Viridis escrita por Valentim


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Olá,

Obrigada por escolher minha história. Espero que goste!

Obs: 1 milha = 1,6 Km.

Boa leitura!



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Acordei com os olhos brilhando, como se eu não tivesse passado quase a noite toda em branco e como se o dia já estivesse claro. “É hoje”,  sussurrei, “O dia da minha liberdade”. Minha roupa de ir estava separada ao lado da cama: um velho vestido cinza esverdeado, cheio de remendos. Meus outros poucos pertences estavam numa sacola de pano que eu mesma costurei, com os retalhos de linho que consegui dos senhores. Abri a sacola para conferir se estava tudo lá: dois vestidos quase idênticos ao que eu já vestia, algumas roupas de baixo, uma camisola... E o mais importante: o pente de madeira da minha mãe, o único item de que eu jamais abriria mão. Penteei meus cabelos com ele e os prendi num coque baixo, como de costume. Ouvi um estalar na cama ao lado. Escondi a bolsa embaixo do lençol. 

— Erin… - grunhiu Gina - ainda é madrugada… o que está fazendo?

— Não quis te acordar. Dona Milana ordenou que eu me apresentasse às 6h hoje. Quer estar impecável para a chegada dos escolhidos. 

— Hum. Como se fosse possível torná-la atraente. Bom, ao menos vá em silêncio - resmungou Gina, virando-se para voltar a dormir. 

Dei de ombros e esperei ela se virar para pegar novamente a bolsa, com o máximo de discrição.  Caminhei a passos leves de lá até o pequeno saguão da casa servil. Não havia movimento. Precipitei-me para a saída dos fundos. Quando abri a porta para fora, uma brisa gelada invadiu minhas narinas e me encheu de energia, como que me convidando para seguir o vento e partir para longe. 

Meus devaneios foram interrompidos por um assobio, vindo de trás de um carvalho. Era Dan. 

— Não acredito que esqueceu nosso ponto de encontro - disse ele, fingindo desaprovação.

— Claro que não! Conseguiu os mantimentos?

— Sim. Já estão na charrete. E seus pertences?

— Aqui está - respondi, dando a sacola para ele. Dan fitou a sacola com um olhar incrédulo, como se fosse impossível que todos os pertences de uma pessoa coubessem ali.

— Cuide bem da sacola, Dan, por favor - continuei - Nos vemos no portão de trás, depois que a Dona sair.

— Seu pedido é uma ordem, milady.

— Agora preciso ir, antes que a verdadeira milady desconfie de algo.

— Não se preocupe, minha mãe ainda estava dormindo pesado quando saí.

— Bem, não vou arriscar - respondi, me virando para seguir caminho - nada pode dar errado hoje.

— Ei - disse ele, me puxando pela cintura - não está se esquecendo de nada?

— Obrigada, Dan - respondi, abraçando-lhe - Sem você não seria possível. 

Quando me desvencilhei de seus braços, ele me puxou mais uma vez e me surpreendeu com um beijo. Aquilo foi bom, mas eu não podia me distrair. Não naquele dia. 

— Dan… foco. Nos vemos mais tarde - falei, virando-me, com um aperto no peito.

Eu não sabia descrever o que era a minha relação com Dan. Ambos sabíamos que não havia possiblidade de sermos um casal.  Ele era um homem poderoso em Rakta, membro da nobreza, e estava fora de cogitação uma união oficial com uma escrava estrangeira. Ele tinha uma noiva, à propósito, e eu não assumiria o papel de uma concubina para ele. Meus planos eram outros; eu estava lutando por minha liberdade a qualquer custo. Tínhamos uma atração incontestável um pelo outro, mas, acima de qualquer coisa, éramos amigos. Eu não permitiria que meu coração desejasse mais que isso. Eu só queria minha liberdade de volta e Dan estava disposto a ajudar a fugir. O plano era viajarmos por 30 milhas até o porto de Rakta. Lá, Dan havia conseguido uma embarcação que me levaria para Jisa, o único reino do velho mundo que não pertencia ao império raktano. Em Jisa ao menos eu teria alguma chance de reconstruir minha vida. Depois da minha partida, provavelmente eu e Dan nunca mais nos veríamos. Mas nós evitávamos falar sobre essa parte.

Caminhei até Santinni, a casa dos senhores. Um casarão de campo, no entorno da cidade, tão grande que meus dois anos como sua escrava não foram suficientes para que eu conhecesse todos os cômodos. Meu percurso era basicamente o mesmo todos os dias, como serva de companhia da Dona Milana. Entrei em seus aposentos. Ela ainda dormia. Separei seu melhor vestido e as jóias que ela escolheu a dedo no dia anterior; preparei a água do banho e organizei o quarto. Quando abri as cortinas, os raios de sol preencheram todo o ambiente.

— Bom dia, senhora - disse eu, gentilmente - seu banho está pronto.

— Hmm. Traga meu roupão - disse ela, sentando-se na cama - separou o vestido esmeralda?

— Sim, senhora. - virei a cabeça para o manequim ao lado da penteadeira, envolto num luxuoso vestido verde esmeralda, bordado em pedrarias preciosas. A Dona queria brilhar mais que os próprios escolhidos durante o desfile. 

Milana se levantou e entrou na banheira. A partir daí foi esfrega aqui, arruma ali, penteia aqui, aperta ali, até que ela ficasse completamente satisfeita com seu visual. O vestido valorizou seu busto enorme, e o espartilho disfarçou um pouco seu quadril largo. Ela parecia feliz com o resultado, embora tentasse não demonstrar. 

No café, a Dona perguntou por Dan. Inventei que o rei tinha convocado ele para receber os escolhidos pessoalmente, como já havia acontecido no ano passado, e que por isso ele saiu tão cedo. Ela pareceu convencida. Logo mais, Gina chegou para avisar que a carruagem estava pronta. Bem, era minha hora de brilhar. Quando saímos do casarão, fingi um tropeço nos degraus de entrada e rolei dramaticamente até o chão. Gina e um dos cocheiros rapidamente prestaram socorro. 

— Por céus, menina! Como é destrambelhada! - gritou a Dona.

— Não foi nada! - respondi, me levantando. Dei alguns passos para frente, mancando com o pé esquerdo - Ai!

— Inferno. Não posso levá-la comigo assim.- disse ela, franzindo o cenho - fique em seu dormitório. Ordenarei que um médico venha atendê-la mais tarde. Gina! Venha.

— Como a senhora preferir- respondi.

Tudo estava saindo como o planejado: livrei-me tanto de minha senhora quanto da supervisora dos servos. O desfile dos escolhidos faria o resto por mim, possibilitando que eu cruzasse a estrada sem os olhares criteriosos dos guardas raktanos, que estariam mais preocupados com a segurança da realeza e dos escolhidos durante o evento. 

Caminhei, ainda fingindo mancar, na direção da casa servil. Olhei para trás, para conferir se estava sendo observada. Tudo limpo. Contornei a casa e segui para o portão dos fundos. Ao sair, vi Dan numa charrete, acenando para mim. 

— Chegou rápido - disse ele, enquanto estendia a mão para que eu subisse. 

— Não temos tempo a perder - respondi.

Dan chicoteou o cavalo e partimos às pressas. Estávamos na estrada que contornava a cidade de Rakta até o litoral. Seria mais rápido atravessar a cidade, porém extremamente arriscado. Dan estava mais calado que o normal enquanto guiava a charrete, com mãos firmes. Seus olhos azuis estavam postos na estrada, mas sua mente parecia vagar. Era uma bela visão, aquele homem. De repente, seus olhos encontraram os meus.

— O que foi? - perguntou ele.

— O que?

— É que você não para de me olhar - ele sorriu aquele sorriso que me derretia. Senti meu rosto corar e olhei pra baixo.

— Ah… é que você está muito calado. Posso perguntar no que está pensando?

— Pode, claro. Mas não vou responder - disse ele, dando uma piscadela e voltando os olhos para a estrada.

— Engraçadinho. 

Olhei para o pequeno espaço de bagagem que havia atrás dos nossos assentos. Lá havia um baú, ocupando quase tudo, mas não vi a minha bolsa.  

— Dan, cadê as minhas coisas?

— Coloquei dentro do baú, junto com suas outras coisas.

— Outras coisas? - perguntei, virando-me para abrir o baú. 

Quando o abri, vi belos vestidos dobrados, sapatos novos, xales, um perfume, e até uma sombrinha, além de, claro, minha bolsa. Fiquei sem palavras.

— Oh, Dan! -  não precisava gastar tanto comigo. Eu não tenho como te recompensar por isso.

— Eu não quero que me pague, são presentes. Você é uma dama, Erin. Quando sair de Rakta, quero que jogue os vestidos de escrava no mar. Você na verdade nunca foi uma escrava. Eu soube disso desde a primeira vez que a vi.

— Dan, eu… obrigada! - falei, dando-lhe um abraço apertado e um beijo tímido, pois não pude resistir. 

Por céus, como era bom beijá-lo. Dan de fato nunca me tratou como escrava, mesmo antes de saber minha história pregressa em Fília, que agora já parecia um sonho distante. Estava perdida em pensamentos sobre meu país quando vi cavalos mais adiante na estrada. Torcemos para que fossem quaisquer fazendeiros, mas, quando nos aproximamos, estava claro que eram guardas raktanos. Eles bloquearam a passagem quando nos viram. Meu coração disparou. 

— Deixe comigo- sussurrou Dan, enquanto parávamos. 

Havia quatro guardas. Dois desceram de seus cavalos e se aproximaram. 

— Está perdido, jovem? - perguntou um deles.

— De modo algum, Conrado - respondeu Dan, com um sorriso.

— Oh! Senhor de Santinni! Perdoe-me, senhor. Eu nunca o vira em uma charrete antes. E acompanhado de, hã, uma filiamita - disse o guarda, olhando-me com desprezo. Meu olhar estava no chão.

— Ah, essa é uma de minhas escravas - respondeu Dan, despretensiosamente - Estou levando-a para a propriedade de um amigo. Vou emprestá-la por uma semana.

— Mas, senhor, se me permitir a intromissão, não devia se dar a esse trabalho. Posso levá-la até lá para o senhor. Todos já estão no desfile a essa hora e esse ano será...

— Não se preocupe - interrompeu Dan - Faço questão de levá-la. Esses desfiles ocorrem todos os anos.

— Ao menos me permita escoltá-los até lá, senhor. A estrada do contorno está excepcionalmente deserta e perigosa hoje.

— Não será necessário. Já estamos perto.

— Bom, então não nos custará nada acompanhá-los - respondeu o guarda, em tom definitivo. 

Dan engoliu em seco e assentiu com a cabeça. Os guardas tomaram novamente seus cavalos e se dividiram, de modo que apenas Conrado e outro guarda passaram a nos acompanhar. Eu estava desesperada. Se aqueles homens descobrissem nosso plano, eu certamente seria morta e Dan seria julgado como um traidor do império. Minhas mãos tremiam no meu colo, quando senti a mão quente de Dan repousar sobre elas.

— Sabe, Conrado, - disse Dan - Essa conversa sobre o desfile me despertou uma vontade enorme de assisti-lo. Seria tolice perder isso justamente esse ano.

— Que bom que mudou de ideia, senhor. Vá e aproveite, que eu tomo conta da escrava - disse Conrado, me olhando de cima a baixo, com olhos de desejo. Meu estômago embrulhou.

— De modo algum! - retrucou Dan, deixando escapar sua irritação - Quer dizer… Prometi para a Senhora de Santinni que entregaria essa escrava em pessoa. É uma escrava de companhia, muito importante para minha mãe.

— Longe de mim aborrecer Dona Milana. Faça conforme ela deseja - respondeu Conrado, contrariado.

— Daqui a alguns metros há uma encruzilhada - continuou Dan - a partir dali seguiremos para o centro de Rakta. Depois do desfile retomo a minha missão. 

Para nosso alívio, os guardas se despediram de nós na encruzilhada. Mas agora tudo ficou mais complicado. Atravessar o centro de Rakta durante o desfile e sob os olhares de tanta gente seria inevitavelmente perigoso. 

— Precisamos mudar o plano - falei, apreensiva - se sua mãe me ver...

— Sim.  Vista um dos vestidos novos, com todos os acessórios possíveis. Assim ninguém vai suspeitar que você é uma escrava.

— Mas, Dan, eu tenho traços filiamitas - respondi, apontando para meus olhos levemente puxados e minha pele morena.

— Coloque um xale, use a sombrinha e se misture na multidão. As pessoas estarão focadas demais no desfile para notar.

— É óbvio que vão me notar! Esqueceu quem você é? Todos vão reparar na mulher misteriosa ao lado do senhor de Santinni, e que essa mulher não é a Anya. E nem vão precisar olhar muito para notar que sou filiamita e tirarem suas próprias conclusões.  

— Droga. Vamos ter de nos separar até chegarmos ao porto - ele suspirou diante de meu olhar aflito - Não é um caminho difícil, você vai conseguir chegar lá sozinha. Veja, já estamos perto da entrada da cidade. Você precisa se vestir agora. 

Desci da charrete e fui me vestir atrás de alguns arbustos na beira da estrada. O vestido era magnífico e me coube perfeitamente. Deixei meu cabelo meio preso, como era de costume entre as damas raktanas, e calcei os sapatos novos. Quando voltei, reparei no olhar de Dan repousando fixamente em mim. 

— Você está linda.

— Obrigada - respondi, ainda corada pela forma que ele me olhou - fazia tempo que eu não me sentia bonita.

— É porque você não se vê pelos meus olhos - disse ele, com certa tristeza.

— O que foi?

— É aqui que nos despedimos, Erin. Eu não sei se conseguirei chegar ao mesmo tempo que você no porto, mas você precisa partir para a embarcação, mesmo que eu não tenha chegado. Tome, leve isto - ele estendeu um saco cheio de moedas de ouro e prata.

— Não posso aceitar.

— Por favor, Erin. Isso é o mínimo que posso fazer. Me prometa que vai ficar com o dinheiro e que será feliz em Jisa.

— Eu prometo, querido - respondi, abraçando-o, com os olhos cheios de lágrimas.

— Me perdoe por não te dar a vida que você merece - disse ele, com a voz rouca.

— Dan… por favor, não fale assim.

Foi uma despedida tão dolorosa que por um instante quase desisti. Dan e eu demos um último beijo, demorado, cheio de sentimento. Apesar de eu ter negado e contido meus sentimentos por todo o tempo que passei com ele, naquele momento admiti para mim que estava apaixonada. Mas eu não podia me dar ao luxo de voltar atrás. Dan me explicou que me seguiria de longe, mas que inevitavelmente nos perderíamos um do outro, porque ele seria parado e cumprimentado por muitas pessoas no caminho. 

Assim, segui para a cidade sozinha. Eu podia sentir Dan por perto, mas não me permiti olhar para trás. Limpei minhas lágrimas, respirei fundo e entrei na grande Rakta. Era o dia da minha liberdade. 


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Notas finais do capítulo

Eaiiiii? O que acharam? Comentários são muito bem vindos

Um abraço,

Valentim



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