A casa é assombrada!.... E daí? escrita por Mestre do Universo dos Vermes, LittleHobbit


Capítulo 1
Ignorar o problema é uma solução!


Notas iniciais do capítulo

Uma boa história escrita em conjunto (lá em 2019...), curta e agradável. Vale a pena! ❤️



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O mapa desenhado a giz de cera era claro o bastante. Uma casinha com uma seta escrito “você”, um caminho traçado às pressas com obstáculos rabiscados, pontos de referências quase irreconhecíveis, inimigos irregulares e coloridos que não pareciam humanos ou monstros. No fim da “jornada”, um baú do tesouro rodeado de glitter. Um típico desenho infantil.

Ele deu de ombros, amassou o papel e o jogou no lixo, como todos os outros, ignorando que morava sozinho, que deixou a casa trancada e que não havia uma única criança naquele condomínio. Dane-se, pensou, eu que não saio de casa por isso.

Um suspiro deixou seus lábios quando finalmente se sentou no sofá da sala. A casa estava quieta e a noite escurecia o céu do lado de fora. Buscou o controle da TV com dedos cansados, a semana havia sido longa demais e ele não tinha paciência para pensar em desenhos bobos que apareciam sem motivo.

Fez um bom trabalho se distraindo com a TV, até que escutou o ranger da porta dos fundos, que ele jurava ter trancado mais cedo.

Caminhou até a cozinha, achando a porta aberta e o chão rabiscado com giz de cera, numa caligrafia infantil.

“Não me ignore.”

Ele contemplou a porta aberta por alguns segundos e, dando de ombros, a fechou, trancou (mesmo que inútil contra aquilo, era útil contra ladrões) e pegou um pano. Sorte que eu não tenho filhos, pensou ao descobrir que giz de cera grudava no chão.

Tudo limpo, arrumou papel e caneta e deixou uma mensagem própria para seja lá o que se achava no direito de vandalizar seu chão. Depois reconsiderou as palavras impróprias (isso se comportava como criança afinal), amassou o papel e pegou outro, deixando a mensagem final no mesmo lugar que apagou a outra.

Comporte-se ou caia fora.

Quando ajeitou suas cobertas para dormir, depois de ter checado mais uma vez as portas e janelas da casa, só pra ter certeza, deitou a cabeça no travesseiro para o sono mais que merecido. Nada o importunou nas primeiras três horas, e quase começou a sonhar. Um sonho sem chão riscado a giz de cera e sem desenhos estranhos jogados por aí.

Foi na quarta hora de sono que foi acordado pelo choro que vinha de perto, um choro tristonho que parecia de criança pequena. Olhou com olhos pesados a fresta na porta do quarto, sabendo que tinha a fechado.

Ótimo, pensou, era tudo que eu precisava. Tentou ignorar, mas desistiu logo.

Tá bom, murmurou para ninguém e saiu da cama. Ele devia ter suspeitado que havia algo errado com aquela casa, muito barata, vendedor muito desesperado, compra rápida. Mas ele estava sem dinheiro e com pressa na época, então deu de ombros.

Não viu ninguém quando saiu do quarto, mas sentiu um arrepio ao passar pelo corredor. O choro permanecia.

Foi à cozinha. O que cala a boca de crianças chorando? Com outro dar de ombros, deixou um copo de leite e um pacote de biscoitos sobre a mesa.

Surpreendentemente, ele acordou só de manhã, quando o sol acertou seus olhos pelas cortinas que, estranhamente, foram a única coisa que ele esqueceu de fechar na noite anterior.

A comida funcionou, pensou com um riso nervoso, embora não conseguisse pensar como "aquilo", que parecia não ter forma, pudesse comer alguma coisa.

Mas o copo estava vazio, assim como metade do pacote de bolacha tinha ido embora. Decidiu ignorar, como havia se tornado um dos seus hábitos, voltando a atenção para uma folha de papel amassada sobre a mesa.

O mesmo desenho que havia jogado fora no dia anterior.

O mesmo caminho torto de giz, os mesmos obstáculos e o mesmo baú do tesouro, dessa vez circulado várias vezes de vermelho. O desenho sempre voltava sem um único amassado, não importa quantas vezes ele o jogasse fora.

Bem, se jogar fora não funcionava, ele podia muito bem deixá-lo por perto. Colocou-o na geladeira com alguns ímãs e colou um post-it sobre ele dizendo “sem chances de eu ir numa caça ao tesouro. Não mesmo”.

Comprou algumas balinhas e um caramelo e os deixou sobre a mesa como uma oferta de paz pela recusa, trocou de roupa e foi trabalhar.

A casa estava silenciosa quando ele voltou, nenhum choro, nenhum rabisco na parede. Nada. 

Foi até a cozinha para preparar algo para comer. Uma das balas havia sumido, mas o desenho na geladeira estava como o havia deixado mais cedo. E havia o silêncio. Tão quieto.

Era estranho, se lhe perguntassem. Só agora, com a casa tão quieta, parecia notar todos os sons que acabara se acostumando a ouvir. Passinhos no andar de cima, risadinhas pelos cômodos vazios, os brinquedos apitando e fazendo barulho, mesmo que nunca tivesse visto se quer um deles pela casa. Mas agora tudo estava quieto.

Deu de ombros novamente e fez um sanduíche. Isso era algo que ele fazia muito... Não o sanduíche, dar de ombros (e o sanduíche também). Não importa, pensou. Ele era assim, não gostava de se preocupar. Um problema evitado era um problema resolvido afinal.

Ele sabia que encontraria crimes naquela casa se procurasse. Páginas de jornal, blogs, até vizinhos fofoqueiros tentaram contar algo antes de ele se recusar a ouvir e se tornar o recluso do bairro. Era uma casa antiga e macabra afinal, óbvio que havia algo.

A questão é que ele não se importava, então mordeu seu sanduíche e foi ver Netflix.

O som da série na TV o distraía um pouco da quietude na sala. Não queria ser afobado, mas sentia que finalmente teria paz depois de tanto tempo com "aquilo" lhe fazendo companhia.

Funcionou durante os primeiros dois episódios, assistiu enquanto comia, com cuidado pra não derrubar nada. Mas logo se cansou, tinha algo no fundo da sua mente o impedia de se concentrar nos diálogos, ele só não sabia o quê.

Desistiu de assistir, desligando a TV e resolvendo ir deitar um pouco mais cedo. Passou pela cozinha e deixou algo pra comer sobre a mesa. Só por precaução.

De manhã, encontrou outro desenho na geladeira. Dessa vez não era um mapa de tesouro demandando ser achado, mas duas figuras de giz de cera de mãos dadas. Um adulto e uma criança. Assumiu pelas roupas que o adulto devia ser ele, e os traços eram muito bagunçados para diferenciar se a criança era menino ou menina, mas não importava.

Colou um post-it com um elogio e um rosto feliz, pensando que aquilo gostaria de ser elogiado. Era um desenho fofo. Imaginou se significava que aquilo o perdoou por recusar a caça ao tesouro. Trancou a porta e foi trabalhar.

Quando voltou, encontrou a casa exatamente como deixou, com exceção da cozinha. Na geladeira, no post-it que havia colocado ali com o elogio, novas letras apareceram. Agradeceu mentalmente por aquilo ter usado o papel ao invés das paredes ou do chão, se aproximou da mensagem, tentando discernir as letras infantis.

"Eu queria que você me encontrasse para que eu fosse embora, mas agora eu não quero mais ir." 

Foi o que conseguiu traduzir da frase em giz de cera colorido, e logo abaixo um coração um tanto desproporcional descansava perigosamente no final do post-it, um pedaço dele riscando a geladeira.

Pensou em retirar a mensagem da geladeira, mas desistiu. Não é como se ele recebesse visitas mesmo. Uma mensagem bonitinha merecia ficar exposta.

Nunca pensou em ter filhos, pois seria um péssimo pai. Nem pensava em namorar, imagina casar. Nunca teve um animal depois daqueles peixes que morreram. Ser responsável por algo vivo era difícil.

Então isso era perfeito.

Adeus, solidão! Podia comprar brinquedos e doces sem medo de mimar/prejudicar a saúde daquilo. Vantagem dos mortos, imaginou. Comprou até um caderno colorido de caligrafia e passou a receber mensagens mais legíveis. Podia ser uma vida esquisita, mas funcionava pra ele.


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