San'Nen - Humanos de outra Terra escrita por Mahii


Capítulo 6
Um mal entendido


Notas iniciais do capítulo

Hello!
Enfim, voltamos à ativa!
Pra falar a verdade, eu tenho uma boa parte da história escrita, mas toda hora mudo alguma coisa e preciso revisar tudo, e nessa hora o capítulo cresce, cresce, cresce, e daí eu divido... Ufa!
É por isso que temos esse tantão de palavras aqui.. Me digam se é ruim ou não capítulos desse tamanho, porque talvez se torne nossa realidade.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/804223/chapter/6

[...]

Uma memória dolorosa do passado

Londres tinha um clima deprimente a maior parte do ano, mas, principalmente, durante o inverno. O tempo não passava. O ar se tornava denso, carregado de um monte de sentimentos sufocantes. Estava sempre escuro, como se não existisse sol atrás daquelas densas nuvens. As pessoas andavam apressadas, sem olhar ao seu redor, correndo para qualquer lugar que tivesse ar-condicionado. Por isso, aquele sorriso inocente e o bom humor quase davam pena, pareciam o prelúdio de algo ruim.

O guarda-chuva tremia como se tivesse vida. Com a força do vento, pendia para os lados, liberando espaço para as gotas finas de chuva molharem a criança. O pequeno Daniel, que já estava inquieto com a umidade do final do inverno, ficou ainda mais incomodado quando o guarda-chuva quebrou. Depois de um longo suspiro, o jogou na primeira lixeira que viu, continuando seu caminho.

Surpreendente, se sentiu até mais leve agora que desistia de lutar contra a chuvinha. Aquele ar úmido era, na verdade, muito agradável!

Mas ainda era gelado e a criança não podia ignorar o jeito como ficava pior à medida que se molhava. Colocava as mãos enluvadas nos bolsos e logo voltava a levá-las até os lábios, assoprando ar quente nos dedos quase congelados. Então, ajeitava o cachecol grosso para cobrir-lhe o rosto, depois revisava se a toca estava bem presa à cabeça, como um TOC.

Por fim, soltou uma risada. Achou sua situação tão lamentável que lhe despertou o humor. Não importava o frio, nem o peso da mochila nas costas, tinha que passar por isso se queria ser um menino grande que anda por aí sozinho.

Daniel tinha 12 anos quando recebeu autorização dos pais para começar a voltar sozinho da escola. Se isso é cedo ou tarde depende muito, mas, no caso de Daniel, era bem tarde. A escola ficava a literais duas quadras de distância da casa, e o estúdio de dança da mãe se encontrava na metade do caminho. Grande parte das crianças que moravam perto voltava a pé, sozinha, o que significava que o garoto teria companhia todos os dias. Ainda assim, demorou tanto até aquele momento!

E, talvez, o senhor e senhora Richardson ainda estivessem superestimando o filho. Após uma semana, Daniel estava tão confiante em seu desempenho que começou a, perigosamente, se dispersar durante o trajeto.

Aquela era a parte mais movimentada do bairro. Após passar pelo estúdio da mãe, vinha uma grande galeria de lojas, então um viaduto à esquerda. Daniel não precisava atravessá-lo, mas, sempre que estava ali, se via atraído pela estranha cena que acontecia embaixo dele.

Um casal de meia idade, vivia ali. Havia até um pequeno sofá e uma fogueira improvisada. Inicialmente, Daniel se perguntou o que estariam fazendo ali, durante o inverno. “Que jeito estranho de se divertir!” No entanto, depois de três dias vendo o casal no mesmo lugar, se deu conta de que moravam ali.

Daniel ficava de longe, parado por alguns minutos. Via vários carros passando pela rua debaixo do viaduto, os carros de luxo que iam para o centro de Londres, e os carros dos moradores do subúrbio. Via várias pessoas passarem a pé pelo casal. Pessoas que seguiam para cima da ponte, pessoas que cruzavam por baixo. Estudantes, homens e mulheres de escritório, pais com os filhos, pessoas da sua escola... Ninguém sequer olhava para aquele casal, fingiam que não existiam.

Daniel ficava com mais raiva a cada dia.

Aqueles dois senhores ainda eram seres humanos. O cachorro deles, por mais que parecesse feio, ainda era um “cachorrinho”. E pareciam ter dor, ter frio, ter fome...

Daniel estava sentindo tanto frio que mal podia esperar para chegar em casa, tomar um banho quente, ficar na lareira, comer uma sopa... Isso o fez se colocar no lugar deles. Se tivesse que voltar molhado para debaixo de alguma ponte...! E se ninguém o ajudasse...! Quando Daniel os viu pegando comida de dentro dum saco de lixo, não pensou duas vezes antes de ir até eles.

Não podia fazer muito, mas talvez pudesse dar algo de comer, e depois de saber o nome do casal pediria ajuda aos seus pais.

— E-Ei! Se vocês... Se os senhores... – a coragem sumia conforme os analisava de perto. Sujos e com cheiro ruim, lhe deram um pouco de medo – Eu queria dar algo para comerem, ahn... E queria saber o nome porque eu ia dizer pros meus p-pais-

Foi cortado.

— Garoto! O que você tem aí? – num pulo, o homem, de repente, estava ao seu lado e a mulher e o cachorro tinham parado tudo para observar a criança.

— O meu lanche. Tem bastante coisa, não comi nada dele hoje – puxando a mochila para frente, a abriu, tirando o pacote.

— Hum... – o homem puxou a sacola de sua mão, a passando para a esposa depois de dar uma breve olhada – Vai dar essa comida velha pra gente?

— N-Não! Não tá velha, foi hoje de manhã... que minha mãe fez – Daniel franziu o cenho.

— É, tá ruim já! – a mulher concordou, fazendo uma careta ao olhar o conteúdo – E tá fria, não dá pra comer! A gente tá mesmo é com frio, menino, não tem um café aí? Uma sopa bem quente?

O garoto foi pego desprevenido por aquela atitude atrevida dos dois. Não conseguia entender porque eles simplesmente não aceitaram e ficaram gratos, não entendia porque não tinham só ficado felizes. Na dúvida de como reagir e, repentinamente com medo de desagradá-los, Daniel acabou sendo levado na conversa.

— “Sopa”? A-ah... Talvez tenha... Em casa – apertou a mochila contra o corpo – Minha mãe disse que ia deix-

Foi cortado.

— Olha só! Que bom!

— Então tem comida na sua casa, garoto? – o senhor lhe deu batidinhas no braço – E tem roupas? Será que tem algum casaco? Eu estou todo molhado!

— E eu queria tomar um banho quente! Faz tanto tempo que a tia aqui não toma banho – a mulher se aproximou, juntamente com o cachorro.

— Não, ahn... E-eu posso trazer a sopa aqui, só esperem um pouco – disfarçadamente, tentou dar meia volta, mas teve os ombros enlaçados pelo senhor.

Bruscamente enlaçados.

— Quê...? Que foi? – o menino demorou para entender o motivo do senhor olhar repetidamente para os lados. Queria se assegurar de que não havia nenhum curioso por perto.

— O tio precisava de mais uma coisa também, mais importante que tudo isso. Se você tiver dinheiro, garoto, nem precisa das outras coisas.

De repente, o homem havia puxado sua mochila, com um sorriso seco no rosto. Rapidamente achou a pequena carteira, recheada com sua mesada e com o dinheiro que os pais deram para pagar o passeio escolar. O velho agia como se lhe pertencesse.

— E-Ei! Espera – Daniel tentou timidamente tocar na beirada da carteira, porém, logo foi empurrado e, surpreso, deixou-se cair no chão.

Caiu em uma poça de água fria e suja.

E, depois da atitude agressiva do homem, o grande cachorro saltou até a criança, rosnando ferozmente. Não atacava, entretanto, esperava o comando do dono, como se estivesse de guarda.

O coração de Daniel passou a bater tão rápido que as mãos começavam a tremer e o corpo todo parecia preso em uma espécie de transe horrível. Foi sua vez de olhar em volta. E não havia ninguém. Os carros e as pessoas passavam tão rápido que dificilmente reparariam na cena.

— O que tá olhando, menino?! Sai daqui! – a mulher correu em sua direção – Ou quer que a gente vá na sua casa?!

Antes que fosse chutado pelo pé que a senhora estendia na sua direção, levantou-se.

De cenho franzido, incapaz de entender o que tinha acabado de acontecer, Daniel saiu correndo por instinto. A touca e o cachecol caíram pelo caminho, a criança sequer percebeu. A única coisa que percebia era a chuva leve sobre o seu rosto e cabelo. O vento gelado que parecia cortar seu corpo e sua alma em vários pedaços. E o vapor branco da sua respiração, nublando sua visão junto das lágrimas que queriam sair, mas não saíam.

Daniel quis genuinamente ajudá-los, e achou que seria genuinamente agradecido, então iria para casa feliz. Teve pena daqueles moradores de rua, mas o jovenzinho ainda não entendia nada sobre os seres humanos. O acontecido fez com que os pais o fechassem ainda mais na bolha, mesmo na época da faculdade, o que prejudicou seu amadurecimento. No entanto, também o fez perceber um novo lado da humanidade. Algo que demoraria para conhecer de outra forma. O lado que age por instinto, o lado animalesco, o lado que é feio.

Pessoas em situações extremas parecem perder o que chamamos de humanidade. Sejam as pessoas muito ricas, muito pobres, muito poderosas, muito doentes, muito estressadas, muito excitadas... Existe um ponto em que o “senso comum” se perde.

Nesses momentos, as pessoas deixam de ser “humanas”, ou é aí que se tornam verdadeiramente “humanas”?

Quando Daniel se perguntou isso, percebeu que antes de tentar entender o comportamento humano atual, precisava entender de onde viemos e como foi nosso desenvolvimento. Milhares de anos atrás, ainda éramos os mesmos? Aparentemente, houveram épocas em que ser “animalesco” não era tão ruim. Quando se tornou ruim? Se existíssemos em outro planeta, em outras condições, ainda seríamos dessa forma?

[...]

Atualidade

Daniel tinha certeza que acordaria no seu colchão fino, dentro da tenda que ele e os outros pesquisadores chamavam temporariamente de casa. No máximo, acordaria no precário hospital local. No máximo dos máximos, acordaria num hospital em Jaipur ou Nova Deli. Estourando, caso estivesse mal, tão mal, tão mal que quase morreria, acordaria num hospital em Londres, com os pais bravos ao seu lado.

Mas nada disso aconteceu. O desconforto parecia mil vezes pior do que estar no colchão fino da cabana ou num hospital, mesmo que um hospital de zona rural.

Só respirar já era muito difícil, parecia que o ar sequer possuía oxigênio. A sensação era a de existia um grande peso em seu peito, sobre seu corpo todo. Se sentia esmagado. Aliás, estava mesmo acordado? Sua mente parecia trabalhar com menos de 30% da capacidade, enuviada por uma aura moribunda. E se estivesse morrendo? Morrendo... A possibilidade de estar de frente para a morte fez o corpo despertar.

Lentamente, levou as mãos até as costelas, certo de que acharia algo muito pesado o prendendo ao chão. Porém, não havia nada ali. Os dedos de articulações rígidas se fecharam sobre o ar. Quando tentou abrir a mão novamente, sentiu o estalo dolorido das articulações rígidas, endurecidas pela baixa temperatura.

Fazia frio. Muito frio. Tão frio quanto em alguns dias de inverno na Inglaterra. E o vento forte que sentira na “sala do ritual” em Amir Nada ainda estava presente. Mais do que isso, uma garoa fina dançava pelo ar, molhando lentamente tudo que tocava. A primeira coisa que veio à mente sonolenta foi que não tinha como estar no estado do Rajastão. Perto da fronteira com o Paquistão, aquele lugar tinha clima quase desértico.

Garoa?! Nem nos seus sonhos conseguiria sentir o frescor de uma garoa daquela forma! Parecia até que estava em Londres de novo.

Abriu os olhos, com medo de acordar num quarto de hospital britânico, entubado, com a janela esquecida aberta.

— Hã? – embora tivesse aberto os olhos, permanecia sem enxergar. Isso até se dar conta de que o ambiente apenas era extremamente escuro.

Daniel estava deitado sobre um piso gélido, de cor negra, como o piso no interior da escavação em AmirNada. Mas o local era outro, sem dúvidas. Ao olhar para cima, constatou que se encontrava em uma espécie de coreto, ao relento, e no meio da noite mais escura que já havia visto.

A cabeça doía tanto que Daniel cogitou ter sido atingido por alguém. Isso! Teria alguém descoberto AmirNada e o raptado? Tocou os pulsos em busca de amarras e não encontrou nada. Ao lado do seu corpo, o tablet e a lanterna que usava antes de desmaiar. Com custo, se colocou de pé. Guardou o equipamento dentro do macacão e usou a lanterna para iluminar os arredores.

— Uau...

Diante de si, surgiu uma área descampada, coberta por grama curta, de aparência macia. Mais ao fundo, árvores enormes formavam uma mata densa, fechando a visão. À frente, podia ver as luzes de uma enorme construção, que se assemelhava em partes à um castelo nipônico, em partes à um castelo renascentista. Após o castelo, um penhasco, e tudo voltava ao breu.

Retirou o celular do bolso, apenas para confirmar que não havia sinal.  Mas, já que ainda havia bateria, considerou que não devia ter passado muito tempo desde seu desmaio. Daniel poderia estar assustado, mas a mente curiosa falava mais alto. Mesmo que estivesse sonhando, queria aproveitar ao máximo aquele sonho. Abriu a câmera e começou a filmar.

— Uau... Olha isso aqui no coreto...! – passou os dedos por cima das palavras talhadas – “Nystul”...

Após pronunciar o nome, sentiu o coração acelerar. Estaria ele no território “daquele povo”? Talvez eles estivessem vivendo escondidos todo esse tempo! Em um lugar como... Será que estava na Mongólia?

Ansioso, tateou os bolsos em busca de uma bússola, só para descobrir que não funcionava. Bagunçou os cabelos, sentindo a cabeça rodar novamente. Não se sentia bem. A garganta seca chegava a coçar. Água. Precisa beber água mesmo que isso custasse sua vida. Se sentiria melhor depois disso. Traçou um caminho até o palácio e seguiu em frente. Ignorando as dores pelo corpo e a falta de ar, filmava cada detalhe.

Não enxergava muros na propriedade. Entre o gramado e as paredes da edificação, um pátio descoberto, revestido de algum material natural dourado e nodoso. Era decorado com estátuas de humanos e de animais, esculpidas em pedras cor de mel, em vários níveis de translucidez. Poderia ficar ali por anos, apenas estudando as estátuas, mas a sede o lembrava de continuar.

Não via ninguém, mas podia ouvir o som de vozes humanas vindas de dentro do castelo. Pelo menos algumas dezenas de vozes diferentes. Ouvia gargalhadas, alguns gritos alegres, música alta... Aliás, nunca tinha ouvido uma música como aquela, e, apesar de não ter voz, se fazia incrivelmente melodiosa. Calma, ao mesmo tempo em que parecia cheia de vida. A atmosfera gostosa que vinha de lá fez Daniel relaxar um pouco.

Fossem as pessoas que fossem, tinham um lado acolhedor. Não sentia que tinha sido raptado, ou que seria morto se aparecesse na frente deles. Aliás, seja lá o que tivesse acontecido, provavelmente estava ali por algum engano. Era o mais lógico a se pensar. Todos esses meses de trabalho podem tê-lo feito desenvolver algum tipo de amnésia! Talvez tivesse um motivo para estar ali, talvez o pessoal da escavação estivesse ali também. Se tivesse sorte, seria assim.

Na metade do pátio havia uma pedra com cerca de 3 metros de altura, feita do mesmo material do piso, parecia sintética. Dela brotava um líquido rosado, semitransparente, completando um belo chafariz. Era atrás dessa pedra, enfim, a grande porta dourada. Daniel pensou em simplesmente bater e pedir ajuda.

Pensou.

Pensou.

Vários minutos se passavam e não tomava coragem para tocar a campainha. Suas forças esvaeciam-se novamente, com apenas essa curta caminhada.

Desistiu quando viu uma das janelas abertas.

As janelas do piso inferior pareciam muito com as janelas que estava acostumado a ver em Londres, do tipo guilhotina. No entanto, muito maiores, vidros decorados com vitrais em tons de laranja, amarelo e vermelho, desenhos abstratos. Até as janelas pareciam incríveis! Tudo que via, lhe atiçava o olhar.

Daniel desligou a lanterna e colocou a cabeça para dentro. Não via muita coisa, mas a porta estava fechada e uma enorme jarra com um líquido transparente lhe chamou a atenção.

Com um pouco de dificuldade, pulou a janela, tropeçando na aterrisagem e indo parar de cara no chão. A dor não foi nada comparada à surpresa.

— Eh?! – espantado, começou a tocar o chão. Era a mesma opala negra da construção em Amir Nada, ainda mais lisa e, dessa vez, sem um pingo de poeira. Parecia a marca registrada daquele povo.

Iluminou o cômodo, enxergando uma cama grande num dos lados, construída numa estrutura tubular que se estendia até o teto. À frente, portas francesas com detalhes talhados na própria madeira. Do outro lado, várias portas finas e estreitas preenchiam a parede, como um armário embutido. Sem dúvidas, era o quarto de alguém. De alguém muito requintado e endinheirado. Só aquele cômodo era maior que muitos apartamentos em Londres.

Daniel continuou caminhando, até alcançar a mesa próxima à porta, onde o “jarro de água” estava e se serviu sem ressalvas. Tanto o copo quanto a jarra eram mais pesados do que se lembrava, mas a água era fresca e bastante real.

Foi a melhor água de sua vida!

Suspirou aliviado. Após beber metade dele duma única vez, se sentia quase capaz de pensar direito. Colocou as mãos na cintura e respirou fundo. Tentava montar uma reconstituição na cabeça.

Onde estariam os outros? Prof. Lennox, Kabir, Raj... Olhou suas mensagens, não encontrando nada novo há... Piscou várias vezes, para confiar se o que estava vendo era certo. Os lugares onde a hora era marcada estavam resetados. Tanto nas mensagens, quanto no próprio relógio do celular. Verificou a data, se encontrava da mesma forma.

O coração só não acelerou tanto porque algo mais chamou sua atenção.

Daniel ouviu passos do lado de fora, muito próximos ao cômodo em que estava. A atmosfera calma e aconchegante da casa foi brutalmente quebrada com os gritos alterados que passou a ouvir. O corpo congelou. Talvez alguém tivesse descoberto que estava ali! Sentindo que se aproximavam cada vez mais, enfim, ouviu a maçaneta. Em desespero, Daniel abriu uma das portas na parede e se enfiou dentro. Os tecidos roçando em seu rosto confirmaram ser um guarda-roupa.

O local mais óbvio para um esconderijo! E, de fato, se estivessem procurando pelo Daniel o teriam encontrado rapidamente. Mas, para a sorte dele, não estavam.

A gritaria na verdade se revelou uma discussão. Duas vozes dialogavam num idioma desconhecido, porém que parecia familiar ao cientista. Duas vozes masculinas, ambas emanavam uma aura orgulhosa, nenhum pouco dispostas a ceder. Após a porta ser aberta, apenas uma pessoa entrou. E, apressada, trancou a porta. Não deu dois segundos, começaram a bater e gritar ainda mais alto do outro lado.

As luzes continuaram apagadas.

A pessoa no quarto tapou os ouvidos com as mãos e, escorada na parede, escorregou até o chão. Pela fresta no armário, o rapaz conseguia ver quase todo o quarto. O desconhecido nas sombras usava uma espécie de gorro ou capuz, de modo que não era possível ver seu rosto. Possuía cerca de 1,70m de altura e um corpo magro de estrutura pequena. Estava coberto por um tecido felpudo único, como uma túnica fechada, e nos pés sapatos fechados com saltos de tamanho médio.

Foram a primeira coisa que o desconhecido fez voar pelo quarto, após levantar a cabeça. Um dos sapatos passou para fora pela janela, o outro se chocou com força contra o metal da estrutura da cama. O barulho fora assustador.

— Uh...! Uh...! – no que parecia um choro contido, curvava o corpo contra o chão enquanto se agarrava ao próprio estômago.

Após alguns minutos, quando a pessoa fora do quarto pareceu ter ido embora, o rapaz de dentro se colocou de pé. Correu até a janela, a trancando e puxando as cortinas. Depois, tentando correr até a escrivaninha ao lado da cama, tropeçou nos próprios pés, quase caindo no chão. Ofegante, se escorou à parede como se necessitasse recuperar o fôlego. À passos oscilantes, devagar, parou em frente o móvel e abriu uma gaveta. Tirou de lá um saco de veludo preto e se arrastou até o jarro de água. Tomou um punhado de comprimidos, entre lágrimas, soluços e palavras desconhecidas.

Mas, então... Aquilo aconteceu do nada, como se repentinamente tivesse se dado conta.

Ficou em silêncio. Endireitou a postura, quase imóvel, deixou as coisas que segurava sobre a cômoda e se virou. Virou lentamente na direção de Daniel. Uma das mãos foi aos olhos, enxugando as lágrimas, então inclinou a cabeça para a direita e para a esquerda.

Não. Não, não— o que ele repetiu três vezes em tom de incredulidade, era a palavra “não”, no novo idioma de AmirNada.

Daniel reconheceu, se sentindo muito orgulhoso. O idioma soava um pouco diferente do que ele e a Dra. Aisha achavam, mais melodioso e levemente anasalado, mas estavam certos o suficiente para conseguir reconhecê-lo. No entanto, naquele momento o inglês também teve medo, porque parecia que aquelas palavras estavam sendo ditas para si. Mesmo sob a proteção da madeira, era observado, percebido. Acontecera tão rápido que até parecia que o outro possuía algum sexto sentido. Lentamente, os pés descalços apontaram na sua direção e começaram a caminhar.

O coração de Daniel continuou disparando e a mente voltava a vacilar. O que era aquilo? Franzia as sobrancelhas, tocando sobre o peito, não conseguia entender o que estava sentindo. Parecia com “medo”, mas não sentia que estava em perigo. Queria correr, mas também sentia uma grande curiosidade e desejava ficar.

Encolhido entre as roupas, Daniel deu um longo suspiro, buscando se acalmar. E o ar que entrou em seus pulmões cansados... Aquele ar possuía um odor doce que crescia mais à cada segundo. Quase enjoativo, assemelhava-se a canela e açúcar, caramelo fresco, ou mel silvestre... Chegou a lamber os lábios, sentindo a boca salivar. E, conforme a silhueta se aproximava do guarda-roupa, o cheiro conseguia preencher todo o seu olfato. Para além de “doce”, era um cheiro tão, tão... Familiar.

Daniel balançou a cabeça para os lados, tonto.

O rapaz do lado de fora retirou o capuz, revelando cabelos longos que, mesmo sob a escuridão, ainda emitiam um incrível brilho. Parou na frente do armário, como se cogitasse o que faria a seguir e, num rompante, abriu a porta. Como que guiado por instintos, enfiou a mão direita entre as roupas, a levando direto para o pescoço de Daniel. Então, com mais força do que aparentava ter, o apertou e puxou seu corpo inteiro para fora.

O londrino não conseguiu emitir um som sequer, paralisado pelo susto. Não se debateu, não protestou, não lutou nem mesmo com sua mente. Mesmo que a mão pequena no pescoço de Daniel fosse incapaz de quebrá-lo, a aura dominante o estava esmagando psicologicamente.

Não... Shinshu bari ave shutumon... – falando rápido e sussurrado consigo mesmo, olhava para Daniel com desprezo, como se não passasse de um inseto invasor. O rosto ainda coberto pelas sombras.

Silêncio.

Daniel começou a sentir dificuldade para respirar. Tocou suavemente sobre as mãos do desconhecido, tentando pedir por clemência. Quando as pontas ásperas e frias dos seus dedos tocaram a pele macia e quente, pareceram queimar. Tremiam como se já tivesse tocado uma pele como aquela antes. A abrupta sensação de nostalgia o esmagava! Precisava ver o rosto daquela pessoa misteriosa. Porém, por mais que Daniel abrisse os olhos, não conseguia enxergá-lo direito naquela escuridão. Isso lhe deixava maluco!

De repente, sentiu os dedos se afrouxarem. Até mesmo a expressão dura e a aura pesada que emanavam para si começou a se dissipar. Quando teve o pescoço solto, tonto, caiu sobre o chão, tossindo algumas vezes enquanto recuperava o fôlego.

De repente, parecia tão interessado em Daniel quanto vice-versa. O desconhecido se abaixou de cócoras ao seu lado, inclinando a cabeça para a direita e para a esquerda, atraído por algum detalhe em sua fisionomia. A mão delicada voltou a roçar no pescoço do londrino, dessa vez se enroscou no cordão negro, puxando o precioso pingente de Gobëkli Tepe entre os dedos. O observou, rolando a pedra arredondada nos dedos.

— Duvee cat ko? – perguntou, soltando a voz num timbre suave e melodioso bem perto do rosto do garoto.

Aquele timbre... Aquele idioma... Aquela voz... Enfim, Daniel entendeu onde tinha visto. Teve um Déjà Vu tão forte que um vislumbre do rosto escondido pelas sombras brilhou diante de seus olhos. Era ela! A figura-mágica que encontrou em Gobëkli Tepe quando criança! A maravilhosa figura que estampava o salão principal na escavação em Amir Nada! A pessoa que tomou conta de seus pensamentos por longos anos.

— Duvee cat ko? – repetia, aproximando o nariz do pingente e inspirando fundo, como se tentasse confirmar alguma coisa. Parecia hipnotizado pelo objeto. A aura dominante dava lugar à uma melancolia tão palpável quanto.

Daniel, cego pelas lembranças agradáveis que tinha de seu encontro anterior, levantou o tronco, puxando impulsivamente o outro pelos dois ombros, para perto de si.

— Sou eu! Daniel! A criança que voc-

Não teve tempo de terminar a frase. O susto com a proximidade foi tão grande para a “pessoa mágica” de Daniel, que ela lhe acertou um golpe certeiro na cabeça e ele não viu mais nada.

Estava desmaiado novamente.

O escuro ficou mais escuro.

Perdeu a consciência.

Dessa vez de verdade.

[...]

Cerca de 8 horas depois, Elmimi se sentia muito melhor. Apesar do exterior continuar escuro, as luzes do quarto se acenderam automaticamente, revelando sua singular aparência. Mesmo as olheiras avermelhadas não lhe tiravam a beleza do rosto angelical. O nariz aquilino trazia uma cativante masculinidade para o rosto de traços delicados. Um queixo fino e maxilar anguloso emolduravam os lábios arredondados e cheios, bem como os olhos delgados de cílios longos. As sobrancelhas retas e grosas, porém com pelos quase do tom da pele, se tornavam suaves e elegantes. Da testa alongada e cabeça pequena saíam os longos e volumosos cabelos dourados. Lisos, iam até a altura dos quadris, e nunca pareciam embaraçados. Aliás, “dourado" era pouco para descrever, tinham cor de ouro, ouro 24k, ouro rose, a cor dos quentes raios de sol do final do dia. Nem tão claros, nem tão escuros. Quase pareciam emitir luz. Assim também a pele. Não era simplesmente branca, não era pálida e tampouco era bronzeada, mas ainda assim possuía um tom dourado belíssimo.

As pessoas daquele lugar eram bonitas, mas Elmimi ainda se destacava.

Naquela segunda-repetição-da-noite, abriu os olhos cor âmbar, claríssimos, com um pequeno sorriso no rosto. Sorriso que sumiu assim que se deu conta de que estava sozinho. Onde havia ido parar o invasor? Elmimi sentou-se sobre a cama, olhando abismado ao redor. Quase podia enxergar o rapaz desconhecido dormindo ao pé da cama, depois de tê-lo desacordado. Agora não estava mais lá? Como uma pessoa que parecia tão fraca sumiria assim?

— Ah! Man’li! – xingou, dando um pulo até o chão. Não conseguia acreditar.

Tocou as têmporas e inspirou fundo. Expirou. Se debruçou sobre o tapete, olhando cuidadosamente embaixo da cama, não estava lá.  Recolheu um de metal, de forma cilíndrica e ponta fina, de uns 15 centímetros. Era do suposto invasor, com certeza. Levou até o nariz, voltando a inspirar fundo. Então começou a cheirar o dispositivo, torcendo uma das sobrancelhas. Encontrou fácil o botão que expunha a ponta da caneta, então torceu ainda mais o cenho para o cheiro da tinta. A escondeu novamente sem pensar duas vezes. Elmimi então encarou a mão livre, mexendo os dedos como pensasse na sensação de segurar o pingente arredondado há algumas horas atrás. Foi quando um olhar determinado surgiu em seu rosto.

Deixou a caneta sobre a cômoda e começou a tirar a roupa que usara na festa. Estar com aquelas peças apertadas há tanto tempo fazia sua pele coçar. As deixou sobre o chão de qualquer jeito e foi até o guarda-roupa. A porta que havia puxado quando capturou o invasor ainda estava aberta e, se Elmimi prestasse atenção, ainda podia sentir o cheiro de poeira e suor azedo que exalava. Não tinha dúvidas de que se tratava duma das “criaturas-das-colônias”.

Deu um longo suspiro, suavizando a expressão.

— É minha culpa...

Antes que pudesse fazer qualquer outra coisa, entretanto, ouviu vozes altas no corredor e o barulho da fechadura do quarto sendo aberta, logo em seguida. Só teve tempo de se enfiar dentro de um robe de seda ocre, pendurado bem à sua frente.

— Ei! Elmimi, seu estúpido! – gritando, sem cerimônia alguma, um homem alto entrou no quarto, seguido por uma mulher de estatura similar, do lado de fora era possível ver mais umas 5 ou 7 pessoas – Covarde de man’li! Não falará nada sobre ontem?!

— Saiam do meu quarto! Não podem estar aqui! – Elmimi não ficava para trás no grito – Azzi! Onde está a Sra. Azzi?! E, vocês, – se dirigia às pessoas paradas e uniformizadas do lado de fora – como deixam entrarem assim?!

Ficaram quietos.

— Acha que algum deles nos impediria de vir aqui?! – a mulher se aproximou um pouco mais, semicerrando os olhos – A própria Sra. Azzi nos deu a chave do quarto. Temos assuntos oficiais.

Elmimi mordeu os lábios, decidindo ficar quieto. Tinha que pensar antes de agir no meio daquelas pessoas.

Os três ali eram obviamente da mesma família, com a mesma aparência chamativa. Entretanto, os dois não eram nem de longe tão bonitos quanto Elmimi. O homem tinha cabelos curtos e ralos, além de uma barba áspera e corpo musculoso. Já a mulher tinha membros finos, costas encurvadas, busto grande demais para a silhueta, além de rugas profundas nos cantos dos lábios.

— Fale alguma coisa! Deve lhe faltar cérebro para ter deixado o Sr. Galli sozinho na festa! Todos comentaram sobre isso. Ser minimamente cortês não te fatigaria em nada, Elmimi! – o homem, apenas um pouco mais velho que o irmão, falava como quem dava as ordens.

— Filho, tem conhecimento do quão raro são homens como o Sr. Galli?! E agora que nós finalmente acertamos tudo, Elmimi! Depois de todos esses anos! Depois de termos chamado tanta gente aqui...! – a mãe adotava uma postura de lamento. Estava inconformada.

— O que aconteceu, “príncipe”?! Queria envergonhar sua família?! Você disse que estava de acordo com isso. Deu sua palavra! – serrando os punhos, o irmão parecia se controlar muito para não voar no pescoço fino do mais novo.

— Eu... – olhando de um lado para o outro, com medo que o invasor de repente surgisse de algum lugar, engoliu a raiva e abaixou a cabeça – Eu sinto muito, eu tive um imprevisto e ainda não estou me sentindo bem. Será que podem sair? Estou usando só esse robe, vocês estão me deixando desconfortável.

A mãe olhou dele para o filho mais velho, entortando os lábios quando notou os olhos atrevidos sobre o corpo de Elmimi. E foi aí que ela reparou a bagunça pelo quarto, os comprimidos, as roupas pelo chão e a cara cansada do filho mais novo. Teve uma ideia parcialmente errada.

— Há, há, há, Elmimi – ela não pôde deixar de sorrir – Se o Sr. Galli mexeu tanto com você, deveria ter dito a ele. Ou está pensando em esperar até o casamento?

— Matter, por favor – o mais baixo dentre os três caminhou até a porta, a abrindo mais – Saiam daqui.

— Mas nem é lua cheia! É sério isso?! – o barbado abriu um sorriso incrédulo – Então foi o seu cheiro na festa ontem?! Isso é tão nojento! Estavam todos comentando sobre isso. E pensar que era o meu irmãozinho...!

— Você é o nojento! Pare de me encarar! E saiam logo daqui – virando o rosto para o lado, via de soslaio o irmão, provocativo, se aproximando de si – Matter! Tira ele de perto de mim! Isso não tem graça.

— Elmimi, fez de propósito? Aliás, quando é que seu corpo voltou a funcionar? – o maior desceu a mão pelo seu cabelo suavemente, fazendo o corpo de Emimi se encolher ainda mais. Então baixou o tom, para que apenas os dois escutassem – A matter ainda não sabe, mas capturamos o seu amante há algumas horas.

Elmimi arregalou os olhos, encarando o outro com incredulidade.

— Dinmi, do que está falando? – sussurrou entre dentes.

— O trazendo para o seu quarto no palácio, no dia do seu noivado... Quão depravado você é? – desagradável, ainda pegou a mão do mais novo, num falso gesto de carinho.

A mãe, felizmente, logo interviu.

— Dinmi. Pare imediatamente – levantou o tom da voz, fazendo o mais velho se sobressaltar – O que está sussurrando para seu irmão?

— Estou apenas brincando, Vossa Majestade Imperial! – com um sorriso irônico, levantou ambas as mãos.

— Saiamos. Deixemos Elmimi por hora – deu as costas, seguindo para fora do quarto. O mais velho foi logo atrás, deixando a porta escancarada.

Elmimi olhou com raiva para os guardas paradas do lado de fora de sua porta. Provavelmente eram os responsáveis pela captura do “invasor-idiota”. Engoliu seco, pensando na enrascada em que estava metido. Quando percebessem que não era simplesmente um “amante” do príncipe...! Tinha vontade de arrancar seus cabelos.

— Com sua licença, Vossa Alteza, Príncipe-Elmimi – a tal Azzi surgiu, fazendo uma longa reverência após encostar a porta atrás de si, lhes dando privacidade – Sinto muitíssimo por tê-los deixado entrar assim. Ainda estou sujeita às ordens da Imperatriz e do Príncipe-Dinmi.

— Eu sei. Não foi culpa sua – mal-humorado, apesar das palavras mansas deu-lhe as costas, indo até o jarro de água na cômoda.

— Agradeço. A refeição em família ficou agendada para a terceira hora do período-de-trabalho. Vossa Alteza tomará banho por agora, como sempre? Já está preparado. Também separamos um dos trajes que o Rei-Gali trouxe daquela nova colônia de Ciano, aquele cor-de-mel que havia gostado. Como será transmitido para a po- – a mulher foi cortada.

— Não vou – Elmimi foi direto, mas logo pensou melhor – Não vou tomar banho agora. Sairei para resolver um assunto particular e tentarei voltar a tempo da refeição. Deixe o traje na minha sala de vestir, não precisam me esperar.

— Claro que esperaremos – desconfortável, parecia quase tremer de nervosismo. Ela era a responsável pelo Elmimi, afinal – C-Com sua licença, Príncipe, quanto tempo esse assunto demorará? Se seus pais souberem sobre sua ausência-

Foi cortada novamente.

— Não pretendo ir muito longe, não se preocupe – desatou o nó do seu robe, dando mais um suspiro – Agora, quero que saia do quarto.

— Desculpe-me, Alteza.

[...]

Dessa vez, Daniel acordou numa cama quente e sem dores pelo corpo. Na mesinha ao lado da cama, o cheiro delicioso de alguma comida fez seu estômago roncar antes mesmo de abrir os olhos. Quando os abriu, entretanto, era certo que estava em alguma espécie de prisão. O espaço era pouco, além da cama e da mesinha, havia apenas espaço para uma poltrona. E imaginou que atrás da parede baixa de vidro fumê estivesse o banheiro. Diferente do que vira do lado de fora do palácio e no quarto, o design de tudo ali era muito simples, ainda que bonito.

Sentou, e se espreguiçou, notando que ainda vestia o macacão e estava com todos os seus objetos pessoais, o que foi um grande alívio. Então, Daniel deu uma segunda olhada pelo cômodo, franzindo o cenho para a “suposta janela” que não emanava luz nenhuma. Era impossível que ainda fosse noite, certo?

O londrino se levantou e foi até o corpo de vidro, direcionando a câmera do celular para aquela paisagem noturna vista do alto. Sim, ainda era noite, tão escuro quanto quando acordara no coreto. Ainda parecia garoar e o vento ainda soprava forte. A única coisa que diferia de antes era o brilho alaranjado que parecia banhar a paisagem, a grama e a floresta distante. Não conseguia ver de onde vinha a luz, entretanto. Chutou que deveria ser de algum holofote.

— É lindo... Aqui com certeza poderia ser a Mongólia ou o Tibete.

Quase capaz de esboçar um sorriso, voltou a ficar em alerta quando ouviu vozes do lado de fora da porta de vidro. Provavelmente estava sendo observado, assim como observava. Talvez estivesse ali por ter sido considerado uma ameaça àquela civilização que se escondeu por tanto tempo. Não os julgava! Fazer parte do “mundo real” não parecia ter lá muitas vantagens atualmente. Talvez a sua “pessoa-mágica” o tenha denunciado. Ainda cogitava a ideia de que toda a sua equipe estava naquela terra também, em celas como a sua, esperando por alguma sentença ou julgamento.

Respirou fundo, se sentando na poltrona e trazendo consigo a bandeja de comida: uma porção generosa duma espécie de mingau salgado, com vários itens pequenos, de consistência gelatinosa. Estava com fome há tanto tempo que não conseguia julgar se a comida era mesmo tão gostosa daquele jeito, ou se fora a fome que a fizera ficar saborosa. Parecia a melhor comida de toda a sua vida!

O arroto que soltou depois de terminar e saciar a barriga vazia fora igualmente prazeroso.

Daniel estava se preparando mentalmente para ficar na sela por dias, talvez semanas. É claro que dariam sua falta. O pessoal da escavação, ou os moradores de AmirNada, até mesmo seus pais. Mas demoraria até localizá-los, isso podia garantir. Até que fosse resgatado, ou libertado, poderia aplicar as aulas de meditação que andou tendo com o Prof. Kabir. Poderia continuar pensando e estudando sobre o povo “Nystul”, talvez até aprendesse algumas coisas ali de dentro da sela.

De repente, Daniel se colocou de joelhos no chão, abaixando o tronco sobre o piso, o tocando e olhando com curiosidade. A cor creme pálida, tão bonita. Não era a suposta “opala-negra”, mas sim um piso mais macio, mais quente. Não parecia madeira de nenhum tipo, também não parecia ser simplesmente plástico. Talvez algum tipo de resina? Um tipo de resina epóxi? Encostou o nariz no piso, tentando sentir o cheiro do material.

Foi nessa posição constrangedora que Daniel foi encontrado por sua “pessoa-mágica” e agora salvadora, que o observava de pé, do outro lado da porta de vidro. Bem, ele e mais 5 membros da guarda do Princípe-Dinmi, estavam todos de pé, observando a cena. Elmimi teve de engolir o orgulho e respirar fundo. Por mais humilhante que fosse, era melhor que acreditassem que o invasor era seu amante, ao invés de saberem a verdade.

Epen-tuse— com um gesto, pediu que os guardas abrissem a porta.

— Com sua licença, mas não temos ordens de abrir a cela para ninguém além do p- – antes que o mais alto dos guardas terminasse a fala cheia de petulância, Elmimi mostrou quem era.

Mostrou a arma que carregava consigo, a apontando diretamente para a cabeça do intrometido. Pequena, ainda que tivesse um formato inovador, se parecia com uma arma de fogo. Foi nítida a irritação dos guardas, mas nenhum deles ousaria colocar a mão sobre um membro da realeza, ainda mais dentro de sua casa.

Epen-tuse – repetiu, mantendo a ameaça. Dessa vez, fora prontamente obedecido.

O barulho da porta se abrindo fez Daniel se sobressaltar. Ele levantou o tronco e se virou, preparado para ver qualquer coisa, menos aquilo. Um calafrio percorreu seu corpo e por pouco não liberou o grito que subia pela garganta. A sensação de déjà vu lhe dava medo. Ainda assim, vendo a “pessoa-mágica" com as luzes acessas pela primeira vez, um largo sorriso tomou sua face.

“Magnífico...”

Se lembrou imediatamente da pintura na escavação em AmirNada. Conseguia ser ainda mais bonito. Mesmo o rosto que habitava suas lembranças da infância, não tinha como ser tão bonito quanto esse à sua frente.

Elmimi piscou algumas vezes, estranhando o olhar que o outro lhe direcionava. Não era um olhar desesperado, ou agradecido, nem mesmo pedinte... Era um olhar de pura admiração. Como uma pessoa que vê o mar ou o espaço pela primeira vez na vida. Um olhar bobo, vulnerável e muito sincero. Não teve como se irritar, e a vontade de matá-lo também se extinguira completamente.

Elmimi foi até ele, fazendo um sinal discreto para que mantivesse silêncio, indicando os guardas do lado de fora com a cabeça. Em seguida, as írises douradas desceram para o cordão em seu pescoço. O pingente estava parcialmente visível, então Elmimi disfarçadamente fechou um botão extra do macacão, para escondê-lo bem. Em seguida, puxou uma capa escura e grossa que carregava no braço e cobriu o cientista dos pés à cabeça, prendendo bem o capuz. Parecia uma roupa de neve. Agarrou-lhe o pulso e o puxou para fora. Saíram juntos de lá como se fosse uma sala qualquer do palácio, e não uma sela. Nenhum daqueles guardas conseguiu se opor, apenas avisavam ao príncipe mais velho através do dispositivo de comunicação em suas orelhas.

Daniel o seguiu sem ressalvas, maravilhado com tudo que via. Dividido entre admirar as costas valentes à sua frente e os belíssimos corredores pelos quais passavam, sorria entusiasmado. O caminho, não lembraria nem que sua vida dependesse disso. Os corredores de pé direito alto, não eram tão largos ou tão compridos, ao invés disso pareciam mais um elegante labirinto. Em certo ponto, atingiram uma espécie de salão amplo, de onde era possível ver de um lado a outro do palácio. Do chão de opala-negra, os mosaicos unicolores feitos duma pedra dourada, com detalhes em ouro, se estendiam até as paredes. Nas paredes, arranjos com flores e plantas perfumavam o ambiente e também o deixavam muito acolhedor.

Elmimi suspirou, parecendo aliviado por chegar até ali, até mesmo diminuiu o passo. Seguiram de um lado a outro do salão, as duas pessoas que cruzaram seus caminhos, apenas fizeram reverências, sem nenhuma interferência. No entanto, somente soltou-lhe o pulso, quando terminaram de descer a escadaria nos fundos e pararam numa espécie de hall, de frente para uma grande porta fechada com um painel de senha. Não entraram. Elmimi apenas parou à sua frente, puxando um dispositivo eletrônico do bolso, semelhante à um celular.

Nan? Tus nan, dari? Tus annet, dari?— perguntou, num tom quase sussurrado.

— A-Ah... Uhn... – o londrino pensou por alguns segundos, forçando o cérebro às palavras que havia desvendado com a Dra. Aisha – “Nan”? Ah, Nan! Daniel! Mon... Mon nan Daniel!

Elmimi soltou uma interjeição de surpresa, estranhando muitíssimo aquele nome e aquele sotaque. Estava acostumado a lidar com estrangeiros, mas nunca havia ouvido nada como aquilo antes.

Daniel sorriu de lado, buscando pelo celular no bolso. Por sorte ainda tinha bateria. Buscou rapidamente por algumas fotos de AmirNada e então virou a tela para o outro. Com o dedo, apontou para si e em seguida para a tela, falando nas poucas palavras que conhecia naquele idioma.

— Eu, Daniel. Aqui, AmirNada, Índia. Daniel casa.

Intrigado, Elmimi puxou o aparelho de sua mão, o virando de um lado a outro antes de olhar as fotos. As passava rapidamente, vendo as escavações, a cidade empoeirada, a culinária indiana da Dona Mahara, inclusive os colegas de trabalho de Daniel. Chegou a ver algumas fotos de Londres, de Nathalie e até de alguns animais. Em certo ponto, relaxou a feição e balançou a cabeça, como quem já entendia tudo. Chegava a parecer entediado.

— Sabe falar Nystul-ka? – perguntou, não ficando nenhum pouco surpreso com a resposta.

— Ahn... Não. Pouco.

— Certo – estendeu um dos braços, pegando Daniel pela mão.

Quando fez isso, porém, teve a mão puxada até que estivesse na frente do rosto alheio. Elmimi observou os olhos castanhos do rapaz brilharem enquanto admiravam seus dedos, suas unhas... Um olhar tão terno e inocente... Francamente! Quão fascinado aquele rapaz Daniel poderia se mostrar?! Elmimi bufou.

 – Pare de encarar e vamos logo. Temos pouco tempo.

Certo. Daniel entendeu que iam dali para algum lugar. Entretanto, também teve a estranha impressão de que Elmimi esperava que ele já soubesse que lugar era esse. Era quase como se Elmimi estivesse esperando que ele aparecesse.

Não era algum mal-entendido?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Enfim... O capítulo que finalmente expõe esse novo mundo, finalmente entramos em ficção científica, hehe. Foi convincente ou foi ridículo? Por favor, me falem.
Gostaram do Elmimi, meu amorzinho? Espero que não tenham imaginado alguém simplesmente loiro, não é assim, é como uma etnia completamente nova (mas não exagerem, tipo os soberanos da Marvel ok? Kkk).
E, qual será o mal entendido? O que o nosso menino dourado tá pensando do Daniel?
Não se esqueçam de comentar e até o próximo!
^3^ Kisus~~



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "San'Nen - Humanos de outra Terra" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.