficar à vontade — comentou, deixando-me sozinha, mas "à vontade" foi o mais distante do que me senti ali.

Desde o afastamento, não houve pretensão de buscar uma reconexão com Edward porque eu entendia que o que vivemos ocorreu no tempo e da maneira que deveria ocorrer. Eu sabia que foi a partir dele que comecei a questionar minhas escolhas e a maneira com a qual anulava meus interesses temendo o risco. E foi a partir dele que decidi arriscar uma segunda chance comigo mesma.

Essa viagem e as revelações recentes me fazia duvidar do que eu tinha como certo, porque nem a forma que ele agiu quando me viu, tampouco meu rosto espalhado pela cidade demonstrava serem símbolos de superação. Por isso meus pés nervosos agora faziam sentido. Tentar me impedir de entrar naquela sala talvez fosse um instinto de preservação, mas possivelmente deixar de entrar poderia ser um dos maiores atos de covardia.

Quando passei pela porta, percebi que a sala tinha paredes claras e adornadas por vários desenhos. Havia um sofá de três lugares, uma mesa de madeira escura com quatro cadeiras e um gaveteiro-arquivo de metal cinza. Não havia um estilo artístico específico, e era um caos visual tão grande que eu tinha dificuldade de acreditar que essa sala pertencia apenas a uma pessoa. Sem pressa absorvi cada desenho dali, tentando identificar se era de Edward ou de outra pessoa.

Não sei quanto tempo se passou, mas eventualmente Seth bateu na porta, que estava aberta, e acenou com a cabeça.

— Até tentei achar alguns aperitivos para compor a cerveja, mas estamos quebradões esse mês. No final das contas, nossa geladeira não tem nem cerveja, nem comida. — Coçou a nuca, desajeitado. — Posso te levar pra comer alguma coisa na rua?

— Não precisa se preocupar, Seth. Obrigada, mas não vou demorar. Só preciso mesmo de um lugar onde possa escrever algo. — Pigarreei e me afastei da parede.

— Acho que ele não gostaria de ver os desenhos da Bag riscados, mesmo que por você — disse enquanto apontava para um dos desenhos na parede. — Ele costuma guardar os cadernos dele na primeira gaveta, fica à vontade. — Apontou para o gaveteiro cinza.

— Vou tomar cuidado — prometi e sorri com a displicência com a qual tratou meu comentário.

— Escuta, Bella, eu preciso arrumar a sala de criação porque está um caos e amanhã a gente recebe uma visita importante. É um possível financiador, inclusive é parte do motivo da viagem do Edward. Ter um artista reconhecido tem seus benefícios. — Sorriu de maneira travessa.

— Sem problemas, eu juro que não me demoro. Mas não se preocupe, porque sei o caminho da saída.

— Leva o tempo que precisar, eu vou demorar ainda. Mas se decidir ficar mais tempo na cidade, volta mais vezes, as crianças vão adorar te ver — disse com naturalidade, quase como se eu devesse saber o que quis dizer. Talvez eu soubesse, mas era mais fácil fingir ignorância.

Quando saiu, abri a primeira gaveta do armário gaveteiro e percebi uma pilha de papéis bagunçados. Havia uma grande quantidade de desenhos. Observei um a um, subitamente esquecendo a pressa de ir. Vários minutos depois encarei um agrupado de folhas que tinham meu rosto desenhado em caneta.

Era curioso ver como Edward construiu a minha imagem no papel, provavelmente rememorando minhas expressões com cada rascunho. Seu estilo de aprendizado era caótico e cheio de anotações, e analisei cada uma delas, lendo seus comentários e absorvendo os novos traços.

Fotografei com o celular alguns deles e, imaginando que ele não daria falta, dado à bagunça com que estavam guardados, guardei um em minha bolsa. Quando recoloquei os papéis na gaveta, peguei um caderno preto e sorri quando vi meu rosto também rascunhado ali. Com reverência acariciei a imagem e escrevi do rodapé da folha.

"é possível seguir em frente quando tudo o que eu penso até hoje é na piroca do Marx? – Bella (+44 20 4731 7080)"

Aplacando a curiosidade, comecei a folhear o caderno e percebi que era onde escrevia suas letras de música. Movida pela coragem, peguei outro caderno, e depois outro. Ouvi os passos de Seth se aproximarem e arfei quando vi no relógio do celular que já tinha passado mais de quatro horas desde que entrei na ONG. Virei o corpo na direção da porta com um sorriso, mas já com as escusas prontas para Seth pela minha demora em ir embora. Arregalei os olhos ao perceber a intensidade nos olhos verdes que me encaravam de volta.

— Você não tinha viajado? — acusei Edward. Ele tinha o rosto neutro, e a expressão corporal constrita.

— Sim — murmurou e retirou as luvas, jogando-as no sofá.

— E como você está aqui então?

— Um invento meio bobo, nem é nada demais... Se chama motocicleta. Não sei se já chegou nos Estados Unidos, mas aqui existe há alguns anos — disse com um sorriso curto. Rolei os olhos, mas devolvi o gesto. Estiquei o meu corpo e afastei os cadernos para o meio da mesa, tentando esconder o que fiz. Ele deu alguns passos na minha direção, mas parou no meio da sala.

— Você a roubou dessa vez também? — Desviei o assunto, torcendo para que percebesse meu tom jocoso.

— Não chamaria aquilo de roubo. Foi mais uma reparação histórica, meio Robin Woodyana, sabe como é?

— Não sei. Me explica — pedi e senti meu coração bater mais forte quando deu mais alguns passos se aproximando.

— Eu tinha acabado de conhecer uma mulher foda. Precisava dar um jeito de impressionar — murmurou e com mais dois passos, completou a investida. De uma forma tentativa, com a ponta dos dedos, tocou a minha mão que se abriu para segurar a dele.

— E dessa vez? — sussurrei, observando seu rosto acima do meu. Edward sorriu e com sua mão livre acariciou da minha têmpora ao maxilar. Os olhos verdes eram vibrantes.

— Dessa vez eu preciso te dizer que meu único ato rebelde foi dar um bolo na reunião no segundo em que Seth avisou que você estava aqui. A moto é emprestada. — Balançou o ombro e afastou o cabelo do meu rosto.

— Você deu um bolo no financiador?

— Mhm — murmurou e com a ponta do dedo acariciou minha sobrancelha. — Isso aqui está acontecendo mesmo?

— Eu espero que sim. — Ri. Levei uma mão à sua nuca e com a outra o abracei pela cintura, puxando-o mais para perto de mim. Edward sorriu tão bonitinho que eu juro que senti meu coração aumentar. — E a ONG? Vocês não estavam contando com isso? — Afundei o rosto no peito dele e inspirei seu perfume.

— Eu meio que te usei como desculpa — confessou com presunção. Ele acariciou meus braços e apertou de levinho os bíceps.

— Eu? O que eu tenho com isso?

— Eu liguei e expliquei que você apareceu na ONG depois de anos e precisava voltar pra você. Ele me disse que estaria na cidade depois de amanhã e poderia passar aqui pra retomarmos a conversa. Ajudaria se você aparecer na reunião comigo porque aí não pago de mentiroso. — Riu e coçou a nuca. — Não sei se já teve chance de descobrir, mas você é meio famosa aqui, Bella.

— Eu sou, né? Me vi no museu — murmurei, acariciando o maxilar dele. — Obrigada. Seus grafites são lindos — Edward fechou os olhos e suspirou tão relaxado que fiquei nas pontas dos pés e o beijei.

Ele tensionou e, fora isso, não reagiu. A inação foi suficiente para eu questionar se estava lendo o cenário errado. Quando plantei as solas do pé no chão, efetivamente removendo meus lábios dos dele, o lamurio que obtive como resposta foi seguido de um abraço apertado.

— Não se afasta — pediu com o rosto escondido no meu pescoço. Percebi que o corpo dele estremeceu quando acariciei seu cabelo. — Me dá só uns minutinhos, Bella. Eu tô esperando por isso aqui faz tanto tempo. — Suspirou. Afastei meu tronco e em seu olhar só vi expectativas. Beijei o rosto até sentir os braços dele relaxarem ao meu redor.

— Quer conversar? — perguntei, apertando sua mão. — Aquele sofá parece confortável.

Ele acenou a cabeça e nos direcionou para lá. Sentei ao seu lado, mas não tardou até pegar minha mão. Quando nossos olhares se encontraram, beijou a minha palma e sorriu contra a pele.

— Eu sonho com seu cheiro até hoje. Você está tão linda — sussurrou acariciando meu cabelo. E então, antes que eu pudesse responder, fechou os olhos em uma expressão resignada.

— O que foi? — questionei e o olhei em indagação quando riu.

— Eu sabia que seria assim... tô fazendo papel de palhaço, né? — admitiu em meio a uma risadinha. — Parece que eu quero fazer milhares de coisas contigo, mas quero tudo isso nos próximos dez segundos porque no resto do tempo quero aproveitar você aqui comigo — escondeu o rosto no meu pescoço, onde deu um beijinho. Acariciei os cabelos e o senti relaxar. — Acho que estou indo rápido demais, e meu psicólogo falou que isso poderia acontecer, mas porra Bella, eu realmente não estava preparado pra te ver.

— Você tá fazendo terapia?

— Tô. Depois que eu saí da cadeia e com a história da Bag... Foi tudo demais, fiquei uns meses meio em crise. Tem me ajudado bastante. Além disso, preciso estar emocionalmente bem para as crianças. O que foi? Que cara é essa?

— Você foi preso? — murmurei e levei minhas duas mãos ao rosto dele.

— Você não sabia? — Franziu as sobrancelhas.

— Não. Nunca soube — disse, implorando com os olhos por algo que nem sabia ao certo o que era.

— Eu tinha certeza de que você sabia. — Levou a mão à nuca. — Fiquei detido por 19 meses. De maio de 2005 a dezembro de 2006.

— Meu Deus, Edward, eu não fazia ideia — sussurrei sentindo um bolo se formar na garganta. — Depois que você parou de me ligar, também parei de te procurar. — Ele me encarou por alguns instantes e, em seguida, exalou.

— Que puta falta de comunicação, né? — disse com a voz endurecida e se levantou.

Edward pegou uma pasta preta e me entregou. Quando sentou ao meu lado, passou o braço por trás do meu ombro e me puxou para perto. Dentro da pasta havia cartas e muitos desenhos. Eram as correspondências que escreveu para mim enquanto esteve preso e que retornaram porque eu não morava mais naquele endereço. Também continha as que recebeu de Alice e outros amigos. Passei a próxima hora lendo o conteúdo escrito e tentando capturar o máximo de informação de um passado que sequer sabia ter existido.

Engoli com dificuldade e me concentrei para não chorar — não era justo que eu sofresse as dores dele quando eu nem sequer estive por perto. Depois de vários minutos que guardei a última carta (uma em que ele contava sobre uma sensação de estar sendo vigiado enquanto dormia e a angústia de não conseguir dormir de verdade), Edward apertou o braço ao meu redor.

— Tudo bem? — murmurou.

— Não era eu quem devia te perguntar isso?

— Eu tô bem agora. Sério, nesse momento eu realmente não acho que podia estar melhor — disse com um sorriso tão derretido que não me atrevi duvidar.

— Seu coração está batendo tão forte — comentei, e, para confirmar, levei minha palma até ali. Quando não obtive resposta, busquei seu olhar.

— Eu estou me controlando de verdade pra não ser brega, Bella. Dá uma moral aí. — Riu e beijou minha testa onde a pele encontrava os cabelos.

— Me conta de você? — pedi.

— Tudo o que você quiser saber.

— Pode falar sobre isso ou é demais? — perguntei, batendo a unha na pasta preta.

— Lembra que te contei que a Bag estava com problemas com coca de novo? Então, a situação era um pouco pior do que achei. Depois que o Jasper foi preso ela se afundou, e como eu estava ocupado tentando preencher o espaço dele, não consegui perceber que ela estava traficando também. — O braço dele enrijeceu ao meu redor. Virei meu corpo para ficar de frente para ele e beijei a mão que ainda segurava a minha.

— Eu sinto muito. Como ela está? — perguntei torcendo para ele não perceber a angústia de uma negativa.

— Ela está limpa tem uns oito meses, mas depois que eu fui preso a situação ficou difícil pra ela. Comigo e Jasper longe, Alice não tinha ninguém por perto. Ela tem dificuldade em confiar nas pessoas, e foi realmente difícil pra ela. Rosalie conseguiu se aproximar, mas Alice só parou de se drogar recentemente, quando quase fui preso por ela de novo.

— Como assim de novo?

— Eu fui em cana no dia que descobri que ela estava traficando porque um camarada tinha cantado que ia rolar uma batida policial no meu depósito. Quando fui fazer a limpa, ela estava lá vendendo pó. Só deu tempo de expulsar todo mundo antes da polícia chegar. Convencer os caras de que o traficante era eu nem foi difícil, inclusive eu acho que a batida aconteceu justamente porque os caras queriam me incriminar. — Suspirou e pressionou o ossinho do nariz entre os olhos. — O pior é que ela nem estava com tanta droga assim, passava mole por consumo recreativo. Se fosse qualquer pessoa naquele tribunal, sairia tendo que fazer serviço social, mas como era o Maze, o cara que supostamente mandou o pixo na casa da filha do governador, cadeia foi pouco. — Retirei a mão dele do rosto e beijei a palma. Ele sorriu. — Há oito meses quase aconteceu essa porra de novo, mas foi aqui perto da ONG e aí tive que lidar com a situação um pouco diferente por causa das crianças. Só assim aceitou ser internada.

— Como foi pra você?

— Ela tá se cuidando agora, e sobre a cadeia, fica tranquila. — Acariciou meu rosto. — Já passou. Isso ficou lá atrás, prometo. A sentença foi de 3 anos e 4 meses, mas como era réu primário e não tinha muita droga comigo, bom, com ela — riu —, minha advogada conseguiu um acordo pra eu sair em troca de serviço social. E aí parei aqui. — Moveu os braços apontando para a porta. — O Seth tem um programa de reinserção de ex-presidiários. Fiquei na ONG como voluntário por um ano e em paralelo continuei fazendo meus pixos.

— E como você saiu das ruas pros museus?

— Eu nunca saí das ruas. Mas ganhei mais visibilidade da elite porque como a Alice ainda estava na corda bamba, não quis correr riscos. Por um tempo grafitei só em espaços legalizados. Eventualmente um foi visto e aí a galera começou a comentar. Uma coisa leva a outra e, um tempo depois, caí em uma filmagem de um camarada que estava seguindo o Bansky. E você sabe como são os críticos de cinema, né? — disse rindo.

— Você conhece o Bansky? — exclamei, aprumando-me no sofá. Ele rolou os olhos.

— O cara é insano, Bella. Nem cria expectativas.

Ouvi sons de passos se aproximando e, Seth colocou a cabeça para dentro da sala. Sorriu ao Edward e acenou em minha direção.

— Eu tô de partida. Vocês vão ficar?

— Acho que mais um pouco — respondeu Edward e entrelaçou nossos dedos. Percebi um sorriso tímido no rosto de Seth. — O quê?

— É tão esquisito ver ela em carne e osso — riu. — Você fica até quando mesmo, Bella?

— Fico aqui mais quatro dias. Depois volto pra Londres, onde moro — expliquei, mais para Edward do que para Seth.

— Apareça mais vezes antes de ir então — pediu. — Vai ser interessante ver o Maze grafitar usando você como modelo vivo e não fragmento da memória obcecada dele — gargalhou quando Edward lançou uma almofada na sua direção.

— Eu sinto muito que você tenha passado por tudo isso e eu não tenha ficado ao seu lado — murmurei depois que ouvi os passos de Seth distantes.

— Já passou, Bella. Me conta de você?

— Ah, eu abri minha grife finalmente. Lá eu tenho um alinhamento mais socioambiental.

— É mesmo?

— A gente usa material biodegradável e retalhos descartados da indústria fast shop pra construir arremates e estampas.

— Porra que foda! E como é o lado social?

Expliquei para ele o processo de criação da Apfel, e minhas principais funções ali. Contei sobre a inclusão de mulheres periféricas na criação e sobre como os produtos estavam sendo bem absorvidos pelo mercado.

— Você conseguiu levar a alta costura pra periferia, é isso?

— Mais ou menos. É um processo em andamento. — Dei de ombros, mas senti meu rosto corar. — Não é tudo isso.

— É tudo isso! Posso ver suas peças?

— Claro. — Sorri e peguei meu iPhone 4. Senti o olhar dele durante todo o tempo enquanto abria o Instagram da empresa. Quando o fitei, percebi a expressão tranquila.

— É tão estranho te ver assim — comentei, e rocei a ponta do dedo entre as sobrancelhas dele. Os olhos verdes se iluminaram ao toque. Ele sorriu.

— Assim como?

— Assim. Relaxado. Só te vi assim quando você gozou. — Ele engasgou em uma gargalhada e eu sorri. — Aqui. — Apontei para o celular.

Durante os próximos minutos contei a história de cada uma das peças e expliquei o funcionamento das roupas. Em algum momento ele passou o braço por cima do meu ombro e de tempos em tempos, especialmente quando espichava o corpo para enxergar melhor a tela, roçava o nariz no meu rosto. Era uma sensação esquisita, porque ao mesmo tempo que o conforto do sentimento era familiar, seu toque era diferente.

— Posso te fazer uma pergunta? — interrompi seu comentário sobre uma estampa.

— Claro.

— Quando a gente se viu, você disse que a ONG não era mais o seu impossível. Mas me lembro do dia em que você me contou sobre o projeto, ou pelo menos sobre suas ambições de criar um. E como isso era o seu impossível, a sua escalada... O que mudou? — Ele nos ajustou no sofá de modo que ficássemos de frente e levou a mão à minha coxa, onde apertou com suavidade.

— Você — sussurrou e, com a ponta dos dedos da outra mão, levantou meu queixo, me fazendo olhar para ele. — Quando eu saí da cadeia e continuei na merda, percebi que estava sentindo falta de ser o cara que era contigo. E aí minha escalada virou você.

— Eu não entendo. — Franzi o cenho e fitei um dos vários desenhos de mim espalhados por aquela sala.

— O que exatamente?

— A gente ficou juntos por um dia. Como pode ter sido tudo isso? — Balancei a cabeça, porque por mais acusatório que parecesse, nem eu acreditava no que dizia. — O que? Por que você está rindo?

— Porque eu sei que não foi só isso pra você. Lembra quando te falei que a Bag foi detida porque roubou uma loja semanas antes de estourar a merda? Então eu tive que pagar fiança, né? Só que tinha acabado de falar com um camarada que estava pra se mudar, sobre assumir o aluguel do apê dele porque queria ter um espaço mais confortável pra receber você. Só que aí depois da merda da Bag foi foda, porque eu não tinha mais grana.

— O quê? — exclamei.

— Sim. Talvez fosse rápido demais, talvez você estivesse planejando vir pra ter seu espaço, construir suas coisas, mas... sei lá, pareceu certo ter essa opção aberta pra nós dois.

— Edward você nem queria que eu viesse.

— De onde você está tirando essa maluquice?

— Você nunca me encorajou... — Ele me olhou incrédulo.

— A gente realmente se comunicou mal, né? Eu ia pegar um apartamento maior pra nós dois, Bella. Não foi um dia só — murmurou com um sorrisinho e apertou meu queixo. — A gente ficou maior tempão conversando poxa. Você me conhecia melhor do que a maioria das pessoas da minha vida.

— Então... — disse, mas deixei a frase morrer porque não conseguia ordenar os pensamentos.

— A maneira com a qual você me percebeu, Bella. A forma que você me enxergou... Sei lá. Eu nunca tive isso. Era como se estar contigo tivesse me dado um propósito. Eu queria ser o cara que você merecia, eu queria tanto ser aquele cara pra você... E aí a merda explodiu e o resto você já sabe. — Esfregou o rosto com força e exalou por entre as mãos.

— E você ainda quer tudo isso? — murmurei quando ele baixou a guarda e me olhou.

— Você é a minha escalada. — Deu de ombros, com um meio sorriso no rosto, mas os olhos nutriam uma expressão cheia de expectativa.

— Não vou mentir, mas pra mim os últimos cinco anos foram diferentes. Eu acreditei que você estava cansado de nós e aí me esforcei muito pra te superar e seguir em frente. E eu segui, Edward. Mudei de trabalho, de país! Mudei de amigos, até a marca do café. Namorei várias pessoas, conheci dezenas de países e vivi. Foram cinco anos sem arrependimentos e sem me prender ao passado. Olhei pra nossa história com carinho porque acho que eu não teria tido a coragem de fazer tudo o que fiz se não tivesse te conhecido, mas eu segui em frente.

— Isso é ótimo — disse em uma felicidade aparentemente genuína. — Mas você me superou?

— Não. — Exalei em seguida e finalmente me deixei relaxar.

— E o que a gente faz com essa informação? — perguntou, e segurou meu rosto com as duas mãos. O polegar fazendo carinho no canto dos meus lábios.

— Eu não sei. O que você quer fazer com ela?

— Eu já disse que te quero. Eu quero te mostrar que posso ser aquele cara. Dá essa chance pra gente?

O aceno da minha cabeça veio antes mesmo dele concluir a fala.

— Eu nunca vou conseguir fazer justiça aos seus olhos — murmurou, acariciando a minha sobrancelha com a ponta dos dedos e eu soltei uma risada do absurdo dito.

Ainda sorrindo, aproximou nossa face e ficou vários instantes me encarando enquanto deixava nossas respirações se reconhecerem. Depois de uma eternidade, encostou as nossas testas e com um carinho que eu duvidaria existir se não estivesse vivenciando, roçou nossos narizes. Sem controle da lágrima que escapou dos meus olhos, silenciosamente observei o verde vibrante dos olhos dele se esconderem por trás da pálpebra no momento que uniu nossos lábios. E com o gesto, absurdamente gentil ante à potência dos meus sentimentos, me encontrei.

Não havia certeza no futuro, mas se este beijo evidenciava algo, era que havia interesse em fazer disto algo significativo. E se os últimos anos me ensinaram alguma coisa, foi sobre parar de temer o incerto, porque havendo vontade de construir, o processo, ainda que tumultuado, poderia ser bom. Então, mesmo se esse beijo não significasse necessariamente algo concreto, intencionava muito, e isso, por hora, me bastava.


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Notas finais do capítulo

Pra quem não sabe, a Oh Carol é uma das minhas amigas mais antigas aqui do fandom e escrever a POSO2021 pra ela foi igualmente empolgante e aterrorizante! Não apenas porque é um desafio gigante criar algo para alguém que a gente ama tanto, mas também porque ela é uma das minhas autoras favoritas (você sabe… não é segredo que te acho uma autora brilhante!).

Sobre seus combos, quando vi a foto do segundo, com a mulher no barco olhando pra trás, me bateu uma sensação de nostalgia ou de estranhamento do próprio lugar. Descontentamento, talvez. Já a música, contribuiu diretamente para construir a ideia de uma mulher em busca de liberdade (aliás, pra quem não sabe, a canção de referência foi John Wayne da Gaga e é incrível! obrigada por me apresentar!). Ao juntar as duas referências (E A FRASE!), fiquei com um impulso muito forte de escrever sobre artistas de rua, especificamente sobre grafiteiros e suas insanidades. Eu estava numa vibe de Alice Phoebe Lou (que é uma artista de rua), e acho que você gostar tanto da fanfic "We were here" pode ter direcionado meu subconsciente (captou a referência?) pra esse plot, mas, no geral, sei que você adora debates sobre arte e histórias com casais que batem papo sobre tudo e nada em especial (100% referenciada pela trilogia de antes do amanhecer que eu sei que vc ama). Tentei unir os dois e surgiu "Escalada". Espero que você tenha gostado! Feliz natal, amiga. Obrigada por ser parte da minha vida :) Te amo muito mesmo!

Leitores que não são a OhCarol, e resistiram até o final desta nota gigante, me digam o que acharam nos comentários (mas com carinho porque estou emotiva)! E avisem caso queiram um extra ;)

Feliz natal, ano novo e que 2022 venha maior e melhor!

Beijos, fiquem bem e saudáveis. Até a próxima!



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