A Melodia das Profundezas escrita por Vale dos Contos Oficial


Capítulo 11
Cicatrizes que o passado não esquece




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Apesar das pessoas da aldeia não sentirem o mesmo que Tobias, César e Matheus, era inegável que a aparição dos cinco lobisomens começou a passar um ar de calmaria e esperança. Emanuele continuou seu avanço para cima dos lobos, o outro leão desaparecera, mas não era hora de comemorar. Tobias e César conseguiram correr para perto de alguns homens que ainda estavam em pé, muito cansados e caídos no chão, poucos desmaiados pelo cansaço, maioria com ferimentos enormes.

—Precisamos ajudar o pessoal! - Ainda alguns trovões ecoavam os céus, os estrondos aplicavam mais incêndios, muitos nas florestas ao redor. - Esses focos... Precisam ser cessados. Se avançar para a cidade, vamos morrer sufocados pela fumaça. - Tobias corria na frente de César, ia passando de casa em casa averiguando os estragos, auxiliando as pessoas a saírem dos escombros.

—E a Serpente?

—Espero que os Lobisomens deem conta. - Eles não se afastaram muito da praça central, eles foram carregando os feridos para dentro de casas intactas, as quais eram escassas. - Seria ótimo se conseguíssemos usar a igreja, suspeito que ela tenha sido atacada ou destruída em algum ponto. - Ao voltarem para o campo de batalha, os quatro lobisomens pulavam sobre o último leão, que nem resistiu, estava fraco sem o poder da Serpente, ela se encontrava ocupada enfrentando Emanuele.

A fera avançava acima do réptil, mas não conseguia alcançar. Pagliazi era rápido, o corpo flexível, a bocarra se abria e mordia com força as patas de Emanuele. Entretanto, com a queda do outro leão, e sem mais lobos percorrendo a cidade, os demais lobisomens foram avançando e cercando a Serpente, prontos para auxiliar a Matriarca.

—Vamos contornando a praça e carregando o pessoal ferido para a Igreja. Lá deve estar seco e mais seguro que aqui fora. - Conforme Pagliazi era atacado, as nuvens se dissiparam, não havia mais chuva, as chamas dos incêndios era apenas fumaça que penetrava o espaço acima, largando apenas cheiro de queimado no ar. Poucos eram os homens que conseguiam carregar os idosos, mulheres e crianças, havia muito feridos.

Matheus e Soraia correram para dentro da Igreja, aos passos lentos pela idade que já os abraçava. Zacarias, o dono do bar, conseguiu se esconder há tempo, dentro de seu próprio bar, ao lado de muitos dos bêbados inveterados, que agora nada de álcool tinham no corpo, e conseguiam sair para ajudando aos poucos, muitas mulheres conseguiram arrastar seus filhos para fora da cama em direção à igreja, retornando para ajudar quem necessitava.

César e Tobias encararam tudo com dor no peito, a cidade parecia que reduziu muito em poucas horas, eles ainda viam o baile que a Serpente e os Lobisomens faziam, os cinco cansados, sem saber como mais duelar. César se uniu com Soraia, carregando algumas caixas de remédios e curativos para cima e para baixo, o Prefeito também os ajudava.

—Péssima hora para ficarmos sem algum farmacêutico ou médico na região! - Matheus tinha uma faixa em torno das mãos. - E o que você aprontou?

—Ah, foi um corte de nada, um bem maior, diria eu.

Muitas crianças, felizmente, apresentavam hematomas leves, eram arranhões, roxos maiores por terem colidido com alguma parede, nada muito grave. O que César conseguia contabilizar era o falecimento de muitos idosos, parecia que os o avanço dos lobos e dos leões era direto para eles, talvez mais pela idade, ou por terem uma velocidade menor no escape.

—Tobias, poderia me pegar mais pano para os... - César encarou o espaço ao seu redor, nada de Tobias, Soraia o procurava logo que não ouviu a voz do garoto. - Não... - Ele correu para fora, viu o garoto com um facão em mãos, ele também estava ferido, conseguia ver o sangue escorrendo pelas suas costas, provavelmente o impacto contra o palanque tenha aberto feridas, ou até mesmo cortado a pele. - Tobias! - Os lobisomens encararam o menino, o que permitiu que a Serpente escapasse rua abaixo, em direção ao Cemitério dos Inférteis.

Tobias forçou uma corrida com as forças que ele ainda tinha, avançou o mais rápido que pode, porém um duelo de velocidade com um réptil ágil como uma cobra era impossível. Os Lobisomens começaram a perseguição também, César correu atrás, estava mais disposto que Tobias, mas ainda assim, o cansaço o dominou naqueles poucos instantes em que parou para auxiliar nos ferimentos.

—Tobias! - César tentava chamar o garoto, mas não ouvia, e nem pararia a perseguição. O garoto pulava de diversas formas para alcançar a criatura.

—César, suba! - Dois lobisomens apareceram ao lado dele, um era Emanuele, muito maior do que se lembrava do pai dela como lobisomem. Ele saltou muito sem jeito, entretanto se segurou, e eles avançaram mais rápido. - O que deu no garoto?

—Fúria, raiva, medo, ele deixou os sentimentos se sobressaltaram. - A voz adveio de um dos lobisomens, com um símbolo de lua crescente na fronte. - Estou com um mal pressentimento desse duelo entre o garoto e a Serpente, más vibrações. - Quando eles chegaram no Cemitério, Tobias estava diante da Serpente, eles se encaravam, como se duelassem com o olhar. - Ele precisa ter cautela, o olhar de Serpentes podem hipnotizar facilmente aquele que não é bem preparado.

—Então... Foi assim que Salazar cometeu suicídio. - Resmungou César. - Pagliazi o forçou a isso.

—E falando num servo do mal, como podemos ver, creio que a persuasão é bem maior e mais tenebrosa. - Eles não se moviam, não havia um levantar de mãos, apenas o tórax de Tobias que se movia. - Telepatia? Para se comunicar?

—Provavelmente, uma ótima maneira de lavagem cerebral sem que os demais saibam o que está acontecendo. - E quando tentaram avançar, um enorme raio cortou o ar e ateou um círculo de fogo ao redor dos dois. - Era o que me faltava. - Assim, Tobias avançou contra a Serpente, que facilmente desviou. - Acho que será apenas decisão e ações do garoto que vão nos salvar.

César estava apreensivo, ele desceu de cima de Emanuele e se sentou no chão, cruzando as pernas.

—Fique calmo, o garoto conseguirá vencer, meu pai caiu também.

—Não esqueçamos que seu pai caiu pela ajuda de dois, minha e sua. - Emanuele lembrava: ela cortou a garganta do pai enquanto César atirou, perfurando o crânio dele. - Tobias está sozinho.

—Eu acho que não. - O lobisomem com lua a fronte disse. - Esse é o Cemitério dos Inférteis, seria ótimo que as almas de quem morreu pelas mãos da justiça do Pagliazi pudessem nos ajudar nesse momento.

—Agora você fala de ressuscitar os mortos?

—Eu falo em pedir uma ajuda. De tudo o que já vimos, meia dúzia de esqueletos saindo do solo gélido é o menos pior. - E uma explosão eclodiu do centro do Cemitério, com Tobias fincando a arma no chão. Uma onda esbranquiçada saiu do meio deles. - Acho que ele nos ouviu... - E a fumaça percorreu ao redor da Serpente, a qual estava presa. Tobias avançou, cortando sua barriga por inteiro, esperando o corpo cair no chão, quando pode perfurar o crânio duro com a lâmina do facão. - Bom, espero que ela não volte nem como minhoca de horta. - Uma forte ventania correu para cima deles, apagando as chamas que circundavam o local.

Tobias despencou no chão e César correu para ajudá-lo, segurou o corpo do menino para retornar para a Igreja, não havia mais fenda no chão, nem sangue, o corpo da Serpente se perdeu em meio a cinzas, tudo parecia desaparecer em questão de minutos. César subia devagar, estava fraco para carregar o garoto, que estava mais leve do que antes, contudo o cansaço perdurava.

—Manu... Eu nem sei como podemos agradecer pela ajuda de vocês...

—Agradeça a Matheus, ele nos achou, e de uma forma bem diferente. - Ela farejou Tobias. - E creio que ele usou o mesmo artifício para as almas do Cemitério. - Havia um corte na mão dele, ainda sangrava, mas pouco.

—Matheus também tinha um, disse que foi para um bem maior. - Os lobisomens se curvaram, como despedida, e correram para longe, sabia que ficar ali poderia ser perigoso, apesar de toda a ajuda que deram para a cidade nas últimas horas. - Vamos para casa, vou cuidar de você e depois cuidar do pessoal da cidade.

*

Tobias abriu os olhos com a claridade diretamente na sua face, ele estava no quarto de César, o que aconteceu desde ontem a noite? Praticamente ele teve um apagão em sua memória do instante em que perfurou o crânio da Serpente. Entretanto, as palavras da Serpente o assombravam, parecia uma sina que o perseguiria sempre, nada poderia fazer para se livrar das palavras finais, era um pesadelo.

Ele se levantou, tinha uma roupa limpa ao lado da cama, havia uma conversa leve na cozinha, para onde ele se dirigiu. Eram César, Soraia e Matheus, tomando café enquanto se perguntavam quando Tobias acordaria, não imaginando que ele ouvia tudo.

—Como assim? Três dias?

—Isso, dorminhoco, certeza que o que o senhorito fez para ter ajuda das almas penadas foi o suficiente para sugar sua energia vital por um tempo. - Ele encarou César, que estava parado na pia passando café. - Abraça logo seu namorado, garoto, só vocês dois acharam mesmo que iam esconder isso de mim e da Soraia. - César também se assustou.

—Meus queridos, vocês podem ficar aliviados, somos de bem com isso.

—Mas também só me faltava, tínhamos uma amiga que era bruxa e farmacêutica, temos amizades com almas penadas e lobisomens, mas "Ah, homem não pode beijar homem". Cada coisa também. - César só se afastou da água quente e abraçou Tobias, que retribuiu, parecia um alívio eles terem dois amigos com quem confiar. - Mas claro, o resto da cidade não será tão bem assim.

—Sim... Sabemos... - Tobias estava reflexivo, tinha uma ideia em sua mente, mas não poderia contar a ninguém, seria o seu segredo. - E como a cidade está?

—Bom, muitos estragos, mais mortes, muitas de estrangeiros, os que conseguiram sobreviver parece que rendeu uma boa amnésia para o pessoal, poucos acham que tudo foi fruto da bebedeira que o bar do Zacarias proporcionou.

—Haja ópio para o pessoal ter imaginado tudo aquilo, por sinal. - Soraia deu uma gargalhada gostosa, animou ainda mais os demais. - Mas sério, ao menos a fama da cidade continua intacta?

—A fama já não era boa, ao menos temos mais algumas memórias dos moradores para o nosso museu. Vai precisar expandir o lugar só para a data de ontem.

—Uma Serpente trazendo o caos para o vilarejo, que bíblico. A Igreja ama.

—E falando em Igreja, como será agora sem o Pagliazi?

—Provável que algum padre venha no lugar dele. Só sei que a Capital deve amar a cidade, não para um padre direito aqui.

—E o café está pronto, vamos comer que logo tem discurso do Prefeito na Igreja, vai saber o que o homem falará. E ele quer todo mundo lá.

*

Enquanto quem estava acordado e conseguindo andar, apesar da Igreja ter se tornado um hospital momentaneamente, Tobias correu para o estábulo da cidade, ele não poderia ficar mais ali. Dos poucos cavalos que lá havia, ele escolheu um que poucos dariam falta, isso se alguém percebesse seu sumiço. Infelizmente, teria de deixar a madrinha para trás. A tia sempre o acolheu, mas o que afligia seu coração, aquilo colocaria um fim na paz que havia com a tia.

—E onde você pensa que vai? - Tobias chutou um balde com água ao ver César de braços cruzados na entrada. O homem tinha um olhar furioso, mas aquilo não amedrontava Tobias, já havia visto o homem nervoso de formas mil vezes pior, aquilo era nada perto. - O que aconteceu no Cemitério dos Inférteis, que está te obrigando a fugir? Aliás, tenho certeza que Dona Ana não sabe disso.

—E nem pode saber... Ela ficaria arrasada. - Tobias tinha lágrimas no olhar, ele se aproximou de César, e começou a chorar. - Eu não queria ir, não queria deixar você, ou a cidade, mas não posso... Se eu ficar... Se tudo aquilo voltar para mim... Não vou aguentar, com o sangue em minhas mãos. - César se assustou com as últimas palavras, e o namorado não contou o porquê, o motivo era pior do que imaginaria.

—A reunião começará em breve, você terá uns 20 minutos para sair pelos fundos e seguir. Eu te dou cobertura. - Ele deu um forte beijo no namorado, muito longo, e salgado, as lágrimas deles se encontravam, causando muita dor internamente, não queriam se despedir. - Pode ir, meu amor, um dia a gente se encontrará.

Não demorou muito para a reunião acabar, Dona Ana veio correndo na direção de César, ela tremia de medo, tinha um olhar triste na face, ele sabia o que se passava na cabeça da mulher, imaginou tudo o que estaria turbilhando na mente dela, nem sabia como contar, como falar com todas as palavras claras que precisaria falar.

—Por que... Por que ele foi embora? - Ela já chorava enquanto abraçava o Xerife.

—Nem eu sei, tia, nem eu sei... Ele não quis me contar. - E os dois choravam muito. Gisele via toda a cena, Dona Gláucia estava ao lado dela, ambas não compreendiam o que aconteceu, estavam chorando por quem, nenhum deles perdeu um parente no Baile de Primavera. - Eu só posso dizer que nem ele gostaria de ir embora, gostaria de ficar ao lado da senhora, estar ao seu lado em todos os momentos, sempre para ajudá-la como sempre fez, doeu muito nele ir embora, ainda mais sem se despedir.

César imaginou que Dona Ana não suportaria ficar sem o sobrinho, a quem cuidou sempre, seria um sofrimento que poderia levá-la desse mundo, e tinha medo de isso acontecer, a dor alcançaria Tobias com o mesmo impacto que o coração dela perdia força.

—Dona Ana, poderíamos conversar na minha casa?

*

Tobias estava longe, o cavalo que ele pegou era veloz, não imaginava isso do tanto que os trabalhadores reclamavam dele. Estava distante, num campo ao lado de árvores frondosas, certamente ali ele conseguiria descansar sem problema algum, sem pensar que alguém o incomodaria. Todavia, relinchos vieram ao longe, fazendo com que tentasse se esconder.

—Tobias!

—Madrinha? - Ele olhou para trás e viu Dona Ana e César. - Por que vocês me seguiram? - Ele não sabia se tinha medo, se sentia alegria, o que sentia, apenas abraçou fortemente a tia. César também o abraçou, dando um beijo forte nele, que o assustou. - Mas César...

—Sua tia já sabe, eu contei a ela.

—Ah meu filho, eu já suspeitava, eu vi vocês dois crescendo, sempre muito solitários, mas depois veio uma amizade assim... Meio que do nada, e vocês se encaravam de forma diferente, amantes mesmo.

—Mas... O que vocês vieram fazer tão longe? Por quê?

—Aquela cidade é um templo perdido no tempo, o pessoal conseguirá se virar, eles saberão o que fazer sem um Xerife ou uma costureira, eles saberão se virar. Vamos começar uma vida nova mais ao longe, não em cidade, mas isolados, eu sei que teremos proteção. - E um uivo os assustou, uma forte ventania trouxe um cheiro forte e uma sombra cortou acima deles, caindo frente a frente. - Pelo visto, aqui não é tão sem vida assim. Bom dia, Manu, como está?

—Vocês três fugiram de lá também? - A menina usava roupas largas, era o que conseguia às vezes de forasteiros que os viam nas florestas e corriam amedrontados, deixando tudo para trás. - Bom, aqui tem bastante árvore para construírem uma cabaninha gostosa para vocês, e muitos viajantes passam na estrada abaixo, provável que comerciantes também, conseguirão muita coisa apenas com permutas.

—E sua matilha?

—Lá em cima, mais perto da parte mais densa da floresta, tem umas cavernas muito boas para se esconder até a casa de vocês estar em pé. Tem um lago também mais ao Sul, muitos peixes no verão, e mais ao Oeste há muitas aves e animais bons para caça.

—Praticamente uma guia de turismo, não é? - Ela sorriu de volta para Dona Ana. - E muito obrigada, minha querida, você fez muita falta nesses últimos tempos.

—Eu imagino, com o tempo nos acostumamos com a falta dos nossos entes queridos. - Eles encararam o Sol que já a pino está. - Bom, eu aconselho a usarem as árvores para se protegerem, aqui o negócio é feio para quem fica direto no Sol. - Ela saltou e sumiu no meio das árvores, podiam ouvir as folhas caindo.

—Acho que vamos nos adaptar, podemos sobreviver com as nossas coisas.

—Quem sabe voltar para a cidade e buscar o que deixamos para lá, tudo ao nosso tempo. - Tobias sorriu, mas era amarelo, ele estava com medo, aquilo gritava em seu olhar. - Meu lindo, fique calmo, o que estiver te incomodando, poderemos cuidar disso, você estará seguro com a gente. - E eles encerraram a conversa com um longo e demorado beijo.

 


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