Swim escrita por Syrp


Capítulo 2
I - Your Fault


Notas iniciais do capítulo

✘ boa leitura!



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— how did we get here

when I used to know you so well?

 

Temos mesmo que fazer isso hoje? – perguntei pela milésima vez. Ok, esse era tipicamente o tipo de pergunta que eu sempre fazia e a que sempre era respondida com um não, mas não custava tentar, e Chase parecia atipicamente de bom humor naquela manhã.

— Sim, Eve – respondeu com um sorrisinho de escárnio enquanto equilibrava duas caixas em um braço só – temos que fazer isso hoje.

O motorista do caminhão de mudança não parecia nem um pouco interessado em ajudar, e eu podia entendê-lo. Estava calor em Forks, isso quase nunca acontecia e ele não dava sinais de que deixaria o conforto do ar condicionado. Meu irmão havia escolhido a única época em Forks em que o verão dava sinais de existir para se mudar – de julho ao fim de agosto a temperatura era mesmo agradável, embora em todo resto do ano o clima fosse sempre o mesmo: úmido e frio.

— Podíamos deixar para desempacotar as caixas amanhã, não acha? – tentei novamente com positividade. Para meu total descontentamento, meu irmão mais velho enfiou uma caixa em meus braços como se me mandasse calar a boca.

— Já entendi. Nada de deixar pra amanhã – respondi mais para mim mesma. A casa parecia intocada, do mesmo jeito que havia sido deixada quando partimos as pressas, exceto pela presença de uma nova casa a uma certa distância: antes, a enorme e velha casa dos Delacour era a única que ficava tão perto da floresta, mas agora havia uma nova e mais moderna casa, cheia de janelas e cercada por um jardim perfeito. Os donos deviam ser exigentes. Ou um saco.

— Deve estar imundo lá dentro, já faz muito tempo – franzi o nariz ao cruzar a porta. Deixei a caixa logo na entrada junto com o resto e fui atropelada por um Chase bem-humorado que, sinceramente, já estava me dando nos nervos.

— O Vance mandou limpar antes da nossa chegada, acho que está tudo ok – me respondeu enquanto revirava dentro de uma das caixas. Revirei os olhos sem humor nenhum, achando graça do “nossa”. Não havia nós quando se tratava de Vance Delacour.

— Você quis dizer da chegada dele – disse só por dizer, fazendo aspas com os dedos. Chase o conhecia melhor do que ninguém, ele havia sofrido mais do que qualquer um de nós nas mãos de nosso avô, e ele com certeza não precisava de um lembrete sobre as partes mais sombrias de sua vida.

— É. Você vai me ajudar a desencaixotar ou vamos usar as caixas de armário? – a segunda opção era mais tentadora, mas primeiro: o olhar de Chase dizia que era uma pergunta retórica, e segundo, Vance iria chegar ao final do ano, e ele nunca foi o tipo de avô que mima os netos, o que significa que nos faria lamber o chão de toda a casa se ela não estivesse em perfeito estado quando ele chegasse.

— Essas foram as últimas? – perguntei chutando um saco vazio do caminho. Chase respondeu com um longo suspiro de cansaço. A casa era enorme e nenhum dos dois estava disposto a desencaixotar tudo.

— São as suas. Você leva para o seu quarto, eu levo as minhas para o meu e a gente some com o resto das caixas amanhã, minha cabeça vai explodir – Chase devia mesmo estar com a cabeça explodindo: não bastasse o estresse, ele tinha tido sua cota de exagero no álcool depois de um encontro mal sucedido antes da mudança.

Encarei as caixas marcadas com meu nome com certa disposição, mas bastou um olhar para a caixa que dizia “perigo” para que eu me lembrasse de todo o horror e medo de uma infância infernal. Congelei. Completamente congelada. Pensei que não conseguiria sair do lugar nunca mais enquanto a voz de Chase atrás de mim saia abafada como se estivesse a quilômetros de distância.

— Ei. Eve? – meu irmão perguntou preocupado. Os olhos verdes me encararam da cabeça aos pés procurando por qualquer sinal de problema quando ele finalmente se tocou.

— Eu estou bem – engoli em seco antes de continuar, mas até isso parecia difícil. Tossi algumas vezes para limpar a voz – acha que posso deixar essa caixa no porão?

— Eu acho... acho que o Vance não ia gostar, Evelyn – tossiu desconfortável, coçando a nuca. O riso que escapou por entre meus lábios não era de humor nenhum, e não esperei por uma resposta antes de começar a carregar as caixas para dentro.

Chase Delacour podia ser um babaca quando queria.

☾ ☾ ☾

Depois de largar a última caixa na cama, parei para olhar bem em volta. O quarto continuava igual. Do jeito que havia deixado. Como uma lembrança intocada. Mas alguém já havia dado um jeito de sumir com a colcha infantil, os desenhos nas paredes e os brinquedos espalhados: agora tudo que me restava da pequena parte feliz de minha infância eram as paredes esverdeadas agora desbotadas, assim como o papel de parede de borboletas, agora descascando. O quarto era grande, grande demais para uma criança, mas o motivo de ele ser meu era um tanto quanto assustador: ele costumava ser um mausoléu.

Era o quarto da falecida filha de meu tataravô, e antes de mim, ninguém jamais havia ousado sequer entrar nele. Minha mãe sempre foi o tipo de mulher determinada que movia céus e terras quando queria alguma coisa, o tipo que te convence com o olhar, e bastou um único olhar desses para que eu tivesse uma parte da casa em que pudesse ser só uma criança.

Aquele pedaço de chão possivelmente amaldiçoado era talvez a minha melhor lembrança.

A porta de vidro ao lado da cama dava acesso a um grande quintal nos fundos da propriedade, esse que não tinha cercas e dava acesso direto à floresta de Forks. Diferentemente da nova casa vizinha, não tínhamos um jardim alegre e sim mato seco recém-cortado e alvos velhos cobertos com lona. Olhei de canto para as caixas entreabertas em cima do colchão – não sabia como arrumar tanta roupa e pior: nem mesmo tinha vontade. Algo me dizia que não ficaria em Forks por muito tempo. Se isso era bom ou ruim, ainda era difícil saber.

— Ei, garoto – sorri para meu pequeno coelho com o focinho para fora da caixa, olhos curiosos e orelhas em pé.

Chase odiava o pequeno Crass e meu avô nem mesmo sabia de sua existência – ter animais sempre foi proibido, desde que éramos crianças e Chase arrumou um canário. Não acabou muito bem, com o pássaro morto e um Chase as lágrimas enquanto esmurrava as pernas de Vance e seu coração de pedra. Se Chase as vezes podia ser um babaca, era quase impossível que meu avô não fosse.

— Está com fome? – o animal se sacudiu com preguiça depois de pular da cama nada graciosamente. Crass estava acima do peso e a pergunta era bem idiota. Mais impossível que as duas coisas acima, seria ele não estar com fome.

Já era fim de tarde quando a maioria das caixas já estava vazia e empilhada ao lado da porta. Me senti satisfeita com o resultado, estava limpo e pelo menos habitável. O quarto parecia normal, como o de uma adolescente qualquer: já havia espalhado minhas fotos nas paredes e pendurado o espelho com a ajuda de Chase, assim como uma nova mesa e cadeira que já estavam ocupadas com maquiagens e alguns livros, bem como o celular carregando na ponta. As roupas já estavam todas penduradas, ainda bem, e Crass estava largado ao lado da cama junto de uma maçã parcialmente comida e parecia que não iria levantar tão cedo. Ele seria quase normal.

Não fosse o arco perfeitamente pendurado acima da cama como um adereço aterrorizante e um lembrete mortal.

☾ ☾ ☾

Pegar no sono na primeira noite não foi nada fácil. Os sons da floresta, antes reconfortantes, agora não me acalmavam em nada. A cama parecia feita de espinhos e já havia perdido as contas de quantas vezes havia me remexido de um lado para o outro, incomodada demais para parar em uma posição só – quase esmaguei o pobre Crass algumas vezes e recebi uma mordida de advertência em resposta.

Foi quando ouvi um uivo a quilômetros de distância, sem imaginar que meu destino estava sendo selado por antepassados que não eram os meus. Um lobo não estava mais a deriva.

Agora eu era a única coisa que o prendia ao chão.

Naquela noite, tive um dos sonhos mais realistas de toda minha vida. Um garoto alto, forte e com olhos escuros como a noite me encarava bem no meio do quarto com uma expressão nada feliz.

— É culpa sua – sentenciou, parecendo querer me machucar. E funcionava. Cada palavra dita me fazia querer me debruçar e vomitar bem a seus pés. Mas ele não dava sinais de que iria parar.

— Eu nunca quis isso! – tentei me justificar, desesperada. Meus olhos se encheram de lágrimas, mas ele não se importou. Isso doeu mais.

— Eu não quero você perto de mim, Evelyn – me disse cruel, olhando bem no fundo dos meus olhos. Solucei. Foi quando comecei a gritar, mas isso também não surtiu nenhum efeito.

— Então porque é que você está aqui? Por que continua vindo, fingindo que sente algo por mim? – perguntei. Mas eu não queria saber a resposta. Não queria mais nenhuma de suas respostas cruéis. Mais nenhuma desculpa. Não queria sentir o que estava sentindo. Queria odia-lo com todas as forças, com todo meu ser.

— Qual é o problema? – tentei pela última vez, desgastada demais para continuar brigando e trocando acusações. Foi quando ele avançou e agarrou meu braço, pela primeira vez dando sinais de sentir algo além de raiva. Pude enxergar o desespero por trás de todo ódio que sempre parecia sentir.

— Você! – gritou a plenos pulmões. Ele parecia prestes a explodir, seu corpo todo tremia e a mão livre estava fechada ao lado do corpo com tanta força que os machucados nos nós de seus dedos começavam a abrir de novo – você é a porra do meu problema!

De repente, não estávamos mais tão perto um do outro. Estava diante de um lobo cor de areia que me encarava desconfiado e o arco pendurado na parede agora estava em minhas mãos. Puxei a corda na altura dos lábios com a flecha entre os dedos, mas eu não queria atirar.

Mesmo assim, eu soltei a corda. Foi quando o garoto caiu ajoelhado diante de mim sem expressão nenhuma, uma flecha atravessando seu coração e encharcando sua camiseta de sangue enquanto eu mesma sentia meu coração se partir em mil pedaços.

 Acordei.

Não voltei a dormir.


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