Nosso Coração escrita por Dani Tsubasa


Capítulo 1
Capítulo único - Nosso coração


Notas iniciais do capítulo

*Jane é uma personagem autoral, já que essa one-shot se passa 34 anos depois do filme. Escolhi o nome dela ao acaso, porque sempre achei Jane um nome bonito, e depois que descobri que significa a mesma coisa que Ivan, que é o pai de Kate. Um dos significados desses dois nomes é "agraciado(a) por Deus".

*Eu ia ver esse filme no cinema, mas uma situação de risco me impediu de ir e só assisti no Natal seguinte. Desde então tenho pensado em fazer essa one-shot, e finalmente consegui. ♥



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Nosso coração

 

                - Pare de chorar, mamãe – Kate sorriu enquanto fitava sua velha mãe de sua cama no quarto do hospital, outra vez, como 35 anos atrás – Eu sou uma recordista. Ninguém até hoje viveu 35 anos com um coração doado. E a senhora já chorou muito em sua vida.

                - Pare de brincar com sua vida, achei que tivesse aprendido a lição!

                - Kate está certa, Petra. Temos que ser otimistas – seu pai falou – Ficamos muito melhores nisso nos últimos anos, não vamos parar agora.

                Kate sorriu outra vez. Era raro que sua família a chamasse pelo apelido que tanto gostava, e estava surpresa em ver sua mãe preocupada como uma mãe normal e não estranhamente satisfeita por receber atenção. Era como se dessa vez eles soubessem. Ao menos Kate sabia, estava agindo totalmente ao contrário, pois não queria deixar sua família chorando em desesperança, mas ela sabia. Não via seu amado Tom desde aquela noite 34 anos atrás, mas no mesmo dia em que seu coração, o coração deles, começou a falhar, dando sinais de que precisava se aposentar, Tom passou a visita-la em seus sonhos, sorrindo e dançando como sempre, sonhos reais demais para serem apenas sonhos. E ao acordar Kate sentia fortemente sua presença, como se ele estivesse realmente sentado à beira de sua cama.

                - Mamãe, essa irresponsável viveu por 35 anos apesar do quão mal se cuidou no primeiro. Não é agora que ela vai nos deixar, só precisamos esperar um pouco mais, ela está no topo da fila.

                Kate riu com o comentário da irmã.

                - Quando Kate tiver alta vamos fazer outro jantar como naquela noite? – Alba sugeriu sorrindo – Aquele natal.

                - Oba!! – Jane, a garotinha parda que Marta e Alba haviam adotado há vários anos, agora já uma jovem de 20 anos, adorava festas e natal como Kate – Vamos fazer aquele tiramissú?!

                - Vamos, querida – Marta lhe disse.

                - Vê, mãe? Só a senhora está chorando aqui. Temos que ter esperança – Kate falou, satisfeita quanto Petra secou as próprias lágrimas e retribuiu seu sorriso.

                - Tia Kate, estou cobrindo alguns de seus turnos na loja quando não estou na faculdade.

                - É mesmo?! Então essa é a surpresa que Noel e o Boy disseram que você tinha pra mim quando me visitaram ontem?

                - Sim! – A garota respondeu empolgada.

                - E você está sendo uma boa elfa?

                - Ela não reclamou até agora.

                A família riu junta. Nos últimos anos Kate tinha dividido seu tempo entre trabalhar com Noel e participar de alguns espetáculos musicais nos quais era aprovada de vez em quando. E a sobrinha não só apreciava sua carreira, parecia querer segui-la. E tinha o apoio de todos ali.

                - Acho que devíamos deixar Kate descansar agora – Ivan falou – Ela tem que ficar o mais forte que puder enquanto aguardamos.

                - Tá chato ficar aqui – Kate reclamou.

                A única resposta foi outra risada coletiva com o olhar de seu pai lhe lançou. Apenas Kate viu, a certeza entre o momento divertido, nos olhos dele, ele sabia. E da forma como ele sustentou seu olhar e lhe deu um sorriso triste, Kate teve certeza que ele sentiu que havia algo errado que ela não queria contar, mas nada disse a respeito.

                - Tchau, tia Kate – Jane disse quando a abraçou.

                - Tchau, minha elfa cantora favorita! – Sorriu ao abraçar a sobrinha de volta.

                - Querida, nós vamos lá fora, e logo um de nós voltará pra ficar com você – sua mãe falou, beijando sua testa e a abraçando.

                - Não se estressa mãe, sua idade não dá mais pra isso – Kate disse retribuindo fortemente o abraço – Já estamos na fila por um coração, não vá entrar nela também.

                Outra onda de risadas acompanhou o olhar que sua mãe lhe deu antes de acenar uma última vez para ela e sair do quarto conversando com Jane. Seu pai se aproximou, trocando um longo olhar com ela.

                - Nem pense em sair daqui – ele lhe disse quando a abraçou e beijou sua bochecha.

                - Tá bom – Kate respondeu quando o viu sair também.

                - Kate, você é muito forte – Alba lhe disse – Nós acreditamos em você.

                Kate sorriu de volta e retribuiu mais um abraço.

                - Você se importa de eu roubar a Marta um pouquinho?

                - De jeito nenhum – Alba sorriu – Estarei lá fora.

                - Eu já te alcanço – Marta respondeu ao vê-la sair e fechar a porta do quarto.

                - Por favor... Me diz que eu e o papai estamos errados sobre isso.

                - Você também percebeu? – Kate perguntou – Marta... Eu tenho que contar uma coisa, que eu guardo há 35 anos.

                A irmã sentou no sofá ao lado da cama, encarando-a e esperando.

                - Lembra daquele celular?

                - Aquele que você guarda até hoje? Do amigo misterioso?

                - Eu nunca contei porque eu tinha certeza que iam achar que bebi além da conta ou que alucinei.

                - Espera... Então não tava brincando quando disse que namorou um fantasma?!

                - Por que eu ia brincar com isso se nunca tive interesse por fantasmas e coisas assim? Tá na hora de você saber quem é o dono do celular, e porque é tão importante pra mim. Se eu não voltar mais pra casa...

                - Katarina... – sua irmã falou num tom que queria dizer várias coisas ao mesmo tempo.

— Marta... Eu realmente quero que todos fiquemos otimistas, eu não quero correr o risco de partir cercada por pessoas tristes. Mas todos nós sabemos que qualquer coisa pode acontecer, e eu acho que você e papai estão bem conscientes disso.

Marta ficou um longo tempo em silêncio antes de encarar a irmã outra vez.

— Se algo realmente acontecer... Eu quero que alguém saiba, e que conte pros outros depois, incluindo a Noel, o Boy e meus amigos do abrigo. Já sabemos que são confiáveis, e todos me viram procurando o Tom por aí várias vezes quando ele sumia do nada.

Marta assentiu e voltou a ouvi-la.

— Então o nome dele era Tom? – Perguntou com um sorriso – Parece nome de gente legal.

— Legal é muito pouco pra tudo que ele era.

Kate contou à irmã tudo que vivera com seu salvador desde o dia em que o vira através da vitrine da loja até se despedir dele duas semanas antes do show de natal, quando o vira mais uma vez em seus sonhos, lhe desejando sorte para o evento. Isso rendeu boas risadas as duas e corações apertados de comoção com cada detalhe do que Kate relatou.

— Ele parecia um poeta das antigas mesmo – Marta falou – Até no nome. Como notas musicais.

— Já ouviu falar daquela animação japonesa que tem uma história parecida? Angel Beats.

— Onde você assistiu isso? Nunca foi fã dessas coisas. Ah... Jane?

— Sim. Ela não parava de falar disso e de como a história é bonita e faz até o cara mais durão chorar no final, então assisti.

— Você chorou no final?

— Não tinha como não. Você e Alba deviam ver, a história é legal, e engraçada. E tem umas coisas complicadas de entender no final, mas Jane sabe explicar tudo.

— E como é?

— Um estudante morre num acidente e chega a um lugar estranho sem se lembrar de nada, nem mesmo seu nome, e se encontra com uma garota que no início parece ser uma inimiga. Mas depois os dois ficam muito próximos e ela revela pra ele que descobriu que ele não tem coração, porque quando ele morreu seu coração foi doado pra ela.

— Sua capacidade de resumir histórias inteiras em poucas palavras continua admirável. Mas o que isso tem a ver com o nome do seu fantasma? Apesar da história parecida.

— O garoto se chama Yuzuru, a garota se chama Kanade, que significa tocar um som ou tocar música, que nem o dele, apesar de Tom como nome próprio não significar realmente isso.

— É bonito.

— Não é? Eu procurei o significado de Tom também. Significa gêmeo.

— Que inesperado.

— Também achei. Mas isso só fez tudo parecer ainda mais certo, você não acha? Eu e ele temos o mesmo coração, ele é meu gêmeo de coração e alma – Kate sorriu, e mesmo aos 61 anos seu sorriso e seu olhar tinham a mesma iluminação de quando ela pensava em Tom naquela época – Você acha que tudo que acabei de te contar foi um delírio?

— Não. E não saberia dizer se fosse, você raramente estava por perto quando bebia demais pra eu saber como você ficava. Jane vai adorar essa história.

— Também acho. Quem sabe ela não sai das fanfics pra livros autorais e escreve uma história baseada na minha com Tom um dia? Se ela gostar da nossa história, dê meu diário a ela, vai encontrar muito material lá.

— Tenho até medo do que tem escrito ali.

— Eu já tinha mudado meu estilo de vida quando comecei a escrever, não tem nada constrangedor lá.

— Tá bom então... Do jeito que Jane é, é totalmente possível.

Um silêncio confortável ficou entre as duas por tempo.

— Se eu não voltar pra casa, conte essa história a eles, e diga que eu parti satisfeita, e muito feliz por ter vivido com todos vocês. E que provavelmente segui pro outro lado bem acompanhada.

— Kate, por que tem tanta certeza disso?

— Eu não tenho certeza. Mas eu tô sentindo algo que não sei explicar, eu tenho sonhado com ele quase toda noite desde o dia em que passei mal e viemos pra cá pela primeira vez. São sonhos muito lúcidos, eu acordo sentindo como se ele realmente estivesse aqui comigo. Me desculpa por deixar esse peso com você. Se algo acontecer... Eu quero que alguém saiba de tudo.

Marta segurou as lágrimas e assentiu.

— Eu fico feliz por você ter me escolhido. Quando encontrar Tom em seus sonhos, transmita nossa gratidão a ele, por tudo que fez por você, e consequentemente por nós.

— Eu vou – Kate sorriu – Provavelmente ele fará uma piada ou dirá alguma coisa bonita e poética sobre isso.

— Espero ter a chance de saber – Marta respondeu.

— Você devia ir encontrar os outros, eu vou tentar dormir um pouco.

— Faz bem – Marta disse ao se levantar e andar até a cama da irmã, inclinando-se para abraça-la.

Kate a apertou com força, ansiando para que esse ainda não fosse seu último abraço, apesar da certeza que batia em seu coração, que também estava literalmente se despedindo, e de se sentir em paz com isso.

Marta se afastou e as duas sustentaram o olhar até a mais velha sair e fechar a porta, e Kate fitou o acompanhante secreto de Marta no sofá.

— História interessante, queria ter assistido quando ainda estava vivo. Gostei da sua analogia sobre sermos gêmeos, e de achar meu nome bonito – Tom sorriu, bonito e bem arrumado como sempre.

Kate devolveu o sorriso.

— Se lembrasse que tinha celular de vez em quando, talvez tivesse visto.

— Achei que você fosse contar a ela que está me vendo de novo.

— Seria loucura demais pra ela absorver de uma vez só. Deixa ela digerir o que acabei de contar. Eu digo isso quando a vir de novo. Tom...?

— Hum...

— Você está aqui pra me buscar?

Ele ficou em silêncio e a olhou com carinho.

— Isso é você quem decide. O coração é nosso, no entanto, sua vida é sua. Mas se você decidir que é o momento, eu estarei aqui.

Kate apertou os dentes e inspirou fundo quando sentiu lágrimas ameaçarem inundar seus olhos.

— E diga a sua irmã que não fiz mais que minha obrigação. Eu queria ter certeza de que iam cuidar direito do coração que eu dei de presente.

Kate gargalhou, como nas várias vezes em que ele quebrara sua tristeza dessa mesma forma anos atrás. Tom sorriu e se aproximou, sentando na beirada da cama e fazendo-a lembrar da noite em que ele a beijou pela primeira vez.

— Você disse a sua irmã que tentaria dormir. Acho que deve seguir seu próprio conselho.

— Eu pediria um beijo de boa noite, mas não acho que você ainda me ache atraente com mais de 60 anos.

Tom riu com amor para ela.

— Você quase não mudou. Sabia que a alegria deixa as pessoas mais jovens?

— Lá vem você...

— É sério.

Kate riu, e depois os dois compartilharam um sorriso silencioso. Tom se inclinou e os dois fecharam os olhos quando ele a beijou, da mesma forma de 34 anos atrás, como se o tempo jamais tivesse passado. Kate se entregou à sensação de amor e segurança, querendo guardá-la para sempre. Permaneceu de olhos fechados quando o beijo acabou, e sentiu Tom segurar suas mãos e acariciar seus dedos.

— Agora dorme.

Ela abriu os olhos para vê-lo mais uma vez e sorrir para ele, tornando a fechá-los e tentando relaxar. Tom sorriu enquanto a observava adormecer.

******

Kate abriu os olhos quando o choro de sua mãe alcançou seus ouvidos, e a voz de um dos médicos explicando o procedimento de emergência feito quando ela teve mais uma parada durante o sono, que era apenas um paliativo para continuar esperando um coração novo, mas que Kate ainda tinha chances, apesar de um novo transplante ainda não garantir sucesso, como em qualquer caso assim. Ela sabia que o médico estava fazendo a mesma coisa que ela quando permitiu que toda a família dormisse ali com Kate aquela noite, queria que estivessem confortados pela presença um do outro caso o pior acontecesse. Mas a cantora se sentia em paz, como se de alguma forma tivesse feito sua preparação final para partir enquanto dormia, apesar de não lembrar de nada.

 Olhou em volta e viu todos ali novamente, dessa Vez Noel, Boy, Dan e Ed também estavam, e entre eles, sendo ignorado por todos, Tom, de pé aos pés de sua cama, sem nunca tirar os olhos dela.

— Nossa... Eu tô no meu velório? – Kate perguntou, ouvindo Tom rir.

— Tia Kate! – A voz chorosa de Jane disse – Quase que nós todos perdemos o coração dessa vez.

— Jane tem toda razão, mocinha! Pare de brincar com sua vida – sua mãe reclamou voltando ao quarto.

— Ainda estou aqui mãe, e estou bem, só cansada.

Kate observou sua mãe sentada no sofá, já em idade avançada, e parecendo tão cansada quanto ela, ou mais, e desejava que ela ficasse bem após sua partida. Olhou para seu pai, Marta e Alba, depois para Noel, Boy, Ed e Dan do lado oposto da cama.

— Vocês vieram correndo ver se eu morri – ela riu.

— Katarina! – Sua mãe reclamou novamente quando Noel e Ed esconderam o riso, Dan a olhou com ironia e seu pai fez uma expressão de indignação conformada.

— Você faz falta na loja – Noel falou para sua funcionária, e agora amiga.

— Os clientes estão sempre perguntando onde está a elfa que canta, apesar de estarem adorando ouvir sua sobrinha.

Kate e Jane sorriram com o elogio de Boy.

— No abrigo também. Eles querem ouvir as duas juntas de novo.

— Vê se não enrola pra melhorar. Precisamos de gente trabalhando – Dan lhe disse, e Kate sorriu com a forma fofa como ele escondia o que realmente queria dizer.

— Tenho certeza que você sobrevive com uma pessoa a menos por mais umas semanas. Não temos mais o Arthur, mas outras pessoas lá também sabem cantar – Kate disse, em seguida se dirigindo à oriental – Noel, lembra do Tom?

— Aquele namorado que você nunca mais falou?

— Sim. Tenho notícias dele.

— Depois de todo esse tempo?

— Sim, ele veio me visitar. Marta te conta depois, é uma longa história.

— Sim, você precisa descansar, e logo os médicos nos expulsarão daqui se não formos.

Eles conversaram por mais algum tempo até os quatro amigos irem embora, e seus pais pegarem no sono num sofá e Alba e Jane no outro. Kate riu quando Jane se mexeu enquanto dormia e Tom saltou do sofá ao quase ser atingido.

— Você viu isso? Sua sobrinha quase me acertou.

Kate riu novamente, vendo Tom sorrir.

— Está doida? – Marta perguntou.

— Marta... Se amanhã eu não estiver mais aqui. Conte também que Tom veio me buscar – falou ainda olhando na direção do sofá.

Marta arregalou os olhos e se virou devagar para fitar a mesma direção de Kate, mas não vendo nada, e olhando de volta para a irmã interrogativamente.

— Se você quiser, pode agradecer a ele pessoalmente, apesar dele já ter ouvido naquela hora. Ele falou pra eu dizer a você que não fez mais do que a obrigação, porque tinha que saber se estávamos cuidando direito do coração que ele deu de presente, falou tudo isso sorrindo.

— Tinha um fantasma sentado ao meu lado enquanto nós conversávamos?!

— Sim. Eu achei que seria melhor te dar tempo pra digerir a história antes de contar.

Marta abriu e fechou a boca várias vezes, e por fim sentou-se em silêncio na cama de Kate.

— Desde quando você voltou a vê-lo?

— Desde anteontem. Quando eu acordei, ele estava aqui.

— Então...

— Eu perguntei a ele o que acho que você ia me perguntar agora, mas ele disse que a escolha é minha. Porém, se acontecer, ele estará aqui comigo.

A morena olhou em volta do quarto com uma expressão ainda chocada.

— Oi, Tom – Marta acenou para o ar.

— Oi, Marta – ele sorriu – É um prazer conhece-la também. Eu gostei dela, e de toda a sua família – disse a Kate.

Kate sorriu para o amado.

— Ele disse oi de volta, e que gostou de você e de todos. Você devia ir dormir também, ele vai cuidar de mim.

— Se você diz... – Marta falou, conforma e ainda surpresa ao mesmo tempo – Como ele é?

— Bonitão – Kate respondeu, ouvindo Tom rir.

— Vai me deixar sem jeito na frente da sua irmã logo que somos apresentados formalmente?

Kate riu e continuou.

— Está reclamando por eu deixa-lo sem jeito na sua frente.

— Nem posso vê-lo!

Tom riu novamente.

— Ele tem cabelo preto, pele um pouco morena, olhos castanhos e meio puxados, e quase 1,90 de altura.

— Minha irmã tá namorando um fantasma que é galã de cinema.

Dessa vez o casal gargalhou junto, mas Kate em silêncio, a fim de não despertar os que já dormiam.

— O celular dele ainda tinha um pouco de bateria quando eu peguei e descobri que não tinha código. Não funciona mais, agora é só uma lembrança, mas havia uma foto dele lá e eu a guardo até hoje. Você vai encontrar no meu celular de agora. Se eu for embora mesmo, guarde nossas lembranças e use os aparelhos como quiser, ou queime tudo, você que sabe.

Tom riu enquanto Marta revirava os olhos.

— Kate... Se essa for a última vez que conversamos, quero que me desculpe por qualquer coisa, e que saiba que é uma irmã maravilhosa.

Kate lhe deu um sorriso triste e assentiu.

— Eu digo o mesmo a você.

Marta entrelaçou suas mãos enquanto as duas se encaravam, e abraçou a irmã, depois inclinando a poltrona ao lado da cama para se acomodar e dormir.

— Como você está se sentindo? – Tom perguntou quando os dois perceberam que Marta já dormia.

— Sei lá... Estranha. Leve, entorpecida, mas bem. Acho que vou dormir um pouquinho também.

— O sono é algo fundamental pra crianças e idosos.

Tom gargalhou novamente quando Kate tentou acertá-lo com um tapa.

— Eu não queria perder a piada, já que pode ser a última assim.

— Cale a boca, sente-se aqui, e fique comigo pra que eu possa dormir. O clima tá meio pesado, apesar de eu me sentir tranquila.

Ele assim o fez, e segurou a mão dela entre as suas.

— Você ainda acha que eu sou muito dependente de você? Quando acontecer, você ainda vai ficar comigo?

Ele afastou uma mecha de cabelo dos olhos dela, e afagou seu rosto com carinho.

— Você se saiu maravilhosamente bem sozinha. E como eu já disse, meu coração ia ser seu de um jeito ou de outro. E não pretendo toma-lo de volta.

— Então estamos namorando? – Ela sorriu.

— Estamos – Tom sorriu de volta, e a beijou suavemente quando ela fechou os olhos para dormir outra vez.

******

Kate acordou com falta de ar, seu coração batia rápido demais e seu peito e suas costas doíam muito. Abriu os olhos para ver Tom ainda sentado ao seu lado, segurando sua mão e a olhando com preocupação. Kate sorriu, apesar da dificuldade para respirar e da dor dificultarem a tarefa.

— Eu tô morrendo?

— Eu não sei – ele lhe disse baixinho, acariciando seu rosto.

Tom realmente não saberia dizer por sua própria experiência, não lembrava muito de sua própria morte. Os monitores começaram a disparar, acordando todos no quarto com os apitos. Marta, já em alerta devido a tudo que conversara com Kate, foi a primeira a sair correndo do quarto enquanto os demais ainda tentavam assimilar o que estava acontecendo. Tom saiu do caminho para seus pais ficarem a seu lado, enquanto Alba e Jane ficavam do outro.

— Kate, meu amor, fique tranquila, sua irmã foi buscar socorro!

Kate respirou para responder, sua voz saiu fraca, mas saiu.

— A senhora é que tem que ficar calma, mãe. Não tem idade pra se estressar. Tudo vai ficar bem. Só continuem, que nem na música do Freddy Mercury.

— Tia Kate...

— Jane... – Kate sorriu – Você é uma elfa perfeita, a Noel nunca vai deixar você se aposentar.

Kate puxou a garota para um abraço suave quando ela começou a chorar, e se voltou para Alba quando Jane se afastou.

— E Alba, obrigada por cuidar de Marta e Jane.

Alba tentou sorrir de volta, mas apenas acenou positivamente e segurou as lágrimas.

— Eu é quem agradeço, Kate – ela lhe disse.

— Pai, não deixa a mamãe perder a cabeça, aproveitem a vida.

Ivan sorriu para a filha enquanto afagava seu cabelo, agora uma mescla do castanho claro natural e alguns fios louro claros.

— Você é uma ótima garota, Kate – seu pai lhe respondeu, fazendo-a sorrir.

— Katarina, pare de dizer essas coisas como se você fosse...!

— Mãe, eu tô bem – Kate sorriu, e viu desespero, dúvida, raiva e esperança se misturarem no olhar de sua mãe.

A conversa foi interrompida pela entrada de Marta e dos médicos, que com dificuldade convenceram a família a sair do quarto, especialmente Petra.

— Se for isso mesmo, obrigada por tudo! – Marta lhe disse ao abraçar a irmã uma última vez, vendo Kate sorrir e assentir quando os médicos quase arrancaram Marta do quarto.

— Se você ainda estiver aqui, cuida da minha irmã – Marta sussurrou com descrição, enquanto saía.

— Eu prometo a você – Tom respondeu, ainda que soubesse que apenas Kate podia ouvi-lo.

— Ele prometeu que vai – Kate respondeu ainda sorrindo.

Antes de sair, Marta viu a irmã olhar para um ponto aos pés da cama onde, para qualquer outra pessoa não haveria nada, mas certamente é ali que Tom estava, ao lado dela o tempo todo.

Kate ouviu os sons dos aparelhos e das vozes apressadas dos médicos se misturarem, e sentiu-se sonolenta enquanto tentavam reverter seu quadro. Fechou os olhos e deixou o que quer que fosse acontecer. Ela estaria feliz em ficar mais tempo com sua família, mas também estaria em paz partindo com Tom e não precisando se desfazer do presente dele para ela, caso não houvesse tempo. De repente ela sentiu uma pancada no peito. Não doeu, mas seu coração parecia querer fugir do corpo, era incômodo, mas num segundo a sensação se foi e ela se sentiu incrivelmente leve e em paz. Abriu os olhos para ver os médicos desesperados e Tom outra vez ao seu lado, olhando-a de perto com expectativa e segurando sua mão.

— Eu perdi alguma coisa?

— Talvez. Você está bem?

— Me sinto ótima, mas...

Ela olhou com mais atenção para o que acontecia, finalmente se atentando ao som ininterrupto dos aparelhos e os médicos ainda conversando com pressa, tentando reanima-la. Mas Kate estava bem, e parecia que observava um sonho.

— É assim mesmo. Fiquei tão confuso quanto você. Tente sentar.

Ela assim o fez, ajudada por Tom, e não deixou de tomar um pequeno susto ao sair da cama e ver seu corpo ali. Olhou para si mesma e estava jovem de novo, talvez mais jovem do que quando conhecera Tom, suas roupas de hospital também haviam mudado, para as que costumava usar em sua juventude. Seu cabelo perdera a mistura de cores, tornando-se completamente castanho claro, como fora desde sua infância. Levando a mão ao peito, não sentia mais o coração deles bater, e olhou para Tom instintivamente, buscando qualquer resposta.

— Somos feitos de energia agora, não precisamos mais de um coração, não temos sangue pra circular. É estranho no início, mas você vai se acostumar.

Ao invés de responde-lo, Kate o encarou, como se o visse pela primeira vez, ao perceber que agora estava do mesmo lado, que podia tê-lo de volta, mas de verdade. Sem pensar por mais nenhum segundo, se atirou nos braços de Tom, que a apertou de volta enquanto se desfaziam da saudade de todos aqueles anos.

— Você ainda prefere não se envolver?

Tom riu em resposta.

— É seu.

Ela entendeu, e seu sorriso aumentou. Abraçou o amado com mais força, e decidiram unir seus lábios antes que tivessem tempo de decidir que dar atenção ao desespero dos médicos era mais importante. Se perderam assim, até que não conseguiram mais ignorar a situação em volta, e Kate se afastou de Tom para observar o quarto mais uma vez. O silêncio repentino dos médicos e dos aparelhos, todos eles parados e quietos em volta de sua cama como se a velassem respeitosamente, e a voz de um deles do lado de fora do quarto, seguida por um lamento de sua mãe e de Jane, e pelo choro mais discreto de Marta, Alba e seu pai.

— O que eu faço agora? – Kate perguntou.

— O que você quiser. Pode ficar ao lado deles por enquanto.

Kate segurou a mão de Tom, e ele entendeu que ela queria que ele a seguisse. Os dois saíram do quarto, observando sem ação sua mãe chorar e ser amparada por seu pai, e Jane por Alba e Marta, que olhava fixamente para seu corpo sem vida pela porta do quarto, como se a qualquer momento Kate fosse levantar e dizer que foi tudo uma brincadeira de mau gosto. Ela sorriu olhando para a irmã, e esticou o braço para tocar seu ombro.

— Lembre-se de entregar nossas coisas a Jane. E sigam em frente, sejam felizes. E não se preocupem, Tom está comigo. Lhe direi isso quando dormir pra você ter mais chances de se lembrar.

Marta claramente não a ouviu, mas arregalou os olhos e respirou fundo quando a sentiu.

— Eu prometo, Kate – ela sussurrou entre as próprias lágrimas.

Em seguida ela trocou um olhar com Tom e fitou novamente sua família, permanecendo num silêncio doloroso e tranquilizador ao mesmo tempo. Kate estava pronta para seguir em frente, sentia-se livre e em paz, e não estaria sozinha. Mas ainda era triste ir embora assim, deixa-los depois de tantos anos, e imaginou que Tom sentiu o mesmo quando a se despediu dela naquele Natal.

******

Kate estava em dúvida sobre ver seu próprio velório e enterro. Obviamente ela ficou triste ao ver as pessoas que amava chorarem, se emocionou muito ao vê-las lhe homenagearem, e ficou grata e sentiu-se forte com todas as formas que Tom buscou para fazê-la rir e sentir esperança. Estava feliz por partir antes da época favorita do ano deles ao invés de entristecer todos justamente naquele clima feliz, e quando decidiram que aquela seria sua última noite como fantasmas nesse mundo, e terminaram de visitar secretamente todas as pessoas que Kate gostaria de ver antes de partir, eles observaram a cidade, que começava a brilhar e ganhar cores com a proximidade do Natal.

— Parece um sonho, literalmente – ela falou enquanto se abraçavam no banco de Tom no jardim secreto, onde agora também havia uma placa dourada com seu nome.

— Você se acostuma.

— O outro lado é divertido?

— Não é tão diferente daqui, mas está em paz. Ainda tem tecnologia, mas sem tanto barulho e essas coisas que no fim não acrescentam em nada.

— Podemos cantar e celebrar alguma coisa lá?

— Claro! – Ele falou com alegria – Não mudamos quem somos porque não temos mais corpo. Ainda somos humanos. Você vai gostar de lá.

— E como chegamos lá?

— Quando você estiver pronta pra irmos eu mostrarei a você.

Kate sorriu e o beijou, encarando-o em silêncio depois e entrelaçando sua mão com a dele.

— Eu acho que já terminamos tudo que tinha a ser feito aqui.

— Tem certeza?

Ela assentiu.

Tom levantou-se, sem soltar a mão dela, e fez um gesto para os dois seguirem pela saída do jardim. Kate se levantou e Tom esperou pacientemente enquanto ela olhava em volta, como que para guardar uma última lembrança de sua casa.

— Vamos, Tom.

— A suas ordens, Kate.

Ela sorriu e os dois trocaram um último beijo antes de caminharem de mãos dadas e sorrisos radiantes para fora do parque, como Tom fizera 34 anos atrás.


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