Aspecto da Justiça escrita por Queenium


Capítulo 3
Ponto Sem Retorno


Notas iniciais do capítulo

De forma a tornar as transições menos confusas, é importante esclarecer que as reticências sem negrito são utilizadas de forma a marcar a passagem de tempo. Por sua vez, reticências com negrito marcam o começo e fim de um flashback.



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Eu vejo a silhueta da cidade se formar a distância, conforme o crepúsculo aproxima-se de seu fim. O único olho do Senhor da Noite, completamente aberto brilha no céu, iluminando a última parte da estrada. Sinto meu coração ficar pesado.

 Os muros erguem-se. Me lembro de quando era menor. De noite, a proteção contra as crias dos deuses antigos pareciam muito maiores do que realmente eram. Quando os guardas gritavam algo lá de cima, pareciam muito mais assustadores.

 Me pergunto em que momento isso parou de acontecer.

 Noto a movimentação dos guardas, andando de um lado para o outro. Sinto suas armas de fogo apontadas para mim. Suspiro novamente. SolnimusUmbra, chamo. Minha bainha fica mais leve conforme as lâminas se materializam em minhas mãos.

 Seguro Solnimus com força. O couro de um Leão Celestial protegia o cabo, e a imagem de um sol dourado brilhava na chappe. Surja, ordeno. Lentamente, a noite ao meu redor torna-se menos escura, conforme a lâmina começa a formar-se, feita do mais puro raio de sol. Umbra é leve, quando a chamo às vezes duvido que ela realmente esteja ali. O cabo é completamente negro, penas de corvo balançam em seu pomo. E sua lâmina...não há lâmina. Existe somente a impressão de que há algo ali, de que deveria haver algo ali, uma imagem esfumaçada e efêmera.

 Meus passos levantam poeira conforme me aproximo. Os muros de Niteferm ficam mais inquietos.

 - Q-quem é?! - grita um dos guardas, a voz carregada com o peso da idade.

 Ergo meus olhos. Sei que podem vê-los, tenho certeza que podem senti-los.

 - Vocês sabem quem - respondo, severa.

 - Vá embora! - diz o mesmo guarda. - Nós pagamos os tributos para a igreja! Você não tem negócios aqui!

 - Vocês escondem uma bruxa - falo, minha voz ecoa como um trovão pela rocha. - Não irei embora até executá-la.

 Murmúrios soam. Eles não sabem o que fazer. Não os culpo. Então, um som alto soa. Não penso, meu corpo simplesmente se move por si só. Sinto o ar se agitar à minha direita. Giro Solnimus e golpeio. Um chiado soa conforme algo evaporou. Um suave cheiro de chumbo perdura.

 Olho para cima. Ao menos dez guardas. Se os nove restantes disparassem não seria capaz de me defender de todas as balas. Mas eles estão com lanternas, observo. São fracas, feitas de resíduos de cristais carregados, fortes o suficiente apenas para ter certeza que ninguém tropeçaria enquanto caminhava por ali durante a noite. Se ocorresse uma tempestade até mesmo uma lâmpada olho-de-boi, alimentada com óleo especial, seria mais efetiva.

 Mas é o suficiente. Me preparo, me concentro. Sinto a luz pulsar, frágil, mas determinada. Sinto suas ondas expandindo-se e iluminando a rocha. Mas não posso só sentir isso, há algo mais.

 - Disparem! - grita o velho guarda, irritado. Fora um novato que disparou aquela vez, imagino. E agora já foi longe demais para voltar atrás.

 As luzes da lanterna desaparecem. As armas, que deveriam iluminar o ambiente por um singelo momento conforme a pólvora se inflama, não produzem sequer um fio de luz, apesar de ainda dispararem. A luz do luar ao meu redor desaparece, como se tivesse me envolvido em um globo de sombras. Então, imagino. Imagino algo entre mim e as balas que rapidamente fecham a distância entre nós. Imagino algo para me proteger.

 Balanço Solnimus, e então ela surge. O mundo ao meu redor volta a se iluminar conforme uma parede de luz surge diante de mim, iluminando o portão e o grande muro de pedra à minha frente. Iluminando o rosto dos guardas por tempo suficiente para eu notar suas expressões mudando de desespero para uma forma ainda mais profunda de medo, e então...para algum tipo estranho de alívio.

 As balas ricocheteiam na barreira que criei e voam nas mais variadas direções. Ouço o som de algumas chocando-se contra a pedra do muro, outras fazem um som quase surdo conforme enterram-se na terra, e ao menos um guarda azarado caiu no chão gemendo de dor conforme uma acertou-o.

 Encaro-os profundamente. Não consigo ver seus rostos, mas com Solnimus brilhando em minhas mãos, tenho certeza que conseguem ver o meu. Saiam da minha frente, orderno silenciosamente, e eles obedecem. Alguns caem de joelhos, outros correm para buscar mais ajuda em outras partes (algo que sei que atrapalha imensamente a burocracia de como essas coisas deveriam funcionar), outros simplesmente congelam.

 Sigo adiante. O portão de bronze é a única coisa entre mim e meu alvo. Giro Solnimus em minhas mãos e realizo dois cortes perpendiculares no metal. A lâmina de energia atravessa-o como se fosse manteiga. Pedaços derretidos, brilhando com um vermelho intenso, caem no chão e incendeiam as poucas plantas que conseguiram resistir à dezenas de carruagens e pessoas passando por ali.

 Os blocos de metal lentamente escorregam, e eu vejo pela primeira vez o interior da cidade. A prosperidade trazida pelo usuário de magia era inegável. Havia eletricidade ali. Lâmpadas, energizadas por um cristal verdadeiro em algum local próximo, iluminavam as ruas. As casas eram firmes e grandes, apropriadamente construídas para lidar com ataques de monstros e desastres naturais. Vincent como alguém que trabalhava com a terra só podia dar-se ao luxo de manter suas botas vermelhas, os demais cidadãos, lançando-me olhares igualmente hostis e aterrorizados, vestiam roupas verdes, vermelhas, azuis, e roxas. Alguns estão meramente para observar. Mães que trazem crianças para perto de si, idosos que se perguntam o que isso significará para seus últimos anos de vida. Mas também há aqueles que querem me tirar dali. Ao lado dos guardas, que trajam uniforme verde-escuro com botões dourados, estão pessoas com seus martelos, seus facões, e suas forquilhas.

 É irônico, de certa forma.

 Respiro profundamente, ergo Umbra, e avanço.

(...)

 Quarenta e duas pessoas, eu contei. Não havia caído uma única gota de suor ainda, apesar de ter a impressão de sentir uma se precipitando em minha têmpora.

 Todos os corpos jazem no chão. Desacordados, mas não mortos. Nunca mortos. Manchas escuras marcam os lugares onde a lâmina fantasma os acertou. Provavelmente devem desaparecer pela manhã. Umbra não fere o corpo, apesar de que temo que haja sequelas para aqueles que não possuem um espírito forte o suficiente.

 Outras dezoito ainda tinham coragem o suficiente para se manterem diante de mim.

 - Nós não fizemos nada! - berra uma mulher que tenta atacar-me por trás com uma pá.

Giro Solnimus e corto o utensílio. A parte de metal cai no chão, deixando somente o cabo de madeira com uma ponta fumegante. Golpeio-a com Umbra. A fumaça atravessa seu torso. Ela cambaleia por um momento, então desaba no chão.

 Um homem enorme tenta estocar-me com uma espada. Movo-me para o lado, girando meu corpo e golpeio com Umbra em seu pescoço. Ele também cai. Cinco outras pessoas preparam-se para avançarem de uma única vez. Deixo escapar um suspiro. Quantos mais eles ainda vão insistir em perder?, penso, conforme os cinco cidadãos ordinariamente comuns começam a aproximarem-se, até que…

 - CHEGA! - um grito agudo e esganiçado ecoa pelo ar.

 Todos congelaram.

 Merda, não consigo evitar de pensar.

 Uma garota, uma criança, está parada atrás de toda multidão. Seu cabelo castanho chega até o meio das costas. Ela usa um suéter de lã impecavelmente branco, suas sapatilhas vermelhas brilham sob a luz das lâmpadas. Ela ainda não aprendeu a controlar adequadamente sua magia, estresse emocional intenso faz com que ela vaze. Grama, flores, e pequenos brotos crescem ao seu redor.

 - É a mim que você quer, não é? - ela diz, soluçando. Seus olhos estão vermelhos, suas bochechas úmidas pelas lágrimas que descem incessantemente. 

 - Floquinho - diz lentamente um homem alto, moreno e exageradamente musculoso. - Volta pra dentro... 

 A garota o encara. Ela percebe o quanto ele treme. Lentamente, a pequena bruxa balança a cabeça.

 - Não, já chega! - ela diz, dando um passo à frente.

 - Eu já disse pra você voltar para dentro! - ele berra.

 - Não! - ela rebate. - Olha quanta gente morreu por minha causa! - ela diz, apontando para a trilha de corpos que estendia-se até a entrada da cidade. - Não entende pai? Eu preciso morrer!

 Eu suspiro, e dou um passo à frente. Corajosa.

 - Eles não estão mortos - digo -, mas sim, você precisa morrer.

 A expressão do pai afundou. A expressão de alguém que não mais conseguia enxergar o futuro. De quem estava preparado para a morte. De quem vai perder tudo. Desvio meu olhar. Se focar nisso, sei que não conseguirei realizar o trabalho.

 - Eu… - ele diz devagar. - EU NÃO VOU DEIXAR VOCÊ TOMAR MINHA FILHA! - ele berra, avançando com um martelo.

 O chão treme. Instintivamente pulo para trás. Subitamente raízes partem o chão de pedra, raízes marrons e com ásperas cascas, como se ainda pertencessem a uma árvore viva. Elas envolvem-se com força no homem, segurando cada músculo concebível. Volto a focar-me na garota. A palma de sua mão brilha em uma suave tonalidade verde-clara. 

 - Chega - ela diz. - Me mate...por favor…

 Fortaleço minha determinação (será que posso realmente chamar isso de determinação?) e vou até ela. Os demais cidadãos abrem caminho para minha passagem. Retornem, ordeno, e Solnimus e Umbra desaparecem. 

 - Eu não sou a primeira, sou? - pergunto.

 Ela recua alguns passos, encarando o chão.

 - Não...não é...o primeiro parou aqui por acidente...foi...foi o que me disseram… - ela diz. Sua voz não quer lhe obedecer.

 - Ei - digo, com a voz firme. - Pode me mostrar o caminho até a praça da cidade?

 A garota recua. 

 - Por...por quê? - pergunta, lentamente.

 - Vamos até lá - digo. - Vou te contar uma história durante o caminho.

 Ela lentamente aquiesce, e começa a caminhar.

 - Então… - começo. - Além das montanhas e dos sete mares…

(...)

 Você descia as escadas com cuidado. A madeira rangia a cada passo dado. Você nunca conseguiu se esgueirar quando seus pais estavam em casa, a audição deles era excelente. Bom, nunca conseguiu em dias normais ao menos. O vento uivava do lado de fora (você não entendeu verdadeiramente essa expressão até parar para escutá-lo), raios fulminavam nos céus em faixas irregulares, um anúncio do som ribombante do trovão que viria logo em seguida.

 Você estava com medo. Tinha a impressão de que a casa poderia ser arrastada pelo vento a qualquer momento, e a história que a Sin contou sobre a forma cônica que as correntes de ar assumiam nas terras distantes do leste não estavam ajudando em nada.

 Você chegou ao fim das escadas e se preparou para virar o corredor, a cozinha era logo ali. Você sentia seu estômago queimar, era irritante, e você sabia que somente comer alguma coisa resolveria isso. E, se não conseguisse beliscar algo escondida, bastaria implorar o suficiente que, quem sabe, seu pai ou sua mãe deixariam você acabar com o pãozinho doce que pegou.

 Você colocou sua cabeça para espiar e...vozes? Haviam pessoas ali. Você ouviu o som de risadas, de conversa alta entre adultos e de uma chaleira em ebulição. Por favor, que não tenham servido os pãezinhos para as visitas.

 Você se aproxima, reunindo sua coragem para dizer oi e para pedir um pãozinho. Seu pai não vai querer negar algo para você na frente dos outros...bom, se não tiverem acabado, talvez as visitas sejam bem-vindas no final das contas. Você espia um pouco as pessoas ali. Há três visitantes. Você nota o azul e o branco de suas roupas. Agentes da Igreja?

 - Ai, ai, crianças... - disse uma mulher. Você não se lembra de nada mais sobre ela, além do fato de que era uma mulher alta e esguia. E...estavam falando de você? Você se lembra de ter ficado emburrada, se perguntando qual história vergonhosa seus pais contaram.

 - Pois é - disse outra. Você só se lembra dela ser baixinha, e talvez redonda como uma bolinha, apesar de não ter mais certeza. - Houve uma vez que eu acabei sendo incubida de guardar uma garota lá perto de Rivinia.

 - Mas onde fica isso? - interrompeu brevemente sua mãe.

 - Acho que fica lá para os lados de Laquarza, não? - sugeriu seu pai.

 - Não, não - corrigiu ela. - Essa fica mais perto de Hoghmund, sabe? - seus pais assentiram. - Então, é o seguinte, o importante de ter em mente é que lá é bem abafado, sabe? Por isso, o pessoal que tem dinheiro sobrando começou a ter o costume de construir piscinas, e eles usam a água de um dos grandes lagos da região, um chamado Magna, para encher elas. Eu tive que ficar guardando por um tempo a filha de um superior.

 - Qual? - perguntou, dessa vez era a voz de um homem. Definitivamente não era a do seu pai, essa voz era...diferente

 - O Ran - disse a baixinha.

 Tanto a mulher alta quanto o homem grunhiram.

 - Esse aí - disse o homem novamente. - Nem conto para vocês.

 - Tudo bem, tudo bem, cala a boca - disse a baixinha. - Mas assim, o Ran é alto demais, e ele adora dar uns mergulhos fundos, então a piscina dele era extra profunda em comparação a outras. Tudo bem, aí eu cheguei lá com a filha dele, um calor que só pelos deuses, e ela diz que vai mergulhar. Eu olho para ela e pergunto: “Mas você sabe nadar, não é?”, porque é lógico que não é a primeira vez que algo assim aconteceu enquanto eu estava lá. Ela disse que sim, eu perguntei se tinha certeza, e ela mostrou a língua. Dei as costas um segundo só, ela sabia nadar, né? - ela disse isso com um tom forte de ironia que nem mesmo uma criança não conseguiria perceber. - E o que tem ali? Ela balançando os braços assim e falando…

 A agente da igreja imitou alguém se afogando enquanto tentava nadar. Você não via graça naquilo, simplesmente não conseguia rir sabendo que alguém quase morreu. Mas adultos eram estranhos. A risada estrondosa dos cinco preencheu a cozinha. Não é o momento certo, você pensou. Seu pai iria fazer alguma graça com você na frente deles.

 - Ai, ai - disse o homem. - Bom, não tem muito a ver com o assunto, mas não agradecemos por terem nos acolhido ainda. Nos desculpe pelo incômodo - ele disse aquilo de forma tão educada, como se não tivesse rido de história de alguém se afogando um minuto atrás.

 Sua mãe abanou as mãos, ignorando a polidez.

 - Que isso - disse ela -, não há problema algum. Vocês já ficam aí viajando de um lado para o outro nos protegendo das crias, ceder nossa casa por um momento não custa nada.

 - Ainda bem - disse a mulher alta. - Vocês viram o preço daquela hospedaria? 

 - Normal, aquele lá é um que não se segura na hora de colocar um preço alto nas coisas - disse seu pai. Ele parou por um momento, só se dando conta de algo agora. - Entretanto...temo que terão que um de vocês terá que dormir no sofá, tudo bem? Nossa hóspede ainda não foi embora - explicou.

 - Ah, vocês alugam aqui então? - perguntou a baixinha.

 - Não, não - explicou sua mãe. - É que ela é uma garota que deu as caras por aqui no começo do inverno. Ela não tinha como pagar pelo hotel, então concordamos deixá-la aqui desde que ajudasse com algumas coisas. As crianças adoram ela, conta cada história que eu nem sei de onde ela tira tanta criatividade!

 Você se lembra. Está tão claro na sua mente.

 O rosto dele. Você não se lembra dos detalhes. Não sabe a cor dos olhos, ou como era seu lábio ou suas sobrancelhas. Mas você de alguma forma ainda se lembra. Do quão sombrio ele momentaneamente ficou.

 (Ele era como você?)

 - Apareceu aqui no fim do inverno? - perguntou.

 - Sim, sim - prosseguiu sua mãe. - Ela é uma dessas artistas itinerantes, é assim que se chamam, não é? Para o caso dela eu não sei, mas ela é artista, sai por aí pintando todo tipo de paisagem que vê. Inclusive ela foi hoje atrás de umas plantas para fazer alguns pigmentos e...ai meu deus! - exclamou sua mãe. - Ela tá pegando chuva! 

 - Não tem problema, ela é esperta, deve ter arranjado algum lugar para se esconder - disse seu pai, dando de ombros. - Qualquer coisa é só fazer sua sopa, eu queria comer isso hoje de toda forma.

 Os olhos do Inquisidor afundaram.

 - Ei - disse a mulher alta. - Não começa - advertiu, séria.

 A pressão no ar da cozinha ficou mais pesado. Algo estava prestes a explodir, mesmo você conseguia notar isso. Era a sensação que sempre tinha um pouco antes de sua mãe e seu pai brigarem.

 - É - disse a baixinha. - Não é a sua paranoia que vai fazer a gente voltar pra essa chuva.

 - Mas vocês sabem quando foi a última aparição, não sabem?! - ele exclamou, um pouco mais alto do que deveria. Então recuou, sentido-se...culpado? - É muita coincidência.

 - Tudo bem, tudo bem, vamos fazer o seguinte - sugeriu a mulher alta. - Quando ela voltar, a gente faz umas perguntas para ela e, se houver alguma suspeita, nós tomamos as medidas apropriadas, tá legal?

 O homem olhou ao redor e, lentamente, assentiu. Seus pais olharam confusos para os três.

 - O que houve? - perguntou sua mãe. - Algum problema conosco ou…

 - O bonitão aqui - disse a mulher alta, apontando para seu companheiro - acha que sua hóspede é uma bruxa.

 - Bobagem! - disse seu pai. - Ela já está aqui tem uns bons cinco meses, só ajudou a gente, não tem jeito dela ser uma. É uma garota decente. Quando forem perguntar vocês vão ver.

 - É, espero… - disse o homem novamente.

 Eles continuaram conversando, mas você não ouviu o restante da conversa. Você voltou para seu quarto e colocou sua roupa de viagem. Você sempre vestia ela quando por acaso tinha que ir com seu pai até outra cidade. “Essa aí aguenta de tudo”, garantiu seu pai quando lhe deu na primeira vez que saíram. Demorou, mas você conseguiu achar.

 Então você olhou para sua cama. Você se lembrou de uma história da Sin, de como ela fez para conseguir fugir de uma mansão cheia de gente maluca. Ela havia colocado o travesseiro na cama, em cima de outro, e posto o cobertor por cima. Você fez o mesmo.

 Descendo as escadas devagar você foi até a porta. A cozinha estava longe, se fosse rápida o suficiente, seus pais não conseguiriam te notar saindo, conseguiriam? Bom, mesmo se conseguissem, não importava, você tinha que avisar a Sin que tinha gente ruim lá em casa. Você sempre ouviu que tinha que respeitar os Agentes da Igreja, e sempre que você fazia algo errado, sua mãe lhe falava de como eles vinham durante a noite, e sem que os pais pudessem fazer nada, levavam crianças para calabouços para serem castigadas por serem malcriadas.

 A Sin já vai embora!, você pensou. Por que querem tirar ela de mim mais cedo? E o que vão fazer com ela no calabouço? (Você não tinha ideia do que era um calabouço, só sabia que era algo ruim).

 E você correu pela chuva da cidade. Você sabia onde ela havia ido. Você contou até algo que não deveria contar. O segredo mais secreto de todas as crianças da cidade (mesmo percebendo depois que não iria servir de nada para ela). Mas valia a pena, afinal ela ia chegar onde queria mais cedo, e por consequência iria voltar para a casa mais cedo.

 A sua bota estava afundando na lama. Uma, duas, três, dez, cem vezes. Toda vez que você dava um passo, ela afundava, e então enchia-se de lama. Você nunca entendeu como seu pai fazia para amarrá-la, ele tinha que fazer isso por você. Quando tinha calma, não conseguia. Agora com pressa? Menos ainda. Você só enrolou o cordão de um jeito ineficaz e enfiou o restante lá dentro. A bota iria ficar imunda, e você provavelmente teria que ficar de castigo ou ajudar eles até conseguir pagar uma nova.

 Você continuou correndo. O dia estava frio em comparação a outros daquela semana, era lógico que algum dia ainda iria fazer um pouco de frio, o inverno não havia ido embora completamente, era só primavera. As gotas frias se infiltravam por seu casaco, molhavam seu cabelo. O vento chicoteava suas bochechas e jogava água em seu rosto, forçando-a a inutilmente enxugar os olhos.. Pingos desciam por suas costas, que já estavam ficando úmidas, e a faziam tremer.

 Você prosseguiu. Você passou pelo hotel que falaram, o dono dele era o Ham. Seu pai e ele nunca se deram bem. Passou pela ferraria, onde os pais do Elivento trabalhavam. Passou por outra padaria, passou por uma loja de flores. Passou por uma estalagem e ouviu o som das conversas.

 Passou por um beco e teve a impressão de ter visto a Nemi nele, você parou por um momento e voltou alguns passos para confirmar. Era a desculpa perfeita para recuperar o fôlego e...não. Ela não estava lá. Por que ela estaria lá?

 E você voltou a correr. Você...teria que procurar a Sin, lá fora. Burra, burra, burra, censurou-se. Você deveria ter pensado nisso antes de sair correndo que nem uma doida atrás dela! Mas...não tinha volta, tinha? Você precisava voltar com a Sin, ela iria lhe defender, se voltasse agora seus pais não iriam lhe perdoar, independente da desculpa que desse.

 E você correu. E por fim, chegou à muralha.

 A Rachadura

 Você nunca soube o que causou aquilo. Ninguém sequer sabia da existência daquilo. Quase ninguém. As crianças, seus amigos, sabiam. A Nemi foi a primeira a descobrir. Estava bem escondida atrás de uma casa construída quase que colada junto aos muros. Não era algo significativo (seu conceito de “dano significativo em muros construídos para proteger pessoas inocentes de monstros” era imensamente diferente na época), mas uma criança conseguia passar por ali.

 Você se espremeu. A pedra cheirava mal, e te arranhava. Pó branco solto por ela enquanto você se arrastava era lavado pela chuva imediatamente. Você se espremeu. Espremeu, espremeu, espremeu. Quando sua mãe disse no seu aniversário que você cresceu, ela realmente quis dizer aquilo. Estava ficando difícil passar por ali. Depois de um tempo você não conseguiria mais. Você encolheu a barriga, e se forçou.

 Uma vez...não conseguiu. Uma segunda...não. Na...terceira…! 

 Você caiu do lado de fora dos muros.

 Guardas patrulhavam ali, mesmo em meio a chuva, eles continuavam andando de um lado para o outro, atentos a qualquer criatura, qualquer espírito, qualquer ladrão que ousasse se aproximar. Você correu, rapidamente se escondendo atrás de uma das árvores enquanto um deles caminhava. Parecia exausto... 

 Você voltou seu olhar para frente...e, sendo idiota do jeito que era, seguiu…

 A floresta era densa, e escura, e principalmente assustadora. Os cogumelos que brilhavam no escuro só costumavam aparecer durante o outono e o inverno, a Nemi não estava com você, ela era uma das que melhor conseguia navegar em um ambiente sem luz. Você não tinha uma lanterna (sua mãe achava perigoso demais te deixar usar uma), você não tinha nada…

 Um trovão ribombou no céu. Era como o primeiro adulto estúpido a rir do que você estava fazendo. E...espera aí, você não deveria estar debaixo de uma árvore no meio da chuva! Você apressou o passo, esperando conseguir fugir dos raios que possivelmente iriam cair. 

 E...você congelou. E se escondeu.

 Você se abaixou atrás de um tronco de árvore e abraçou os joelhos. Seus dentes estavam batendo, seu corpo estava tremendo. Você forçou ambos a parar, deixou toda a água da chuva e toda a lama se solidificarem e te transformarem em uma perfeita estátua de gelo.

 Foi a primeira vez na vida que você viu um Carvalho

 Você só havia visto ilustrações dele até aquele momento, e assim que viu sua sombra movimentando-se, você entendeu que elas não eram nem um pouco precisas. Elas normalmente retratavam eles como tocos de árvores, com raízes formando as mãos e pés, e buracos que formavam a imagem de um rosto.

 Aquilo era diferente ao ponto da irreconhecibilidade. Você se questionou, anos depois, se as pessoas que escreviam aquelas coisas para as creches sequer viram um antes de regurgitarem a informação nos livros.

 Esqueletos de dezenas de animais formavam seu corpo, você só conseguiu distinguir a cabeça de cervo. A caixa toráxica era formada por dezenas de costelas (ou galhos que se pareciam com costelas) de tamanhos diferentes e desiguais. Centenas de pequenos ossos formavam uma corrente pútrida e suja de terra, e lama, e folhas e galhos que dava uma ideia vaga de uma mão. E tinha os olhos…

 Eles brilhavam.

 Vez ou outra os adultos contavam sobre os Deuses Antigos. Como foram destruídos, como eles odeiam a humanidade. Verdadeiramente odeiam, além de qualquer métrica, além de qualquer maldição rogada no último suspiro de uma pessoa (hoje você entende uma fração desse ódio). Os olhos brilhavam com isso.

 O crânio virou-se vagarosamente em sua direção, notando sua existência por um breve momento. E...

 Desabou…

 Você olhou, confusa. Não estava se mexendo mais. Estava...morto? Você se levantou e caminhou lentamente ao redor da árvore. Sua respiração era menos que a sugestão de um sussurro, e então disparou. 

 Você ouviu outras coisas silvarem para você enquanto corria sem parar. Teias de aranha se prenderam em seu rosto enquanto corria sem parar. Sombras moviam-se ao seu redor, olhos encaravam sua própria essência, julgando se era ou não digna de deixar-se ir para o Além assim que partisse. O trovão riu novamente. “Lá vai a garota idiota, que quase morreu querendo salvar a amiga, que iria embora de qualquer forma, mesmo sem a igreja”

 E então você notou. O brilho. Um caminho brilhante. Um caminho de joias.

 Sua respiração ainda estava irregular. Você parou, e escondeu-se novamente. Você precisava se acalmar, você precisava de um plano.

 O caminho de joias.

 Não! Não podia confiar em algo assim, era justamente dessa forma que uma pessoa sumia nas histórias.

 Mas a Sin.

 A Sin nunca faria algo assim! A Sin era esperta, e pensava rápido, e saía de todo tipo de situação ruim! Ela não precisaria seguir algo óbvio como um caminho de joias para fugir de uma floresta cheia de animais selvagens e crias dos deuses antigos.

 Mas você não é a Sin. Você é você. E se não agir logo, ela vai ter que partir mais cedo. Você precisa ajudar ela, mesmo que signifique seguir um caminho de joias que te levará para outro lugar…

 Você era...tão inútil assim? Era isso o que ela queria dizer naquele dia? Então você...você começou a chorar.

 Suas lágrimas escorriam pelo seu rosto. Elas eram quentes em comparação a água da chuva que antes cobria sua face. Elas desciam sem parar, mesmo você sabendo que não deveria estar chorando em uma situação assim.

 Por que tive que me meter em algo assim?, você perguntou-se. Para salvar alguém que não precisava ser salvo? A Sin era sua heroína. Ela viajou por todos os nove cantos das civilizações das rosas. Ela não leu sobre elas, ela foi lá e viu tudo com os próprios olhos. Ela experienciou tudo o que o mundo tinha a oferecer, como você de todas as pessoas possivelmente poderia salvá-la? E salvá-la do que? Uma baixinha redonda, uma mulher alta, e um homem? Ela sobreviveu a um Vocan, ela era incrível, ela não precisava de você…

 Mas você queria ajudar, mesmo que um pouco. Você precisava tornar a partida o mais calma possível, assim ela teria uma razão para voltar ali. A vida dela parecia tão caótica, quem sabe um lugar calmo não ajudaria, não é?

 Você enxugou as lágrimas, e se levantou devagar. Você olhou ao redor, seus olhos se acostumando à escuridão. Os diferentes tons de preto e cinza compunham o mundo ao seu redor. Nenhum deles se movia, estava seguro. Você seguiu floresta adentro, sempre caminhando próxima a trilha de joias.

 Se você realmente fosse parar em outro plano de existência (você ainda não conhecia esse termo na época), como ele seria? Ele seria uma terra de sóis azuis e casas de esmeralda, onde você seria uma heroína que salvaria a todos de um Vocan feito de obsidiana? Você espera que sim, nenhuma das suas histórias realmente se aproximou das coisas que a Sin viveu, quem sabe isso poderia impressioná-la, convencê-la de que você é forte o bastante para viajar com ela.

 A trilha de joias seguia, serpenteando entre árvores e…

 Volte, volte, volte!

 Você para...o que é...aquilo? A árvore estava queimada? Não...corroída, isso, essa era a palavra. Marcas profundas estavam espalhadas por ali também. Marcas de perfuração, como se um guarda raivoso houvesse cravado sua lança contra a madeira repetidas vezes. E havia cheiro de...algo no ar, você não conseguia identificar o que, a chuva havia lavado o que quer que fosse, o odor de terra úmida erguia-se no ar juntamente com aquilo, mas você tinha certeza de ter farejado algo. 

 Você recuou.

 A Sin pode estar em perigo.

 A Sin nunca está em perigo.

 O que fazer? Você...você...você seguiu a trilha de joias. Elas prosseguiam, seguindo uma depressão e aprofundando-se na mata. Você engoliu a seco, e prosseguiu. Suas pernas tremiam, era lógico que tremiam. Você desceu com cuidado. Não queria, mas sujou suas mãos de lama para se apoiar mais adequadamente e ter certeza que não escorregaria, bateria a cabeça e perderia a consciência. 

 Era como a história do caminho estrelado que você leu uma vez. Uma criança perdeu-se na floresta, e seguiu por um caminho de estrelas que levava até o leito do lago próximo ao vilarejo onde vivia. Você não conseguia se lembrar do resto.

 Estava escuro demais e...um raio percorreu as nuvens. A luz do raio a iluminou? Você não havia olhado para cima, estava preocupada demais em não tropeçar, mas a vegetação estava abrindo, era possível enxergar trechos do céu. Será que haveria uma clareira ali adiante?

 Você continuou seguindo o caminho de joias, pingos de chuva estavam começando a cair com mais frequência em você, e não era possível saber se isso era algo bom ou ruim. Tons singelos de verde e marrom surgiam, conforme a precária luz se infiltrava. Eram tão efêmeros, quase como se não existissem, antes de serem engolfados novamente pela escuridão quase sufocante e…luz! Uma clareira!

 Havia...algo na clareira? Você notou a silhueta de alguém se erguendo sob a chuva. As roupas grudadas na pele. Era alta (quase todo mundo era alto para você), o cabelo era curto.

 - Sin? - você sussurrou, enquanto se aproximava. Então sua perna tocou algo.

 Você baixou os olhos. Era uma bolsa, e...a trilha de pedras preciosas chegava ao fim. E no fim dela, estava aquilo. Você notou primeiro as galhadas, longas e de um branco-marfim tão brilhante que mesmo com a pouca luz era possível vê-las claramente, com exceção das pontas, manchadas por algo que você não conseguia ver o que é. Cristais pendiam de vários pontos, seguradas por pequenas correntes constituídas por fios prateados cintilantes. Rubis, safiras, esmeraldas, diamantes, pérolas, todas balançavam delicadamente sob o vento que soprava.

 Então você viu a cabeça

 Ela lembrava vagamente a de um cervo, como se alguém a fizesse baseado em uma descrição que recebera. Os pelos cor de bronze eram inexplicavelmente macios, você conseguia sentir isso, mesmo sem tocá-los. E os olhos azuis, eram tão puros, tão intensos, como a água límpida do lago refletindo um céu sem nuvens. Estavam arregalados.

 Você voltou a olhar para a figura na clareira. Era humana, era uma mulher, mas não era a Sin. Buracos eram claramente vistos por todo seu corpo. A água da chuva escorria, descia pela cabeça, e entrava dentro de um no pescoço. E outro no braço. E oito na barriga. E três na coxa. A figura pousava um pé triunfante sob o corpo de um grande animal morto, sem sua cabeça. Os pelos manchados pela mistura do próprio sangue com o sangue daquela mulher e por...tinta? Gotas pretas, verde-escuras e cinzas também cobriam o corpo da criatura em lugares específicos. 

 Você se concentrou e percebeu, os buracos, os ferimentos, sumiam. A carne vermelha e sangrenta estendia-se sobrenaturalmente. Ossos recolocavam-se em seu devido lugar com estalos altos, músculos estendiam-se, unindo-se novamente, veias e artérias que jorravam sangue criavam pequenos filamentos se juntarem novamente. Uma suave camada de pele voltava a cobrir os ferimentos. Como se eles nunca estivessem ali.

 - Anda logo - a mulher vociferou. Você nunca havia ouvido nada igual. Era raiva, decepção, angústia, tudo sublimado no que deveria ser uma voz humana. - Eu já perdi a conta de quantas vezes vocês já me enganaram.

 - Senhora — disse uma voz, cujo tom recusava-se a mudar. Não, mais adequado seria dizer que nunca houve um. - Sinto que essa criatura não tenha sido útil para você - prosseguiu. A voz soava mucosa (você nunca encontrou uma descrição melhor que essa), como se alguém tentasse falar debaixo de água enlameada.

 Você deu um passo a frente, tentando enxergar mais, e viu a figura. Nas sombras de uma árvore, mas estava lá. Ela era escura, pegajosa, e úmida. Sua pele...não, ela não tinha pele, sua forma era somente uma corrente incessante de tinta que assumia uma forma parecida com a de uma pessoa. Parecida. Ela não tinha cabelo, sua cabeça era mais ovalada, e seus braços eram...esquisitos, eles eram molengas e balançavam, não tinham dedos ou sequer mãos, ou dobras, como uma corda grossa (tentáculos, você não tinha ideia do que chamar isso na época).

 Você deu um passo para trás. Você estava em um lugar onde não devia estar, você estava ouvindo uma conversa de adultos que não deveria ouvir e...e…

 A Sin ainda está nessa floresta.

 Sim! É isso! Você precisava achar ela, você precisava falar dela sobre as pessoas na igreja, você precisava falar dela sobre essa mulher na clareira, você precisava cuidar dela. Não, você não iria cuidar dela, ela iria cuidar de você. Ela iria te proteger dessa mulher, ela te protegeria dos outros Carvalhos. 

 Você se preparou para virar, para correr. 

 Algo te segurou.

 Você abriu a boca para gritar. Algo tapou sua boca.

 Você sentiu o fim se aproximar. Talvez não tenha sido a primeira vez, mas certamente foi a mais intensa até então. A realidade de que talvez você fecharia os olhos, e por toda a eternidade só teria uma escuridão muito mais aguda e intensa do que as de suas próprias pálpebras para encarar.

 Seus olhos lacrimejaram. Você se virou e viu…

 A Velha Helveltic? 

 O que ela fazia ali. Por que ela estava te segurando?

 Ela era uma bruxa? (Não, não era, idiota).

 Ela iria te entregar para a mulher na clareira? (Não, não ia, idiota).

 Ela iria te roubar dos seus pais para sempre e te levar para o Outro Lado? (IDIOTA, IDIOTA, IDIOTA).

 Ela levou uma das mãos aos lábios, e fez sinal de silêncio. Isso não foi suficiente para fazer você parar de se debater. As mãos dela continuavam firmes, rígidas, envolviam seus braços e tapavam sua boca como se fossem feitos de pedra.

 - Já fazem oitocentos anos desde que invoquei vocês pela primeira vez. OITOCENTOS - ela gritou, e a clareira tremeu. - E até hoje vocês não foram úteis o suficiente sequer para identificar a merda de um único traço da magia antiga.

 - Sinto muitíssimo, senhora - disse a voz da criatura, ainda monótona. - Quando nos enviou para o Norte, encontramos vestígios de uma ruína, estimamos que deveria ter sido feita, no mínimo, poucos anos após ‘A Quebra. Lá havia um mapa rudimentar dessa região, e nele o símbolo desta criatura. Ela possui uma semelhança impressionante com as montarias utilizadas por Herla em seus mitos, então achamos prudente investigar. Então, achamos nessa região os mitos d’O Guard-

 A mulher moveu um braço, fazendo surgir aquilo. Um enorme pincel, grande o suficiente para ser um cajado. A madeira do cabo era escura e brilhante. A virola rescindida a um tom prateado, ou branco, como marfim ou porcelana, parecia líquido por vezes. O pêlo era perfeitamente branco, como se houvessem fiado uma nuvem para fazê-lo, porém sua ponta estava suja, por vermelho...não, verde...não, amarelo. As cores mudavam incessantemente, nunca era somente uma. Eram um negro tão escuro e profundo quanto o céu noturno, ou um rosa tão brilhante que faziam os olhos arderem, ou um dourado brilhante como estrelas.

 Ela balançou o pincel. Em um instante o lacaio estava lá, em outro, metade dele havia desaparecido. Vagarosamente, caminhou até ele. Segurando-o então pela garganta (ele sequer tinha uma garganta? E, se era metade polvo, será que daria para chamar seja lá o que usava para respirar disso?), disse:

 - Eu não me importo com suas desculpas, eu me importo com resultados! Eu não quero saber em quantos mitos essa merda de animal apareceu, ele não pode ser considerado como sendo da Era Antiga há milênios! - ela então fechou sua mão, fazendo o pescoço e a cabeça do lacaio explodissem. Tinta azul-escura manchou seu rosto, somente para ser lavada pela chuva. - Criatura imprestável. Na próxima eu me livro de você e crio outro a partir dos seus restos. Entendido?

 O que restou do corpo do lacaio debateu-se. Assim como sua mestra, ele lentamente voltou. A parte do torso apagada lentamente se reconstituía, sua cabeça começava o pescoço voltava a surgir, então a cabeça, a partir de um pequeno broto, também era refeita.

 - Sim, senhora - respondeu.

 Não. Não dava mais. Aquela coisa...ela...a....

 Você se debateu. Se debateu mais do que deveria. As mãos da senhora Helveltic eram fortes, mas ela ainda era antiga. Antiga demais para o bem das duas. Você bateu seus pés, e um galho estalou. Não deveria ter estalado tão alto, estava úmido, úmido demais, mas ele estalou.

 O lacaio voltou o olhar em sua direção por um segundo, e então desapareceu. A mulher na clareira lentamente voltou sua atenção para as duas. Um mundo de terror caiu sobre você. Você notou o quão insignificante era, o quão frágil era, o quão patética era. Sua respiração ficou ainda mais irregular, como se estivesse afogando em um poço sem fundo de tinta escura.

 A Velha Helveltic soltou um pouco da força que fazia sobre você. Seus olhos se encontraram por um breve momento. Ela estava com medo (medo por você).

 - Fuja - disse, com a voz cansada.

 Você não conseguiu processar o que aconteceu, não de imediato ao menos. Você sentiu algo quente tocar seu rosto, algo líquido, denso. Essa sensação desaparecia conforme as gotas d’água que penetravam as folhas das árvores a lavavam. Você sentiu um cheiro ferroso distante, perdido sob as dezenas de odores da floresta. Você olhou para a Velha Helveltic e…

 A cabeça...onde...onde estava?

 O corpo da Velha Helveltic cambaleou por um momento, e desabou. Seu pescoço era uma fonte interminável de sangue, lançando jatos e esguichos de forma ritmada. O tempo desacelerou, em fato, se tornou irrelevante, conforme você assistia as roupas lilases da anciã da cidade se tornarem marrons conforme onde o líquido de seu próprio corpo as tocava.

 - Você não devia estar aqui - disse uma voz.

 A mão da mulher na clareira tocou seu ombro. Seus olhos lentamente deslizaram até ela. Era uma mão normal, a de um humano. Cheia de calos em decorrência de anos (incontáveis anos) de pintura, mas não havia nada demais nela. Mesmo assim, aquela mão normal, você sentia envolvê-la por completo.

 - Jus — disse a mulher na clareira, forçando-te a encará-la. Os olhos dela eram distantes e assustadoramente vazios - O que você está fazendo aqui, Jus? 

 Você tremia. Você não notou isso inicialmente, assim como não notou as lágrimas descendo por seu rosto, ou o nariz escorrendo, ou como simplesmente não conseguia mais respirar, ou…

 - Aqui é perigoso, eu não te trouxe por um motivo, sabia? Você não deveria ter vindo - prosseguiu a mulher na clareira. - Como eu possivelmente vou explicar para seus pais o que você veio fazer aqui com um tempo desses?

Sin, me ajuda Sin! Por favor, me ajuda, me ajuda, me ajuda…

 - Me...ajuda...Sin... - você sussurrou. Ainda não tinha percebido que estava pensando em voz alta.

 A mulher na clareira te olhou confusa por um singelo instante. Então, realização veio a sua mente, e ela sorriu.

 - Não se preocupe, Justine - disse a Sin. Não, era a mulher na clareira, era… - Eu vou te ajudar, se acalme, tudo bem? - prosseguiu, enxugando suas lágrimas e o sangue com cuidado.

 Você balbuciou algo sem sentido.

 - Tá tudo bem, tudo vai ficar bem… - disse, afagando seus cabelos. - Escute, eu vou precisar que faça algo para mim, tudo bem? - ela disse, amável. Não. Não, não, não, não.

 Você fez algo com sua cabeça, não tem certeza do que foi.

 - Corra - ela disse, simplesmente.

 Você balbuciou alguma outra coisa.

 - Corra - reafirmou ela. - Simplesmente corra. Vá para o mais longe dessa cidade possível. Corra sem parar. Não precisa se preocupar com os monstros dessa floresta, tudo bem? Afinal, eu exterminei todos para atrair a ira dessa criatura inútil.

 Você se afastou alguns passos. Seu corpo recusava a te obedecer. Sua voz não era mais sua, seus músculos não respondiam, seus…

 - O...o...que… - O que você fez? O que isso significa? O que vai fazer?, você tentou perguntar.

 A pessoa sorriu.

 - Não tenha medo, confie em mim - te assegurou. - Sabe, eu tinha um objetivo inicial quando vim para cá, mas não consegui cumpri-lo. Então, amenos voconseguir um secundário. Por isso, corra.

 - M…

 - CORRA.

  Seu corpo não era mais seu, e você correu.

(...)

 Suas pernas doíam. 

 Seus ossos eram gelo; seus músculos, neve; sua pele, geada. Sua roupa estava grudada junto a pele. A lama encharcava suas botas, arruinando suas meias e o interior aquecido que provinham.

 Você não conseguia sentir seus pés.

 Seus cabelos insistiam em bloquear sua visão. Era irritante, além da conta.

 Você continuou caminhando. Correr já não era mais possível, você nunca se sentiu assim. Suas pernas podiam partir-se a qualquer momento, seus braços estavam doloridos, sua respiração irregular não ajudava em nada, o queixo batendo em decorrência da chuva fina e fria muito menos.

 Mas você...você recebeu uma ordem...da Sin...não, foi da...da…

 Um buraco na estrada era mais fundo do que você esperava. Você tropeçou, cambaleou por um longo momento, abanando os braços, forçando-se a ficar de pé, mas não dava mais. Você caiu no chão. A lama fria sujou seu rosto e casaco, tudo ficou escuro por um singelo momento. O som da chuva preencheu tudo o que havia, era calmo, perfeitamente calmo.

 Até um trovão ribombar no céu.

 Você havia se esquecido dele, você detestava dormir quando uma noite de chuva por acaso prometia trovoadas incessantes. Mas suas pálpebras, estavam tão pesadas...não, o trovão não importava tanto assim, você só iria…

 Um raio caiu, em algum lugar. Você não sabe se foi perto ou longe, não tem mais certeza se realmente sentiu o ar vibrar ao seu redor e seus dedos formigarem com a energia liberada. Mas você tem certeza do som, você ouviu-o gritar. 

 - Ne...mi… - você sussurrou com esforço tremendo. Sua voz estava rouca, sua garganta ardia, era difícil respirar pela boca, era difícil falar, e pelos próximos dias você descobriria que seria difícil comer e beber.

 Você se levantou. Seus ossos de vidro se partindo e forçadamente sendo postos de volta no lugar, seus músculos se arrebentando e religando-se. Você se virou, e notou o quão pouco tinha se distanciado da cidade. Ainda era possível ver ela, de um modo ou de outro. Os muros ainda podiam, com muito esforço, serem delineados. As construções mais altas também. E, mesmo com a chuva, a fumaça escura era notável.

 Serpenteando em direção ao céu, pinceladas negras e cinzentas marcando o início de um quadro. Um quadro como...como o que a Sin pintou daquela vez. Um quadro que você foi teimosa e insistiu em ver. As coisas poderiam ser diferentes, e você sabe disso. Se não tivesse voltado, você poderia ter vivido algum destino normal. Reaprender a fazer pães, montar uma padaria, se casar com alguma outra moça. Você nunca teria que carregar o fardo que carrega, mas…

 - Nemi… - você repetiu.

 Você não tinha falado com ela ainda, não tinha se desculpado pelo o que fez, pelo choro desnecessário. Ela te mostrou tantas coisas. Como chegar bem perto das borboletas sem assustar elas, como nadar, como subir em uma árvore, como se esconder. Ela te mostrou tantas coisas…

 E você não deu nem um rolinho de canela para ela (não, você deu. Não deu. Deu. Não deu). Você precisava se desculpar com ela. Mas…

 A Sin me mandou correr.

 Aquela não era a Sin.

 Voltar pode ser perigoso.

 Você viu um Carvalho! Tem algo mais perigoso que isso?

 Eu preciso avisar alguém, tem algo estranho acontecendo! O Guardião...ele estava...estava…

 Sim, você precisava avisar a Nemi.

E então você cruzou o Ponto Sem Retorno.

(...)

 As sombras eram altas. Tão altas quanto as árvores, mas ao observar um salgueiro, você tinha certeza (na maior parte do tempo) que ele permaneceria onde estava. As sombras não.

 Elas cheiravam a sal (maresia), e papel (celulose), e um sabor azedo de madeira. Elas se moviam lentamente, como se não tivessem ossos. Elas jogavam-se em cima de casas e arrancavam seus telhados, balançavam o que tinham no lugar dos braços e derrubavam muros. Elas não eram sólidas, a torrente incessante de tinta que formava seus corpos era manchava a paisagem a cada movimento que realizavam, formando uma imagem cada vez mais grotesca conforme a tinta escura se juntava ao chão dos corpos pisoteados e esmagados na rua.

 Você se escondeu. Lágrimas escorriam de seu rosto, você ousou colocar a cabeça para fora, testar sua sorte. Ainda era a entrada da cidade, ainda tinha muito caminho até encontrar a Nemi. Mas, onde ela estaria?

 Você percorreu um número rápido de lugares que suspeitava onde ela poderia se encontrar. Perto da sua casa? Não, seus pais não gostavam dela, além do mais te matariam por você ter destruído as botas que te deram. Loja do ferreiro? Não, a fuligem que saía de lá a sujaria ainda mais que o normal. Estalagem? Não, nada de algo para afastar os hóspedes. Então sobrava a padaria.

 Você tampou a boca, comprimindo um grito além do que era humanamente possível, conforme uma sombra se atirava sobre uma secção das muralhas. Blocos maciços de rocha tombavam, juntando-se ao coro da chuva e das trovoadas.

 Você aproveitou esse momento e correu. Não foi uma distância particularmente longa, mas foi algo, três ou quatro casas. Você se escondeu novamente, dessa vez sob os escombros do que era (ou melhor, costumava ser) a moradia de um dos guardas. Você o cumprimentou algumas vezes quando passava por perto junto a seu pai.

 Foi por pouco. Uma das sombras ergueu uma das cabeças ovaladas, tentando enxergar algo em sua direção. Você se concentrou, tentou meramente não existir por aqueles eternos dez segundos, conforme a visão abissal da criatura varria a destruição causada por ela e seus companheiros. E então, se virou, caminhando novamente, buscando alguma outra coisa.

 Você se permitiu respirar novamente, e observou o ambiente ao redor. A sombra ainda estava ocupada em lidar com a muralha. Ela não era tão inteligente assim. A cada secção destruída, blocos desabavam em cima dela própria, tendo que vagarosamente levantar-se para continuar o trabalho.

 Você não se preocupou com esse detalhe, só se preocupou com o fato de que ainda estava ocupada. E correu mais. Virou uma esquina e conseguiu, por sorte, correr por um quarteirão inteiro, ininterrupta.

 O caminho de corpos era nauseante, pernas viradas em ângulos impossíveis, cabeças contorcidas, expressões de agonia, desespero, angústia, nojo. Ossos expostos, membros arrancados, toraxes perfurados, dedos esmagados. Você se forçou a não encará-los. Conforme corria, seu número só aumentava. Espalhados pelas ruas, empalados nos postes, debaixo de escombros.   

 Você não devia encará-los, se o fizesse não conseguiria chegar até a Nemi. 

 Você parou antes de virar uma esquina e jogou-se em um beco, enquanto uma sombra apoiava-se sob uma casa parcialmente destruída. Você conteve um berro quando ouviu o som de madeira e rochas caindo próximas a você, juntamente com um braço e um pequeno cavalo de brinquedo.

 Você respirou fundo, aguardando a sombra afastar-se. E, quando finalmente moveu-se, você seguiu. Você foi para o outro lado da rua, onde algumas casas ainda ofereciam proteção, e preparou-se para esconder-se em um beco outra vez, quando…

 Ali, cabelos. Cabelos ruivos! Não tinha como errar! Você ainda se lembra do quão laranjas eram as mechas dela. Do quão volumosas eram. Independente do momento do ano, elas eram brilhantes, como uma fogueira em uma noite escura. 

 Eles estavam manchados de sangue.

 Escombros de uma casa cobriam seu corpo até a cintura, o braço dela estava em uma posição que não deveria, ela respirava com dificuldade, seus olhos entreabertos mantinham-se abertos por pouco. Mas estava viva. 

 - Nemi! - você disse, indo até ela, ignorando todo o cuidado e precaução que teve até agora. O plano era simples: você iria tirá-la de lá. Ir com ela, se escondendo de casa em casa, até a saída, depois correr até uma outra cidade, buscar ajuda! Talvez a mãe e o pai poderiam levar vocês, eles tinham que estar vivos, eles eram bem resilientes afinal…

 Você ergueu com esforço tremendo um de muitos tijolos que impediam-na de mover-se. A superfície áspera arranhou suas mãos, mas você já teve que fazer coisas piores! Sim! Você só precisava ser rápida, tirar tudo lá de cima, e ir com ela até um beco.

 - J...us… - ela disse, reunindo as últimas forças que tinha. Você não queria aceitar isso, mas mesmo lá, sabia que eram.

 - Nemi… - disse você, fazendo uma pausa após jogar outro tijolo para o lado. - Me desculpa...por sair correndo aquele dia...me...me desculpa… - você disse, olhando-a brevemente nos olhos. - Eu não queria te meter em problemas, de verdade! Me desculpa…

 - J...u...s…

 Você continuou movendo os tijolos. A ponta de um deles era afiada demais, dor se espalhou pela sua mão, o que o fez deixar cair. Ele o fez em seu pé, e mais dor se espalhou. O que era bom! De certa forma, mas era! Você ainda estava sentindo dor, as coisas não estavam tão ruins assim!

 - J...us… - você olhou para a Nemi, que apontava para algo atrás de onde estava. Você não havia notado a sombra avassaladora que erguia-se atrás de você. Ela era gigantesca, ainda maior do que as outras (ou era só impressão sua?).

 Era o fim. Você aceitou isso, conforme ela erguia a coisa que tinha no lugar do braço. Aquilo ia te esmagar, te deixar em um estado tão ruim quanto o de todas as pessoas que você ignorou. Você não ia conseguir salvar a Nemi.

 Ela parou. Tremeu por um momento, e então se desfez. A tinta que formava seu corpo caiu como uma pequena cachoeira, você recuou, o líquido se espalhou pelo chão, te desequilibrou, e a fez cair. Você olhou, além de onde a criatura estava a um momento atrás. Havia uma mulher ali. Ela segurava um pincel enorme, possuía uma cicatriz semelhante a espinhos de rosa ao redor do pescoço, e tinha cabelos curtos e escuros como uvas.

 - Eu mandei você fugir - ela exasperou.

 Você caiu de joelhos no chão, conforme ela se aproximava.

 - Você ter voltado estragou meu objetivo secundário. Que desperdício de tempo foi ter vindo até aqui - desprezo escorria abundantemente de sua voz.

 - S...Sin… - você gaguejou.

 - Aspect — corrigiu ela.

 - Por...por que…?

 Um sorriso de escárnio (ou era vazio, como em seu último encontro com ela?) absoluto surgiu em seu rosto. Ela caminhou até você, afastando o cabelo dos seus olhos, e te encarando novamente. Eram ainda piores do que na floresta.

 - Por que vocês falharam em me dar o que buscava - respondeu.

 - Mas você não é assim! - você protestou. - Você, você, você me ajudou com a abelha! E, e, e, ajudou meu pai, e levou coisas pra padaria, você não é assim! Tem alguma coisa errada Sin! - você estendeu a mão até ela. - Eu posso te ajudar! Eu juro que posso!

 Você estava chorando. Não que você soube exatamente quando começou e quando parou de chorar. A partir do momento que você viu as sombras…, não, quando você viu a anciã da sua cidade perder a cabeça, tudo se tornou simplesmente aterrorizante demais para não fazê-lo.

 Sin se aproximou de você, não tinha ponto enxugar suas lágrimas, estava chovendo de toda forma, mas ela o fez da mesma forma.

 - Era tudo um ato - respondeu, sorrindo. - Um de muitos, e não um particularmente bom. Mas e você, Jus? Vai fazer exatamente o que sobre isso? Vamos, me diga - perguntou.

 - Eu...eu...eu… - mamãe, você pensou, enquanto repetia o pronominal incessantemente. Papai, alguém, qualquer um!, implorou. Sin, volta ao normal, por favor!

 - Diga.

 - Eu…

 - DIGA!

 - Eu vou te matar! - você disse, sem pensar. Quando alguém dizia algo assim, normalmente a pessoa não queria, em fato, matar o sujeito a quem se referiu. Mas…, tinha algo de diferente. Você não sabia o que, mas tinha. Algo borbulhava dentro de você, cada palavra dita por ela alimentava as chamas que aqueciam esse caldeirão.

 - Isso! Muito bem! - disse, contendo uma risada. - Mas, primeiro, por que não tenta sobreviver? - sugeriu. - As crias e outros animais estão assustados pelo o que fiz na floresta, mas eventualmente o cheiro de sangue vai atrair eles. E você não vai conseguir me matar se morrer quando um Leão da Montanha aparecer, vai?

 - Eu…

 - Não me contrarie, Jus - disse ela, firme. - Eu sei do que estou falando. Se…

 Ela parou de falar por um momento. Franzindo o cenho, ela voltou-se para trás.

 E então, o tempo parou.

 As gotas de chuva desaceleraram. Tudo congelou. O momento infantasmal quando os ponteiros do relógio que indicam os segundos estão exatamente no meio de sua trajetória. Logo após, veio a voz. Ela era tudo. Ela era iminência pura, uma promessa de evanescência, de que nada era permanente. Se as estrelas falassem, essa seria sua voz. A voz foi uma das primeiras a dizer algo quando o mundo era jovem, e certamente seria aquela que recitaria sua elegia quando tudo acabasse.

 ASPECT

 - Ai, mas que saco, você de novo? — protestou.

 VENHA — prosseguiu.

 E então, céu e terra momentaneamente se tornaram um. O espaço distorceu-se, rasgou, e chorou, conforme uma abertura brilhante como o Rastro de Ichor surgia.

 VAMOS COMEÇAR. PRECISAMOS DE VOCÊ.

 - Tá legal, tá legal - disse Aspect, virando-se e rumando em direção àquilo (hoje você sabe que é um portal). Deixando para trás toda a destruição tão naturalmente quanto você deixava seus brinquedos para atender a um pedido de seus pais.

 É nesse momento que você suspeita que sua antiga face morreu. Que Justine morreu. Foi nesse momento que a Décima Terceira Serafim surgiu no mundo. Se você tivesse corrido direto para outra cidade, se aquela maldita ruína no norte (que você teve o desprazer de visitar) nunca tivesse sido encontrada, nada mudaria, mas...

 - Eu vou te matar… — você repetiu.

 Ela virou-se, curiosa.

 - Você vai o que? - inquiriu.

 - EU VOU TE MATAR! - berrou.

 Era você, mas também não era. A forma, a intenção do que você disse nesse momento, foram encravadas no seu próprio ser, se misturaram com a própria essência dele. Se o que a mulher da clareira disse quando a viu era algo além de humano, era meramente decepção dada forma, então, mesmo que nesse breve momento, você também já não era humana.

  - EU VOU TE DESTRUIR - prosseguiu. - EU VOU ACABAR COM VOCÊ! COM TODAS QUE NEM VOCÊ! EU VOU DANÇAR NO SEU TÚMULO, EU VOU TE PARTIR AO MEIO, EU VOU FAZER COM QUE SEU CORPO DEIXE DE EXISTIR, ME OUVIU? EU VOU TE MATAR.

 E ela sorriu. Era um sorriso vazio, desesperançoso, distante.

 - Eu realmente espero que consiga.

(...)

 Suas memórias são enevoadas. Você se lembra de que as sombras foram embora, junto com a Aspect. Você se lembra de tirar a Nemi debaixo dos escombros e caminhar com ela nas costas. Você se lembra de apagar em algum momento na estrada, e depois de acordar em um quarto escuro que não havia visto antes. De pessoas te fazendo perguntas, e dando suas condolências sobre a cidade e sobre sua amiga morta.

 O resto não importa.

(...)

 - Entendeu? - digo, com um distante pesar em minha voz. Faço o possível para suprimi-lo. - É por isso que você precisa morrer.

  A garota, lentamente, aquiesce. Bom, isso facilita as coisas.

 Ergo minha mão. Samson, chamo. Uma lâmina negra e grossa, com o fio brilhante como prata, e com três pequenos buracos em sua extremidade, surge em minhas mãos. Era certamente a que eu menos gostava de usar. Os membros da cidade que optaram por não cruzar meu caminho juntam-se para assistir a execução. O silêncio é absolutamente sepulcral. A garota chora, mas mantém-se firme, com o rosto erguido.

 - Precisa que...precisa que eu ajoelhe?

 Suspiro.

 - Não, isso não vai ser necessário.

 Ergo a lâmina de execução, seu metal reflete a imagem distorcida dos moradores e as luzes dos postes.

Sinto muito - digo.

 Um grito estridente soa.

 Acabou.

(...)

 O som distante de um trem que partiu ressoa pela cidade. Droga, dormi demais, penso. Encaro brevemente meu reflexo em uma vitrine qualquer. As olheiras estão notoriamente mais profundas.

 O som não desaparece de minha mente. É temporário, digo a mim mesma. O momento cristalizado da morte da jovem é impermanente, o grito da lâmina é só mais um. Não são únicos, eventualmente eles tornam-se somente parte do coro.

 Mas realmente dá para chamar isso de impermanência?, a voz sussurrante dela questiona.

 Me viro subitamente. Eu a vejo. Próxima a plataforma. Sorrindo. Acenando. Eu pisco com força e…, sim, era engano. Ela não está lá. Mas ela ainda está a solta. E não há escolha senão continuar seguindo o rastro de tinta deixado.

 Caminho calmamente até a estação. Sei que ninguém realmente presta atenção em mim, não há porque fazê-lo. Ninguém realmente sabe, é só um acontecimento em uma cidade pequena que não atrai ninguém em particular. Além disso, é seu trabalho. Mas não ajuda, eu sinto meu peito pesado, lentamente afundando até as profundezas de um oceano escuro, sem luz ou um lugar para seguir, preso por correntes de ferro fundido. E, ao mesmo tempo, vazio, como se não tivesse ali.

 Sinto os olhos reprovadores do meu pai, da mãe, de todos.

 Talvez todos nós devêssemos ser padeiros no fim das contas, penso, mesmo que não faça tanto sentido. Um padeiro não mata uma garota inocente.

 Não, ela era uma bruxa. Você apenas fez o que tinha que fazer, diz alguém. Não consigo ter certeza se esse pensamento é realmente meu. Não ultimamente ao menos.

 - Uma passagem para Nova Laquarza - digo, entregando um marco real para o caixa. - Primeira classe, quero uma cabine particular.

 Ele aquiesce, entregando-me o bilhete após um momento.

 - O trem vai partir às dezoito horas - ele explica.

 - Entendo. Obrigada - digo.

 Aproximadamente oito horas. 

 Deixo a estação e vou até uma padaria próxima, que havia visto no caminho. Sonho Real, dizia a placa pendurada. Toda a madeira fora pintada com um suave tom de azul, e dezenas de delicadas orquídeas descansavam em um balcão acima da porta.

 O sino soou assim que entrei.

 - Pois não - disse uma simpática senhora.

 - Bom dia, eu gostaria de um rolinho de canela.


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Notas finais do capítulo

Obrigado a todos que leram até o fim. Essa é uma short story que fiz para um amigo, situada em um mundo que criou. Acabei decidindo por dividi-la em três partes de forma a evitar um único bloco de texto enorme, deixando a leitura (possivelmente) mais agradável.



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