Talassofobia escrita por Kevin Trévor


Capítulo 1
Das profundezas, a dissonância.




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A dor de cabeça era agonizante, como nunca sentira antes – nem mesmo após longas noites regadas a álcool. O gosto de areia e sal tomava conta de sua boca, até que algo sobe de seu estômago até a garganta, saindo na forma líquida.

 

Água do mar... — Dizia em seus pensamentos.

 

Mais água, e mais água. Água do mar, saindo aos montes por meio de tosses. Mas onde estava? Quanto mais ela pensava, mais dor sentia. Tentava levantar-se aos poucos, ver onde estava. As mãos trêmulas afundavam na imensidão arenosa até que conseguia se erguer.

 

A vista estava embaçada, mas apesar da dificuldade visual, ainda podia identificar as coisas ao seu redor. Areias brancas, sons suaves vindos de trás, uma brisa suave tocando sua pele. Além da brisa, toques frios e momentâneos em seus dedos do pé, que iam e voltavam.

 

Praia... estou numa praia?

 

Ela olha de um lado para o outro, confirmando o cenário em que se encontrava. O olhar começa a se normalizar de forma lenta, ilustrando o local onde seu corpo fora jogado. Vários passos à sua frente, uma densa mata que parecia não ter fim. Nas laterais, porém, o cenário era muito diferente. Barris rachados, cordas, pedaços destruídos de madeira e panos molhados.

 

Havia mais, muito mais. Mas a única luz disponível advinha de cima, muito acima, do luar redondo e brilhante. As sombras da noite ocultavam todo o resto, menos...

 

Lohan...? LOHAN!

 

Apesar da dor, ela rasteja com dificuldade até o corpo que havia reconhecido. O esforço cria baixas nuvens de poeira que tomam conta do cenário, e elas desaparecem logo depois.

 

Uma barba escura e espessa, uma testa tomada por fios negros em formato de caracol. Sim, era ele. Tinha que ser.

 

— Lohan? Lohan! Acorda! – Ela diz sobre o corpo, batendo repetidamente no peito do homem.

 

Os repetidos golpes parecem ter efeito quando um barulho sai da boca do rapaz, como se aquilo tivesse lhe devolvido a vida. Ele se vira na mesma hora, colocando toda água salgada pra fora através de tosses.

 

Um alívio toma conta do coração dela. Era bom ter ao menos um rosto familiar numa situação desconhecida.

 

— O que aconteceu? – Ela pergunta de forma angustiante, tentando entender. – Eu só lembro de estar na cabine, e depois... nada.

 

O rapaz limpa a boca com o dorso da mão e então toma um tempo para respirar. Seus olhos tremiam tanto que era como se não quisesse se lembrar.

 

— Tempestade, Alice. Uma maldita tempestade. Ela veio do nada, eu juro por Deus que veio! Nós nos preparamos pra essa viagem, escolhemos até o caminho mais seguro. O período mais seguro! O mapa... Maldito dia que compramos aquele mapa! – Ele pragueja aos céus e soca o chão arenoso. – Piratas de merda nós somos.

 

Agora tudo fazia sentido, havia naufragado com a tempestade e o mar jogou ambos em alguma ilha no meio do caminho.

 

— Já não importa mais, temos que sair daqui. Tentar encontrar mais alguém, levar daqui o que tiver, e sair.

 

Ele concorda, e ambos se ajudam a levantar. Assim que conseguem ficar de pé, a busca por suprimentos começa.

 

O cenário do naufrágio era ainda mais extenso do que haviam imaginado. Algumas garrafas intactas, duas maçãs cobertas de areia... era o que sobrou, aparentemente. A floresta podia ter mais algum suprimento, apesar de estar perturbadoramente silenciosa.

 

Alice vai seguindo um rastro de madeira e corda que ia quase até a mata, tentando procurar alguma coisa que pudessem usar.

De forma súbita, um barulho rompe o silêncio da floresta. Era uma melodia agradável, vibrante... doce. A pirata direciona o olhar de um lado para o outro, curiosa e apreensiva, tentando entender de onde vinha aquele som. Ao virar-se completamente, ela finalmente entende.

 

Do mar, uma figura feminina de cabelos longos e ruivos, de braços estendidos e olhar penetrante. Uma voz doce como nunca ouvira antes, gotas pingando de seu corpo desinibido. Os sons do mar fazem o complemento sonoro enquanto ela se move para a praia.

 

Lohan estava encarando o mar, imóvel como estátua. Poucos segundos após isso, ele começa a caminhar em direção a tal figura.

 

— Marinheiro! Ficou maluco? Volta aqui agora! – Alice grita e corre em direção ao amigo, mas seus pés já tocavam a areia molhada.

 

A água fria do mar começa a devorar o corpo do velho marujo como se um velho amante fosse, tomando conta dele de baixo para cima. Nem mesmo os gritos da amiga faziam com que parasse, era como se nada mais importasse em seu mundo.

 

Alice não ousou ir além. Ela foi testemunha do que veio a seguir.

 

O companheiro de galés havia finalmente chegado até a figura feminina, a quem o envolve num abraço acalentador seguido de um beijo. As mãos dela rodeiam os cabelos encaracolados do homem, enquanto sua face estava metade descoberta. O som, antes doce, torna-se um ruído estridente.

 

Aquilo... Aquilo não é uma mulher!!

 

Lohan é puxado para o mar, sumindo nas profundezas.

 

Alice se vira e corre para a escura floresta como se a dor não existisse. Aqueles dentes, aqueles olhos. Olhos brancos. Pareciam persegui-la conforme folhas e galhos golpeiam seu corpo.

 

O som não havia desaparecido, ficando mais alto e mais alto a cada passo.

 

Estão atrás de mim, estão atrás de mim!!

 

Ela corre, desesperada, torcendo por segurança. Uma parede de concreto surge em seu caminho, elevando-se até uma altura em que ela não poderia alcançar. Havia apenas uma abertura ali, e esse seria talvez seu único refúgio.

 

Uma caverna escura, medonha. Passagem por passagem, Alice já não sabia mais onde estava. Múltiplos caminhos surgiam, e decisões arbitrárias ela tomava.

 

A respiração, pesada, exigia um descanso. Ao tomar fôlego, ela vê uma pequena abertura atrás da parede. Pequena o bastante para caber um remo, mas o suficiente para perceber que a entrada da caverna ficava do outro lado da parede, apenas a alguns passos dali.

 

Eu dei a volta na caverna!

 

Dali onde estava, só havia um caminho. Com o fôlego parcialmente recuperado, estava pronta para correr novamente. Lá fora, barulhos apenas de trovões. Vai chover logo...

 

Antes que ela pudesse correr, uma silhueta surge na entrada da caverna, iluminada apenas pelo fraco brilho dos olhos. A boca, aberta, demonstrava estar faminta. A fileira de dentes rangia, e um vapor quente e branco saía de sua boca.

 

É ela!!! Ela quer me levar, quer me levar pro fundo do mar assim como levou o Lohan!

 

Ela nem sequer andava, parecia flutuar sobre o chão assim como os cabelos flutuavam com vento. Movia o rosto de um lado para o outro, procurando, desejando. Seus olhos movem-se de forma trêmula até a fissura da caverna, encontrando sua vítima. A criatura então emite seu grito estridente e some tão repentinamente quanto havia surgido.

 

Alice teve tempo apenas para correr ainda mais rápido do que antes, sabendo que aquela coisa não ia desistir dela. Movendo-se pelas paredes cada vez mais apertadas e fazendo força para passar pelas pedras que cortavam sua barriga e derramavam seu sangue, ela então consegue sair da caverna. Dando de cara com um portão maciço de ferro - um letreiro sujo e enferrujado acima dele, num idioma que ela não conseguia ler tampouco identificar a qual povo pertencia.

 

Ao abrir o portão, fica ainda mais surpresa com o que encontra.

 

Uma cidade?!

 

Capítulo 2 – Banquete no Palácio dos Mortos

 

Parecia como qualquer cidade que Alice havia visitado em seus anos de vida, com construções de madeira e outras de concreto, com comércios e casas. Algumas estátuas macabras com formatos muito estranhos. E pessoas, muitas pessoas.

 

Parecia momentaneamente ter voltado ao mundo que estava acostumada. Uma parte considerável deles cobria os rostos com panos e produzia grunhidos nojentos. Mas todos pareciam estar igualmente de mau humor. Sempre que ela perguntava algo, recebia uma careta de volta e era ignorada.

 

Alice tinha fome, e sabia que logo iria começar a chover. Ela caminha pela cidade, procurando algum lugar onde poderia comer alguma coisa.

 

— Você... você não é daqui. Precisa sair daqui.

 

A garota se vira, assustada. Ela vê um senhor de olhos tristes e barba branca, uma boina cobrindo a cabeça quase calva.

 

— Perdão? – parecia surpresa por ouvir algo em seu idioma.

 

— Eu nunca te vi por aqui, e confirmei que era estrangeira quando falou. Vem comigo, por favor.

 

Era o primeiro sinal de educação que recebera dali, mas ainda estava receosa. Decidiu ir mesmo assim, podia ser sua única chance de sair daquilo. Ele a levou até uma cabana no meio da cidade, abrindo a porta e pedindo que ela entrasse também.

 

Ao entrar, percebeu que era um lugar simples e desorganizado, mas que tinha iluminação através das velas e comida na mesa. E no fundo havia uma poltrona velha, com uma pessoa que parecia estar dormindo.

 

— Por favor, sente-se. Deve estar faminta.

 

E como estava. Ela começou a se servir, à medida que o senhor se sentava em outra cadeira do outro lado da mesa.

 

— Como chegou aqui?

 

Alice mastiga e olha para ele, disposta a responder aquilo que fora questionada, ocultando certas partes...

 

— Pelo mar, eu naufraguei. Uma tempestade rachou nossa galé ao meio.

 

— Como pensei. É impossível sair daqui. Existe mesmo uma maldição...

 

— O senhor se importa em me dizer que diabos está acontecendo aqui?

 

Ele fica ainda mais sério, e então começa a explicar.

 

— Todos aqui enlouqueceram… É isso que aconteceu. Começaram a venerar criaturas do mar, pessoas foram sumindo. E o pior é que o mar não nos deixa sumir, sempre nos cospe de volta pra ilha.

 

Alice não teve tempo pra digerir o absurdo que acabara de ouvir quando viu que a poltrona estava vazia. O homem sentado nela acordara, e vinha em sua direção.

 

— Gustaf! – diz ela, surpresa - Eu não acredito que te achei. Como chegou aqui? Onde estão os outros?

 

Ele não parecia bem.

 

— Mortos, todos mortos! E nós também. Me escuta Alice, não deveríamos estar aqui. Pagaremos o preço por nossa ganância em ter pilhado aquela cidade e roubado aquele mapa, esperando encontrar algum tesouro. Fomos amaldiçoados a partir daquele momento! Essa é uma cidade condenada, maldita, é o próprio inferno. Essa ilha, eu vi... Os homens se deitam com criaturas abissais, as mulheres copulam com homens das profundezas e dão luz a coisas... aquelas coisas...

 

Barulhos violentos são ouvidos na porta. Gustaf começa a gritar enlouquecidamente, apontando pra ela.

 

— Vieram nos pegar, eu sabia! Eu sabia! Vão nos sacrificar.

 

A população derruba a porta e entra aos montes na cabana, armados com foices e machados e lanças afiadas. Dentre eles, uma figura eclesiástica se destaca – de olhar gélido e lábios comprimidos.

 

— Sacerdote, por favor. – diz o velho proprietário - Essa é a minha casa, eu jamais quis trazer problemas.

 

Ele é surpreendido com uma lâmina em volta do pescoço, e em breve um jorrar de sangue sobre o chão e sobre as vestes do sacerdote.

 

— Nós tolerávamos você, velho idiota. Tentou fugir, renegou nossos costumes. Se negou a fazer parte do rito, agora fará parte do ritual de sacrifício!

 

Ao cair, o velho puxa o pano do rosto de um dos perseguidores, revelando sua face escamosa.

 

O rosto!! Aquele rosto... isso não é humano!

 

Ambos são arrastados pelos pés para fora daquela casa, enquanto o rastro vermelho os persegue. Seu anfitrião estava engasgado com o próprio sangue.

            

— NÃO!! NAAAAAAAAO! ME SOLTEM! ME SOLTEM!!! – Alice protestou, em vão. Ela crava suas unhas no chão numa tentativa de não ser levada, até que ambas são desfeitas e os dedos começam a sangrar.

 

Os três são deixados num altar ao final do vilarejo. Criaturas de mármore guardam o altar, com ódio mergulhado no olhar delas.

O sacerdote recita algumas palavras num idioma desconhecido, seguido pela multidão enfurecida de humanóides.

 

No centro do altar havia um poço desbotado – e desse poço saíam grunhidos e sons estridentes.

 

— Ouça isso, criança - diz o sacerdote - os profundos têm fome.

 

Gustaf é o primeiro, erguido por três deles e jogado no poço sem o mínimo remorso. Após algumas palavras do sacerdote, o velho é o segundo – já morto. Ela seria a terceira. Alice respirou fundo.

 

O mar tomou conta dela, deixando todo o oxigênio para trás. Sem ar, ela sabia que seria o fim. E lembrou de cada vila que pilhou, de cada pescoço que perfurou, de cada gota de sangue inocente que estava sob suas unhas.

 

Acabou... acabou. Não consigo prender a respiração por tanto tempo. O que é aquilo? O que é aquilo???

 

Uma criatura envolta em trevas se aproxima de Alice, nadando até ela, esticando um dos braços e agarrando e puxando o pé dela para as profundezas.

 

Ela viu o cadáver de Gustaf ser devorado por centenas de figuras horrendas, que lutavam por cada pedaço dele.

 

O abismo os levou ao fundo, e ao fundo do fundo, até que chegam a um palácio com pilastras desbotadas e mesas de marfim, onde seres marinhos humanoides se banqueteavam com carne humana. E ao centro, ao grande centro, a gigante criatura de três cabeças e oito braços que era cultuada e louvada e agraciada com os corpos vivos dos próprios súditos.

 

Ao contemplar aquilo Alice tinha certeza, de todo o coração, que se aqueles seres subissem para a superfície, seria o fim de toda a humanidade.


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