Driving Home escrita por Kate Lewis


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Como quase tudo que escrevo, essa fic apareceu pra mim por uma música. Se quiserem colocar pra tocar no fundo, "Love Is a Many-Splendored Thing" tá nesse link aqui: https://www.youtube.com/watch?v=GYAgqH7sULc
(eu indico no texto o momento em que ela realmente começa hihihi antes disso talvez não faça tanto sentido)

Bia, amiga, espero que você goste ♥



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Se uma pequena mosca passeasse por aquele longo, longo campo, é provável que fizesse um relato uniforme da cena. Que dissesse que o céu se tingia de uma cor púrpura, que as nuvens se dissolviam em formas torvas; que havia dois grossos exércitos divididos igualmente em cada polo daquela arena, ambos muito calados.

Batendo as asinhas translúcidas, o inseto registraria, com seus olhos pontilhados, uma orla de demônios e outra orla de anjos alinhados, penachos vermelhos e auréolas brilhantes estáveis acima de cenhos fechados. De forma tão clara (assim como conhece a brevidade da própria vida), saberia imediatamente que estavam prestes a se embrenhar em uma guerra facínora.

Uma coisa apenas retiraria a regularidade daquela imagem. Isolados, no centro de tudo, um anjo e um demônio tinham os punhos amarrados por um metal gélido, e seus lábios tremiam de leve. Era tão claro como a luz do dia que não desejavam a guerra, que se entreolhavam como se não tivessem perdido totalmente a fé.

Não havia realmente nenhum motivo para manter aquela esperança particular: até o vento que corria pela arena, como um sussurro, parecia rir do suor em suas vértebras.

Eles tinham sido escolhidos para dar início àquela guerra. Um duelo mortal entre os dois traidores do Apocalipse definiria o clima da batalha final e bíblica; e aquele que restasse teria um destino pior, mais terrível, nas mãos do público sedento.

(Atravessada, uma única brisa percorre suavemente os fios de cabelo esbranquiçados do anjo, e parece cantar um pequeno alento pelo que está por vir.)

A hora chega. Um cântico de guerra já vem sendo aquecido por tempo demais em gargantas celestes – seis mil anos preso na boca do inferno – e precisa ser extravasado. A mosca observa e estaca quando doze badaladas de um sino soam de forma estridente, fazendo a multidão rosnar em expectativa.

Quando os exércitos se inclinam para presenciar o duelo, é possível sentir que o mundo parou de rodar pela primeira vez em muito tempo.

Crowley encara os olhos doces de Aziraphale, no entanto, e reverte a cena inteira. A carícia que toca os dedos do anjo é tão suave que ele tem de fechar os olhos.

Lábios apertados, Zira sente ainda o hálito quente do inferno às suas costas, sente a mansa declaração de Crowley nas costas de sua mão. Aperta os olhos mais um pouco, elisado, e então não sente mais nada.

 

Quando os abre novamente, não está mais em guerra; o barulho da multidão se dissipou. Aziraphale pode tentar contar os nós que se formam em sua cabeça, mas no momento tudo o que deseja é suspirar fundo.

As paredes do carro são escuras como se lembrava, e de alguma forma sabe que no porta-luvas à frente pode encontrar discos de rock autografados. O cheiro de Crowley está por todo lado, e um manto negro interminável de estrelas se espreguiça pela frente.

Em volta, tudo tão quieto.

Aziraphale olha para o lado em surpresa e encontra uma das mãos de Crowley sobre o volante, o braço esquerdo apoiado na porta. Os dois se entreolham ao mesmo tempo, e Aziraphale pode quase sentir as voltas inteiras de seu estômago.

"Crowley", pronuncia, sem sequer perceber o quanto soa aliviado. O homem ruivo abre um pequeno sorriso de lado, sobrancelhas um pouco arqueadas.

"Anjo", o chama, como se não soubesse que Aziraphale vinha se derretendo pelo apelido há séculos.

(Talvez Crowley tenha começado, veja bem, precisamente por isso.)

Por um momento, Aziraphale desvia os olhos, rubor cobrindo o rosto, e demora momentos compridos olhando pela janela. É maravilhoso ver o universo mais uma vez, mas um tremor ameaça estilhaçar a cena inteira: ele não sabe se está sonhando.

Quieto, os olhos ternos acompanham as estrelas passarem pela janela, toda a Via Láctea lentamente sendo deixada para trás. Pensa em lhe perguntar o que está acontecendo, mas o rádio começa a tocar uma melodia baixa e o anjo afunda no próprio assento.

Não há nada mais no mundo exceto Crowley dirigindo quietamente seu carro, e Aziraphale sabe precisamente para onde. Eles estão a caminho de Alpha Centauri: tudo de repente é muito claro. Exceto que ele não sabe como, como foram capazes de escapar – a vida anterior mais e mais embaçada.

Então o carro começa a parar, aos poucos, e a música aumenta alguns decibéis. Em comandos quietos, Crowley abre a porta e Aziraphale intuitivamente o segue para fora, ambos pontos minúsculos no meio do céu.

Estão tão aliviados que não é mais como se tivessem escapado de uma realidade, e sim a realidade escapado deles. Por algum motivo, esperaram a vida toda para que isso acontecesse.

Crowley alcança Aziraphale, flutuando em suas calças escuras e seu cabelo ruivo um pouco comprido. Os óculos de sol tampam ainda as fendas dos olhos, e Aziraphale acha melhor assim: sequer sabe se poderia se recuperar caso tivesse um relance delas.

(Do Bentley, uma melodia nova cresce pela janela, como um ramo de hera que se enrosca em seus pés. Love, a música diria, se não fosse só um piano suave, is a many-splendored thing.)

Crowley curva os lábios, próximo, e toma sua mão com uma delicadeza estranhamente familiar. Aziraphale toma um susto agradável quando o homem calmamente os encaminha para um ritmo lento; os dedos do anjo em seus ombros, uma mão de Crowley encostada em suas costas.

E eles são as únicas criaturas vivas em quilômetros e quilômetros de distância, e a música é tão bonita que Aziraphale começa perceber as primeiras lágrimas nos cantos dos olhos.

Crowley o afasta tão de leve. “Oh, anjo”, sussurra, e tenta limpar-lhe as gotas enquanto as sobrancelhas se curvam.

Aziraphale respira uma vez mais, olhando seus olhos. “Eu... isso é...”

“Só um sonho”, Crowley adivinha, e não suporta encarar seu rosto desmanchado. “Mas nós estamos sonhando juntos”.

Aziraphale o encara, e é como se toda aquela extensão de estrelas respirasse parada, quieta a observá-los. Como não sabe bem o que lhe dizer, estende os dedos em direção aos seus óculos, de repente tão pronto, e os afasta do rosto com delicadeza.

Crowley sorri um pouco, absolutamente pasmo que o tenha bem diante de si. Embalado pela suavidade da música, se aproxima mais, e encosta seus narizes. Precisa terminar o mundo junto com ele, e quando o beija nos lábios sabe que Aziraphale também nunca imaginou um outro final.

O anjo toca seus dedos e os abraça com força, ouvindo a música passar. Ali, parados no tempo e no espaço, os dois têm a distinta impressão de que a vida valeu a pena.

“Como você fez isso?”, pergunta o anjo, anestesiado, e Crowley lhe pisca um olho.

“Não foi sem ajuda”.

Uma pequena mosca de repente os encontra voando no meio do universo, e Crowley sabe que jamais conseguiria explicar a sua sorte. Sente Aziraphale se aproximando para mais um beijo e precisa fechar os olhos, tomando-lhe os cabelos curtos nas mãos.

(Os ramos de música começam a se embaraçar, crescendo e morrendo juntos, e o zumbido de inseto é sentido no fundo do ouvido.)

 

Quando piscam as pálpebras mais uma vez, já não estão rumando a nenhum complexo estrelar. Há uma multidão perplexa encarando-os de volta, segurando o fôlego com os olhos absolutamente aterrorizados.

Aziraphale então entende que lhe foram concedidos momentos de elísio, tão bem como entende que os dois podem morrer no próximo segundo. Sorri para Crowley, seus narizes tão juntos, e o beija mais uma vez. O demônio ainda sonha, e segura suas mãos como pode.

É preciso um segundo para que o zumbido em volta mude de tom. De uma vez por todas, os dois exércitos desatam a berrar estridentemente, furiosos por terem sido contrariados de forma tão escancarada. Incapazes de verdade de entender que a vida talvez já tenha passado.

Ofegantes, suas feições apertadas, correm em direção um ao outro, pavorosos, prestes a introduzir o Apocalipse.

Bem no meio da batalha, Crowley e Aziraphale não veem mais algemas envolverem os punhos, e desaparecem no exato momento em que o Céu encontra o Inferno.

(Não sabem para onde vão; nunca importou de verdade.)

 


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