Você Devia Ter Pedido escrita por Ioan K


Capítulo 1
Você Devia Ter Pedido!




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— Ele devia ter pedido!

Viktor estava algo além de irritado enquanto vasculhava suas anotações como se procurasse uma informação importante, enquanto abria gavetas como alguém que buscava a última faca disponível na cozinha antes de fazer uma refeição e enquanto abria armários como alguém em busca do último remédio que pode salvar sua vida. Não procurava algo tão determinante assim, no entanto; o que Viktor queria era mais simples. Mas será que ninguém era capaz de entender isso?

Não, é claro que não. Jayce, mesmo com toda a sua inteligência de um pesquisador que fora capaz de unir magia e ciência da noite para o dia, não era capaz de entender isso. Talvez sua mente estivesse tão voltada para coisas mais majestosas, como grandes descobertas capazes de revolucionar a vida em sociedade, que seus olhos não conseguiam enxergar o que era mais simples. Então como Viktor podia esperar que Jayce percebesse as coisas por si só? Parecia tolo da sua parte.

— Mas ele devia ter pedido!

Quem o visse gritar pelo laboratório enquanto empurrava móveis e vasculhava cada canto daquele ambiente quente demais poderia até imaginar que o que Viktor procurava fosse algo valioso, e, muito embora esse item lhe tivesse importância, sim, essa mesma pessoa ficaria bem surpresa ao descobrir que o que Viktor queria era algo mais simples: uma lente de aumento. Um dispositivo pequeno, composto de ao menos cinco lentes e algumas engrenagens.

Viktor usara essa lente em boa parte das pesquisas que fizera na companhia de Jayce e que os levara a desenvolver toda a hextec, mas ele já a usava desde anos atrás, desde muito antes de sequer imaginar que um dia conheceria alguém tão único quanto Jayce, na falta de uma palavra melhor. Era uma invenção sua, e é óbvio que mais ninguém, além dele próprio, entenderia o valor que esse objeto tinha, uma vez que, para todo o restante, aquela era uma lente de aumento tão comum quanto aquelas que eram vendidas em qualquer beco da cidade. O valor que ela lhe tinha era de um tipo que não se podia estimar, no entanto.

E é claro que Jayce não pensara em nada disso quando roubou o equipamento para usar em suas próprias pesquisas. Também para ele aquele devia ser um objeto tão ordinário quanto qualquer outro.

Mas Jayce era tão desorganizado... Pegava uma caneta em um lugar e a abandonava em outro, às vezes até em outro cômodo. Abria uma porta ao passar e dificilmente a fechava. Também não via problema em deixar as luzes acesas depois de sair de um ambiente, e essa era apenas algumas das demonstrações de como ele era distraído.

Uma outra era como ele não era capaz de ver coisas que estivessem a um palmo do seu olhar, se elas não reluzissem com magia ou se não tivessem o brilho de uma descoberta científica revolucionária.

E por isso Viktor se sentia tão frustrado. Já era muito difícil caminhar pelo laboratório, indo de uma bancada a outra com uma perna que se recusava a funcionar direito e que doía como uma agulha enfiada nos quadris se ele distribuísse mal o seu peso, então, conforme a busca se estendia, sua frustração ia se tornando irritação. Se Jayce fosse um pouquinho mais responsável, talvez eles não tivessem metade dos problemas de convivência que tinham agora.

— Mas, se ele tivesse sido tão responsável assim, talvez não tivesse sido um homem tão revolucionário para essa cidade.

Viktor disse o que disse enquanto mirava, com o olhar desfocado, uma pilha de papéis à sua frente. Até parecia analisá-la quando, na verdade, sua mente estava distante, pensando em tudo que Jayce conseguira conquistar com tão pouco tempo. Se, anos atrás, alguém lhe dissesse que era possível um homem ir tão longe sendo tão jovem ou lhe dissesse que era possível encontrar tanta sabedoria em alguém tão estabanado, Viktor não acreditaria. Talvez nem Jayce acreditasse.

Mas agora o rosto daquele homem, um que Viktor observara tantas vezes madrugada adentro, estava em cartazes espalhados pela cidade que falavam sobre progresso. Para a população, ver o rosto de Jayce daquele jeito, erguido para o alto como quem vislumbrava o futuro, trazia esperança de tempos ainda melhores, o que era mágico.

Mas não era tão mágico quanto vê-lo sorrir tão de perto quando via uma fagulha de magia ser expelida de um de seus experimentos, ou como quando descobria que sua teoria funcionava na prática. Também não era tão maravilhoso quanto receber o seu olhar com aquele brilho de felicidade verdadeira e saber que, de todas as pessoas do mundo, Jayce escolhera ele, Viktor, como a pessoa com quem ele dividiria esses sentimentos tão bons. Nenhuma das pessoas que viam esse rosto ilustrado nos cartazes também jamais saberia como era sentir o calor do seu corpo em um abraço recebido de surpresa, do nada, porque Jayce também funcionava assim: abraçava sem pedir licença, quando achava que devia.

E ninguém jamais saberia como era incrível dividir a existência e os aprendizados com Jayce porque ninguém, além de Viktor, pudera provar disso durante tanto tempo.

Mesmo assim, se ele queria tanto usar a sua lente de aumento...

— Ele... devia... ter... PEDIDO!

E queria Viktor não ter esmurrado a bancada ao pontuar a sua frase, pois, se não o tivesse feito, talvez Jayce não parecesse tão assustado quando entrou no laboratório e o deparou assim, com um punho fechado contra a mesa e a postura curvada de alguém em fúria. Também não soaria tão temoroso quando limpou a voz com um pigarro para perguntar:

— Pedido o quê?

Viktor virou no lugar e encontrou Jayce à porta, tão imponente, tão seguro, mas ao mesmo tempo tão bobo, com aquelas sobrancelhas erguidas na sua direção como alguém que se vê diante de algo desconhecido e surpreendente. É claro que Viktor estava furioso, e ele jamais conseguiria disfarçar isso, principalmente depois de esmurrar a mesa, mas algo na maneira como deparou Jayce ali, com os olhos arregalados e atentos, começou a atenuar um pouco a sua raiva. Talvez esse fosse um poder que apenas Jayce era capaz de exercer sobre ele.

Ou talvez essa tranquilidade fosse resultado de Viktor ter percebido que sua lente de aumento estava agora na mão daquele homem, sendo segurada como uma casquinha de sorvete por uma criança sem domínio nenhum sobre a própria coordenação motora.

— Você devia ter pedido! – disse Viktor enquanto mancava na direção de Jayce.

Apanhou a lente de aumento da mão dele com um gesto rápido e, mancando de volta com a rapidez que suas pernas lhe permitiam, achava que tinha disfarçado bem a sua irritação, embora seus calcanhares martelassem o chão deixando bem claro o contrário.

— Me desculpa... – Jayce começou a dizer com carinho, acompanhando-o sem qualquer dificuldade. – Eu precisava analisar a produção de aço na forja, mas precisava fazer isso de perto, e sua lente de aumento é tão boa que...

Viktor sacudiu uma mão no ar, desinteressado, antes de enfiar a lente de aumento no bolso da frente da camisa e se apoiar na bancada como alguém prestes a analisar um trabalho. Nem se dava conta de que, apesar de ter feito drama por conta da lente de aumento, não fazia questão nenhuma de usá-la no momento. Aliás, sequer se lembrava do que queria fazer com ela. Só queria dar as costas para Jayce e pôr um fim àquele momento.

E queria isso por cansaço, é como ele justificaria se alguém lhe perguntasse o porquê. Mas ele bem sabia que era por vergonha também.

— Viktor?

A luz do sol jorrava para dentro do laboratório de um jeito tranquilo e quente quando o nome de Viktor, dito pela voz de Jayce, tocou seus ouvidos. Viktor não era do tipo que costumava prestar atenção em pequenos detalhes assim, mas, naquela manhã, sua mente reservou um tempo para apreciar como aquela claridade era bonita e tranquilizadora. Mas também é claro que ele jamais teria reparado nela se a voz de Jayce não o tivesse tocado daquela forma, porque esse era outro poder que ele também tinha.

— A lente tem um valor especial para mim – foi o que Viktor escolheu dizer, forçando as palavras entre os dentes. – Você não entenderia.

— Você pode tentar explicar e eu posso tentar entender – disse Jayce em resposta, parando ao seu lado na bancada, de frente para a porta pela qual acabara de entrar enquanto Viktor continuava voltado para a janela.

— Outro dia. Agora tenho trabalho demais para fazer...

Viktor percebeu pelo canto do olho que Jayce concordou em silêncio algumas vezes antes de cruzar os braços e dizer:

— Sempre tem muito trabalho a fazer, não é?

E Viktor se voltou na direção dele com o olhar caído de alguém que faz uma ameaça quando disse:

— Desde que decidi me comprometer com você e com os projetos que garantem o progresso de Piltover.

— Mas progresso nenhum vale a pena, se ele custar a sua tranquilidade e a sua felicidade. Ou a sua sanidade – Jayce acrescentou, ficando de frente para Viktor também. – O que está acontecendo, hein?

Viktor respirou fundo, mas tentou se explicar:

— As runas desenhadas no dispositivo hex parecem apresentar resultados diferentes quando organizadas de jeitos diferentes, mas eu preciso analisar as pedras mais de perto para ter certeza de que...

— Não estou falando sobre as runas ou a hextec, Viktor – disse Jayce e se aproximou de um jeito perigoso. Viktor teve que conter o ímpeto de ir para trás. – O que está acontecendo com você?

Viktor franziu o nariz. Mirou o chão por um instante porque, de repente, desviar o olhar da imagem poderosa de Jayce parecia o certo a se fazer. Ele queria acalmá-lo, e Viktor sentia que Jayce conseguiria fazer isso, se ele lhe desse mais ouvidos, mas ele não queria isso. Gostava da raiva que fazia seu coração pegar fogo, porque se sentir irritado com Jayce parecia mais certo do que admirá-lo tanto. Era um sentimento mais fácil de lidar.

Mas Jayce, tão impertinente como era, levou o polegar ao queixo de Viktor e guiou seu rosto na sua direção. Viktor não resistiu, por mais que quisesse ter feito isso, e isso o fez se sentir ainda mais miserável do que já se sentia, pois comprovava que, indo contra todas as suas vontades, ele continuava nas mãos de Jayce, à mercê da sua vontade, mesmo que Jayce jamais fosse estar à mercê dele. Jayce era de outro.

Ou melhor, de outra.

E foi a consciência desse fato que o fez arreganhar os lábios e dizer o que disse com tanta raiva:

— Você só tem olhos para você mesmo, Jayce! Acha que o mundo é um grande playground construído para você se divertir e se aproveitar dos brinquedos como bem quiser! Acha que os lugares e objetos existentes neles, como essa lente de aumento aqui, foram feitos para que você sempre os tenha disponíveis quando bem entender! E também acha que as pessoas ao seu redor não passam de meros peões que existem para fazer o trabalho braçal que você não consegue fazer, quando na verdade há pessoas à sua frente que...

Viktor percebeu que estava indo longe demais e parou. Ofegava como se tivesse corrido, mas na verdade só perdera o fôlego porque não parara para respirar enquanto despejava suas palavras. Tinha mais um monte de absurdos para dizer, mesmo que, àquela altura, já achasse ter dito o bastante para ofender alguém como Jayce.

Mas era incrível como Jayce continuava a mirá-lo com aquele mesmo meio sorriso acompanhado de braços cruzados como se tivesse ouvido tudo aquilo, mas não tivesse prestado atenção em nenhuma das palavras.

Ou como se ouvisse o que está escondido atrás de todo esse discurso, foi o que Viktor pensou quando ouviu Jayce dizer:

— O que você quer de verdade, Viktor?

E Viktor nem precisou pensar nas palavras quando chegou à resposta para aquela pergunta:

— Queria que você parasse de agir como se eu não existisse.

— Eu nunca agi como se você não existisse, Viktor, mas se o que eu tenho feito até aqui não foi capaz de provar isso por mim, o que poderia?

Viktor engasgou pela primeira vez. Não era o tipo de homem que ficava sem palavras, mas, dessa vez, ficou, o que o fez se sentir ainda mais tolo do que antes. Sendo assim, pigarreou como alguém que busca tempo para organizar as ideias, mas nem depois disso conseguiu pensar em uma boa resposta para aquela pergunta. Talvez não soubesse como respondê-la mesmo.

Mas Jayce, como sempre, sabia:

— Talvez isso ajude.

Se não estivesse com a mão no queixo de Viktor, talvez Viktor tivesse conseguido se desvencilhar da aproximação de Jayce. E se isso tivesse sido possível, seus lábios jamais teriam se tocado naquela manhã quente e, talvez, eles nunca mais tivessem voltado a se falar depois de um acontecimento tão constrangedor. Viktor sabia que teria vergonha de olhar nos olhos de Jayce de novo depois de saber que tinha negado o seu beijo, mas Jayce, um homem tão orgulhoso, provavelmente mudaria de cidade apenas para não ter mais que lidar com a dor de ter o orgulho ferido.

Mas nada disso aconteceu.

E apesar de ter recebido o beijo de Jayce com espanto, os olhos arregalados como os de alguém que, de repente, percebe tarde demais algo que devia ser muito óbvio, não foi muito tempo depois que Viktor baixou suas guardas e se entregou mais uma vez à vontade de Jayce, fechando os olhos como ele fechava e respirando a sua respiração. Jayce ainda o segurava pelo queixo e, se não fosse por esse apoio, Viktor tinha certeza de que sua perna saudável falharia como a outra e, em um piscar de olhos, seu corpo iria parar no chão, sem força nenhuma, porque era isso o que Jayce fazia enquanto o beijava, ele sugava o seu vigor.

Porque também esse é um sintoma de ser beijado por alguém que você admira tanto.

Jayce sugou o ar da sua boca quando afastou seus lábios e sorriu de um jeito tão bonito que chegava a ser ofensivo. Trocou olhares com Viktor e o dele agora estava muito parecido com os dos cartazes espalhados pela cidade, embora não exatamente igual.

Pois ninguém em Piltover jamais saberia como era receber um olhar como aquele – tão esperto, sereno e carregado de significado – tão de perto assim. Mas ali estava Viktor, sendo protagonista de um momento que ele jamais imaginara que alguém como ele fosse protagonizar, por mais que, em segredo, tivesse desejado tanto poder fazer parte de algo assim.

— Se era um beijo o que você queria, você devia ter pedido – disse Jayce em um sussurro.

E se afastou sem prestar mais explicações. Não que elas fossem necessárias para a pessoa que agora o observava partir para voltar à forja, para começar uma nova descoberta ou apenas salvar o mundo, como ele podia saber? Viktor já entendera tudo o que precisava ser entendido.

Afinal, não era necessária uma lente de aumento para enxergar as entrelinhas da história, quando um beijo como aquele aparece para enfeitá-la.

Mas seria necessário um dispositivo muito mais poderoso, talvez até mágico, para enxergar o que o futuro reservava para eles, agora que suas bocas tinham se tocado uma primeira vez.

Ou talvez uma pergunta bastasse:

— Jayce?

— Hum? – disse Jayce, parando no lugar, mirando Viktor por sobre o ombro.

— Como a gente fica a partir de agora?

Jayce voltou a sorrir daquele jeito malicioso antes de dizer:

— Como sempre estivemos.

E sumiu na escuridão do corredor que ficava além da porta do laboratório.

Mas, enquanto contemplava o vácuo deixado por Jayce, Viktor voltava a se dar conta de um detalhe importante: como sempre, Jayce não conseguia enxergar por si só o que estava diante dele, não se não fosse parte de um assunto que ele pesquisara em seus estudos. Mas, depois daquele beijo, não tinha como as coisas serem como sempre foram. Isso era tolice da parte da Jayce, tanto quanto acreditar que usar a hextec para garantir o progresso de uma cidade não mudaria a dinâmica e a política das nações. Mas Jayce era assim mesmo: tingia com positividade tudo que estava à sua frente e injetava esperança em cada escolha que fazia ou palavra que dizia.

E talvez fosse por isso Viktor tinha gostado tanto assim dele desde o primeiro momento em que o viu.


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Notas finais do capítulo

Viktor e Jayce são endgame na minha mente e nada mais importa, obrigado a todos ♥



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