Trevo de Quatro Patas escrita por Maremaid


Capítulo 6
Cuidado, o calor pode afetar seus pensamentos


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente!
Sextou e TDQP chegou, uhuu!!

Boa leitura ;)



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O final de semana havia finalmente chegado e Nico estava completamente recuperado do resfriado. Então quando Will disse que havia arrumado o “local perfeito” para eles continuarem o adestramento, ele não imaginava que seu vizinho estava se referindo a esse lugar. 

—  Você quer treinar aqui? — Nico franziu as sobrancelhas, observando a longa faixa de areia pela janela do carro. 

 — Sim! Não é um ótimo lugar? — Will parecia radiante, enquanto tirava o cinto de segurança e se preparava para sair do banco do carona. — Esta época do ano é perfeita! Ainda não começou a temporada de verão, então poucas pessoas andam por aqui. Sem falar que esta praia aceita cães. Teremos bastante espaço para treinar e, o melhor de tudo, sem esquilos demoníacos por perto.

— Uhum — murmurou, tentando não deixar transparecer a sua irritação. 

Na verdade, Nico odiava praias. Ele não entendia como as pessoas gostavam tanto de ficar horas torrando naquele sol infernal. Detestava a sensação da areia agarrando nas suas pernas, entrando em todos os lugares possíveis do seu corpo. Sem falar que ele não sabia nadar, então estava fora de cogitação entrar naquela água salgada e gelada.

 Parecia um pouco engraçado Nico odiar tudo que remetesse a calor e morar na ensolarada Califórnia. Mas, bem, ele não tinha culpa que seu pai havia se mudado para lá com os filhos pequenos e nunca mais saído. Obviamente, Nico sempre pensou em se mudar para um lugar mais frio quando ficasse adulto, mas infelizmente não entrou nas suas primeiras opções de universidade. Então achou que seria melhor ficar por lá mesmo perto do pai e das irmãs — mas não na mesma cidade, é claro — do que ter que atravessar o país inteiro de avião só para visitar a família nos feriados. 

Enquanto Will tirava Cérbero da caixa de transporte no banco de trás, Nico inclinou-se para o lado e abriu o porta-luvas para procurar seus óculos de sol, mas não estavam lá. 

Droga! Onde essa porcaria estava quando ele mais precisava? Achou que poderiam ter caído, então vasculhou o chão do carro, passando a mão por baixo dos assentos. 

— Nico! — Will gritou na calçada. — Pegue a minha mochila, por favor!

— Ok! — ele respondeu, desistindo de procurar. Provavelmente havia os deixado no apartamento.

Ele pegou a mochila e saiu do carro, entregando para Will que estava na caçada com o filhote. 

— Valeu! — Will colocou uma das alças no ombro. — Quer protetor solar? Eu tenho aqui. 

— Não precisa, passei antes de sair — respondeu, com as mãos na altura das sobrancelhas para bloquear a luz do sol que pegava bem nos seus olhos. 

Nico podia odiar o calor, mas ele nunca se esquecia de passar protetor solar antes de sair de casa. Havia puxado ao pai e ficava vermelho facilmente caso não tomasse cuidado.

— Ei, você não trouxe seus óculos? 

 — Acho que esqueci em casa — bufou. Se o seu humor já não estava bom antes, agora estava muito pior. 

— Aqui. — Will tirou seus óculos escuros do rosto e estendeu para ele. 

— Mas e você?

— Relaxa, eu tenho isso.  — Will remexeu na sua mochila, tirando um boné de dentro e o colocando na cabeça. Como Nico não fez menção em pegar, ele insistiu: — Sério, pode pegar!  

Nico gostava de usar óculos no estilo aviador, eram clássicos e sempre combinavam com suas roupas pretas. Os óculos de Will não faziam o seu tipo: a armação azul-marinho era quadrada e grande, com lentes espelhadas num tom azul elétrico. Infelizmente, os óculos chamativos eram a sua única opção no momento.

— Hm, certo. Valeu. — Nico enfim pegou os óculos e os colocou no rosto. Abaixou-se para poder ver seu reflexo na janela do carro. Eram um pouco pesados e grandes, mas pelo menos cobriam bem seus olhos. Ao se virar, flagrou Will o encarando. — O que foi? Estou tão estranho assim?

— Claro que não! — ele fez sinal de positivo com a mão livre e sorriu. — Você fica bem de azul. 

— Não precisa mentir...

— Não estou mentindo. Realmente combinam com você. — Ele deu uma piscadinha e então apontou para a praia. — Vamos logo para o treinamento! 

Will não esperou por uma resposta e saiu correndo com Cérbero em direção à areia. Nico ficou parado, observando os dois se distanciarem. 

Espera. Ele ouviu certo ou o sol forte já estava começando a fritar seu cérebro?

Will Solace havia mesmo acabado de elogiá-lo?! 

***

— Acho melhor você tirar os tênis  — Will avisou, com os pés descalços na areia, parecendo totalmente no seu habitat natural. E, bem, ele realmente exalava uma vibe de “cara surfista” com seu bronzeado perfeito e os cabelos loiros. Nico apostava que ele até tinha uma prancha de surfe e pegava onda no verão.

— Estou bem — Nico mentiu, segurando-se para não soltar um palavrão baixo toda vez que seus pés afundavam na areia fofa. 

— Se você diz… — ele deu uma risadinha. — Ok, vamos começar a aula. 

— O que faremos hoje?

— Cérbero já está bom nos comandos básicos, então acho que podemos avançar. Pensei em treinarmos como pegar a bolinha e trazer de volta, o que você acha?

— Pode ser — ele deu de ombros. Afinal, era Will quem entendia de adestramento, Nico só seguia as instruções.  

Como Cérbero ainda era um filhote e tudo era diversão para ele, custou um pouco para associar o que deveria  fazer. Tudo que ele queria era deitar na areia e mordiscar a bola entre seus caninos pequenos, porém bem afiados. Depois de algumas tentativas frustradas, ele finalmente correu com a bola entre os dentes e colocou aos pés de Nico quando foi chamado.

Já que as coisas deram certo com a bolinha, Will resolveu tentar com um disco também. Ele disse que essa era uma das brincadeiras favoritas dos cães e era ótima para um dia no parque. Infelizmente, Nico não tinha uma boa pontaria, então o disco sempre ia mais longe do que deveria ou em direção ao mar — e aí Will saia correndo para pegar antes que Cérbero entrasse na água. 

— Ok, acho que Cérbero cansou dessa brincadeira — Will observou o filhote jogar-se no chão com a língua de fora após mais uma corrida com o disco. — Vou pegar algo para nós bebermos. 

— Ah, espere — Nico apalpou a sua calça jeans à procura da sua carteira. 

— Tudo bem, é por minha conta! — Will já estava se afastando quando respondeu, indo em direção a um quiosque que ficava na entrada da praia. 

Nico se sentia um pouco mal por isso. Afinal, o vizinho estava o ajudando no adestramento sem cobrar nada, não era justo que sempre pagasse pelas bebidas também! Suspirou e pegou a guia de Cérbero, segurando-a firme, mas o filhote estava tão cansado que ele duvidava muito que fosse tentar fugir agora. 

Will voltou alguns minutos depois com duas garrafas de água na mão.

 — Eu acabei me esquecendo de perguntar se você preferia água com gás ou sem gás — ele disse, mostrando que havia comprado uma de cada. — Pode escolher, gosto das duas.

— Com certeza, sem gás — afirmou. Quando foi pegar a garrafa, seus dedos tocaram os de Will sem querer. Ele puxou rapidamente e desviou o olhar ao continuar: — Valeu pela água.

— Sem problemas — Will sorriu. Ele abaixou-se na areia e pegou uma tigela e uma garrafinha na mochila, despejando um pouco de água para Cérbero. E então olhou para cima. — Você não vai se sentar?

— E sujar minha roupa de areia? — questionou, tomando um gole da sua água pelo gargalo mesmo, pois Will não havia pegado copos nem canudos. — Vá sonhando!

Will revirou os olhos e pegou outra coisa dentro da sua mochila: uma toalha de praia com estampa de surfe.

— E que tal agora? — ele perguntou, após estender a toalha no chão e sentar em uma das pontas.

— Ah, agora sim — murmurou, sentando-se na outra ponta.

— Eu sabia — seu vizinho deu uma risadinha.

Enquanto tomavam as suas águas e descansavam, o único som que se podia ouvir era das ondas quebrando no mar. Ficaram assim por alguns minutos, até que Will acabou com o silêncio ao perguntar:

— Como estão seus pés?

— Hm... — ele tentou mexer os dedinhos dentro do All Star, sentindo as meias úmidas por causa da areia.  — Estão bem, acho. Só parecem mais pesados do que o normal.

— Deixe-me ver! — Will puxou um dos pés de Nico tão rapidamente que ele quase caiu. 

— Ei! — Ele apoiou as mãos na toalha para se equilibrar e tentou puxar seu pé de volta, mas Will era mais forte. — Solace, me solte! Eu estou bem!

— Não, você não está. Viu? — Will virou o tênis de cabeça para baixo, fazendo a areia cair. — Você é tão teimoso, deveria ter me escutado. 

Nico já morava naquele prédio há 2 anos, mas foi só na semana passada que ele e Will ficaram mais próximos, justo quando Cérbero apareceu. E ele havia dito naquele dia no parque o quanto gostava de animais. Então o interesse repentino de Will por Nico parecia ser só por causa do cachorro mesmo, sem segundas intenções de ser seu amigo ou algo mais. Ele sabia que assim que o filhote fosse embora eles voltariam a ser apenas dois caras que moravam no mesmo andar e que se cumprimentavam ocasionalmente quando se viam por aí. Era algo doloroso de se pensar, mas era a verdade.

 — Eu vou sobreviver — ele revirou os olhos, achando que Will estava exagerando. Tentou puxar o pé mais uma vez, sem sucesso.

 Will pegou o outro pé dele sem falar nada, deixando as duas pernas de Nico no seu colo. Tirou o outro tênis e fez o mesmo processo. Depois, tirou o excesso de areia das meias e começou a massageá-los gentilmente. A sensação era tão boa que ele até mesmo desistiu de brigar com o vizinho e apenas fechou os olhos, aproveitando a massagem. Nico não pôde evitar pensar se aquelas mãos grandes eram também habilidosas para outras coisas... 

 Se controle, Nico! Sua consciência ralhou com ele.

 — Não me faça ficar preocupado com você... — Will murmurou baixinho, soltando um suspiro. 

— O quê?! — Nico arregalou os olhos e encarou Will, sem saber se havia ouvido direito. 

— Hm, nada — ele sorriu e mudou totalmente de assunto: — Eu me esqueci de falar antes, mas se você precisar de um atestado médico para aquele dia que ficou doente eu posso arranjar um para você. 

Ele reparou que seus pés ainda descansavam no colo de Will e os puxou para si devagar. O vizinho não tentou impedi-lo dessa vez. 

Valeu, mas não vou precisar. Desde que eu consiga cumprir a minha meta semanal, não importa quantos dias eu trabalhe na semana — ele deu de ombros, enquanto calçava os tênis novamente. 

— Entendi… — Will balançou a cabeça em concordância. — Mas, afinal, onde você trabalha? Não são todas as empresas que aceitam que seus funcionários façam home office. 

— Em uma editora, mas todos os funcionários de lá trabalham de casa. Costumo ir lá apenas para reuniões ou para pegar algum manuscrito. 

— Você trabalha em uma editora de livros? — ele praticamente gritou. 

— Sim.  — Nico sentiu vontade de rir ao olhar para a cara atônita de Will. — Por quê? Você não consegue me imaginar cercado de livros? — debochou, lembrando que o vizinho havia falado algo semelhante ao dizer que fazia Medicina.

— Consigo. — Will semicerrou os olhos, parecendo entender a referência. — Qual editora?

— Olympus’ Books. Conhece?

— Claro que eu conheço! Já li vários livros deles na época da escola! Ok, eu sei que eles não têm apenas livros infanto-juvenis, mas é que eu realmente não tenho muito tempo para ler agora por causa da faculdade — ele deixou claro. — Então, o que você faz lá?

— Sou tradutor e revisor. 

— Nossa! Quantos anos você tem? — ele disparou. Então coçou a nuca, parecendo meio sem jeito e explicou-se: — Quer dizer, o pessoal costuma começar como assistente nessas empresas e demora um pouco para subir na carreira. E isso normalmente exige fazer mestrado e outras especificações, mas naquele outro dia você me disse que só tinha graduação.

— Eu tenho 24. Comecei a trabalhar lá como estagiário, mas acabaram me efetivando quando eu me formei — explicou.

Nico até pretendia fazer mestrado, mas quando a Editora quis efetivá-lo ele nem pensou duas vezes. Bem, talvez algum dia ele resolvesse voltar e continuar os estudos. 

  — Temos a mesma idade! — Will sorriu, parecendo feliz ao saber disso. Realmente não tinha muitas pessoas jovens no prédio deles, a maioria eram famílias com filhos pequenos ou pessoas idosas. — Você faz 25 ainda este ano? Eu faço em agosto, sou virginiano.

— Não, só ano que vem. — Nico respondeu, mas como Will continuava olhando para ele esperando mais, acrescentou: — Em janeiro.

— Final do mês? — Will perguntou e Nico assentiu, um pouco surpreso por ele ter adivinhado. — Eu sabia, você tem mesmo cara de aquariano. — riu.

Nico não sabia dizer se isso era um elogio ou não, porque ele não entendia absolutamente nada de signos. Talvez devesse mandar uma mensagem para Hazel e perguntar.

— Então, você é tradutor de qual língua? — Willl continuou, parecendo cada vez mais interessado no assunto. — Francês? Alemão? Italiano? Espanhol? Grego?

A editora em que Nico trabalhava traduzia apenas livros de autores europeus e começou traduzindo livros de autores gregos. Por isso o nome Olympus’ Books, em homenagem ao Monte Olimpo, na Grécia.

— Italiano. 

— Uau! — Will parecia fascinado. — Você é formado em Letras Italiano então?

— Sim.

— E por que você escolheu italiano?

— Na verdade, eu não fazia ideia de qual carreira seguir quando entrei na faculdade. — disse, lembrando-se dos momentos difíceis que passou naquela época de calouro. — Então, Bianca me sugeriu isso porque eu já falava italiano. Com o passar do tempo, acabei gostando mesmo da área.

— Ah, você já era fluente? Aprendeu por vontade própria?

— Na verdade, o inglês é a minha segunda língua. — confessou. Nico sempre se sentia um pouco desconfortável falando desse assunto, porque se lembrava dos momentos felizes da sua infância, quando sua mão ainda estava viva. Mas, estranhamente, ele não se importava de falar sobre isso com Will. — Eu nasci na Itália. 

— Eu não acredito nisso! — Will parecia ainda mais admirado do que antes, se é que isso era possível. — Claro que eu sabia que seu sobrenome era de origem italiana, mas achei que você só tinha descendência. Então você é mesmo um italiano completo! 

Metade italiano. — Nico o corrigiu. — Meu pai é norte-americano. 

— Mas você nasceu lá, isso te torna um italiano!  

Tecnicamente, Will estava certo, mas as coisas não funcionavam assim na prática. Quando Nico se mudou para os EUA, as crianças tiravam sarro dele por não entender as gírias americanas e por misturar as duas línguas na mesma frase. E quando ia à Itália para visitar os parentes, diziam que ele parecia americano demais. Ele sentia como se não pertencessem a nem um dos dois lugares. 

— Quando você veio para a América? — ele perguntou, tirando Nico de seus pensamentos. — Você tem parentes que ainda moram na Itália?

— Hm, eu ainda não estava na escola. Acho que eu tinha uns 4 anos? — disse, incerto. — E, sim, eles moram em Veneza.

— Incrível! Então você foi alfabetizado em inglês na escola e em italiano em casa? — Will perguntou e o garoto apenas assentiu. — Suas irmãs também devem ser fluentes, suponho.

— Não. Hazel, minha irmã mais nova, nasceu nos Estados Unidos e é filha de outra relacionamento do meu pai. — explicou. —, mas Bianca era fluente, tanto que quem me ensinou a ler e escrever em italiano foi ela. Só que, com o passar dos anos, parou de praticar porque estava ocupada com outras coisas. Hoje em dia, não consigo mais ter uma conversa com ela toda em italiano. Depois de algumas frases, ela já me pede para falar em inglês novamente — ele inclinou os lábios um pouco para cima em um quase sorriso, lembrando-se do jeito que a irmã sempre ficava frustrada quando não entendia algum termo. — Ela diz que eu a superei. 

— Uau! Você é mesmo uma pessoa surpreendente, Nico di Angelo

Nico não sabia se tinha ficado mais atônito  pela frase em si, ou pela forma como ele havia dito seu nome.

O que Will realmente quis dizer com isso?  Estava tentando processar as palavras do vizinho, mas o seu cérebro parecia ter virado geleia. Sabia que se abrisse a boca para falar algo agora, sairia apenas algo incompreensível.

Will não disse mais nada, apenas abraçou as pernas no peito e apoiou o queixo nos joelhos, olhando para o mar. Nico fez o mesmo, mas revezava o seu olhar entre as ondas do mar e o vizinho pelo canto do olho. 

Nico não sabia dizer ao certo quando tempo eles ficaram ali, apenas olhando para o mar, mas quando deu por si, o sol já estava se pondo no horizonte. O céu estava em um tom meio alaranjado, o sol refletia no mar enquanto sumia e as nuvens estavam em um tom de roxo muito bonito. Ele já tinha visto o pôr do sol diversas vezes, mas na praia era a primeira vez. E compartilhar esse momento com Will, mesmo que ambos estivessem em silêncio, tornava a experiência ainda mais memorável. 

Will nunca esteve tão bonito quanto agora. Ele parecia totalmente hipnotizado enquanto olhava para o mar, um pequeno sorriso brincava em seus lábios. 

— Posso sentir você me encarando. — Will disse, sem sequer mover a cabeça na sua direção. — Sou tão bonito assim?

Droga! Ele podia ler pensamentos?!

—  Eu não estava te encarando! — Nico mentiu descaradamente, em uma voz alta demais que praticamente lhe entregava. Mesmo com o vento vindo do mar, sentia suas bochechas esquentando de vergonha. — Se ache menos, Solace.

— Ok, acredito em você. — Will disse, mas o tom da sua voz demonstrava o oposto. Ele virou a aba do boné para trás e, do nada, inclinou-se na direção de Nico.

— O que você está fazendo? — perguntou, como a voz tão baixa que mais parecia um sussurro.

— Não é óbvio? — Will questionou, aproximando-se mais um pouco, a ponto de Nico poder sentir a respiração do vizinho fazendo cócegas no seu nariz. 

Tudo que Nico mais queria naquele momento era que Will acabasse com os poucos centímetros que os distanciavam e o beijasse, nem se importaria de rolar com ele pelo chão e sujar sua roupa de areia. Só queria que aqueles lábios tocassem os seus.

 — Estou arrumando meu cabelo no reflexo — Will deu um sorrisinho afetado. E então passou a mão pelos fios loiros, como se estivesse na frente de um espelho. 

Claro que Will estava só o provocando! Saber que tudo isso não passava de uma brincadeira para ele só deixava o coração de Nico ainda mais apertado dentro do peito.

Idiota — cruzou os braços, fazendo cara feia. 

— Ei, eu estava só brincando! — Will riu baixinho e bagunçou os cabelos de Nico em resposta, fazendo borboletas esqueléticas surgirem no seu estômago. — Não precisa ficar bravo.

— Não estou. — Nico mentiu. Sim, ele estava bravo, mas não era com Will.  Estava bravo consigo mesmo, porque continuava se iludindo achando que, em algum momento, Will olharia para ele de uma forma diferente. — O sol já foi embora. Valeu — ele rapidamente puxou os óculos do rosto e empurrou na direção de Will, sem olhar diretamente para seu rosto.

— Okay... De nada — a voz de Will soou confusa, como se ele não entendesse o que havia acabado de acontecer.

“Você é mesmo um idiota, Solace”, Nico pensou. “Não me encha de esperanças se depois for cravar uma faca bem no meu peito”.

Nico girou o pescoço para o lado, apenas o suficiente para ver Will colocando os óculos no rosto novamente. Viu que o vizinho abriu a boca para dizer mais alguma coisa, mas se deteve, franziu o nariz e ergueu a mão no ar. 

— Droga, está começando a chover. Melhor irmos para casa — Will levantou-se rapidamente, passando as mãos pelas roupas e braços, tirando o excesso de areia e pegou a sua mochila, colocando nas costas. 

“Por que as coisas nunca acontecem do jeito que eu quero? Será que é tão difícil assim achar um cara gatinho que retribua meus sentimentos? Valeu mesmo, universo”, Nico pensou, sentindo-se absurdamente azarado naquele momento.   

— O que foi? — Will perguntou, erguendo uma sobrancelha ao perceber que Nico continuava sentado.  — Seus pés estão muito doloridos? Posso dirigir para você. 

— Não precisa — ele balançou a cabeça, não querendo incomodar o vizinho. — Eu consigo dirigir. 

— Tudo bem, mas se mudar de ideia, saiba que sou um excelente motorista! — Will riu e ergueu a mão na direção dele. — Vamos.   

Se fosse outra pessoa oferecendo ajuda, Nico negaria e levantaria sozinho, mas era Will e o garoto não podia perder a oportunidade de tocá-lo. Mesmo que fosse por apenas alguns segundos e ele ficasse completamente nervoso. Mesmo que isso não significasse nada para Will, significaria tudo para ele. Ainda assim valeria a pena.  

Ergueu o braço e pegou a mão estendida na sua direção. O vizinho o puxou para cima e seus corpos colidiram, deixando seus rostos a poucos centímetros de distância. Foi aí que ele finalmente conseguiu reparar na diferença de altura entre eles. Nico, com seus 1,85cm, estava sempre acostumado a ser o mais alto em todos os lugares que ia — entre os familiares, colegas de faculdade, o pessoal da Editora e até mesmo com caras que já havia saído —, mas Will era ainda mais alto do que ele, talvez uns 5 centímetros, e isso era uma novidade.

Nico estava tão perdido em seus devaneios que nem havia percebido que Will o encarava, ainda segurando seu braço. As pupilas do vizinho estavam dilatadas e ele mordia o lábio inferior com força. Por uma fração de segundos, Nico achou que Will havia olhado para a sua boca, mas quando piscou, o vizinho estava o olhando nos olhos.

— A chuva está aumentando, melhor nos apressarmos — Will enfim desviou o olhar e soltou Nico. Ele retirou a guia de Cérbero da sua mão e andou rapidamente em direção ao carro. Como se estivesse fugindo.

O que diabos havia acabado de acontecer aqui?

Nico sacudiu a toalha — que Will não pegou quando saiu praticamente correndo — e obrigou seus pés a se mexerem rapidamente, sentindo os primeiros pingos. Só deu tempo de eles entrarem no carro e a chuva engrossou. Will sentou-se no banco do carona com Cérbero em seu colo, suas pernas estavam cobertas de areia e o filhote não parecia muito diferente. 

— Você não vai colocá-lo de volta na caixa de transporte? — Nico estreitou os olhos para o  vizinho e jogou a toalha na parte de trás, onde estava a mochila. Ele odiava limpar o carro e fazia isso o mínimo possível, mas com toda essa areia seria inevitável.

— Não é uma tarefa muito fácil já que a caixa está no banco de trás e ele provavelmente não vai querer entrar. Você quer tentar? — Will perguntou em tom de desafio. Como Nico não respondeu, ele prosseguiu: — Exato, foi o que eu pensei. 

Cérbero e Will 1 X 0 Nico. 

— Tudo bem — ele bufou, dando-se por vencido. — Eu vou devagar. 

Então ligou os para-brisas e deu partida do carro. 

 ***

Durante o trajeto para casa, eles não conversaram muito. Nico estava concentrado na estrada e Will brincava com Cérbero, pois o filhote parecia agitado demais. Provavelmente, nunca havia viajado de carro fora da caixa de transporte, então tudo parecia novidade para ele. Uma música soava baixinho no som o carro, mas ninguém parecia estar prestando atenção.

Eles demoraram um pouco mais do que o habitual para chegar. E, por causa da chuva, não havia nenhuma vaga perto do prédio, então Nico teve que estacionar quase no final da rua. 

Pelos deuses, será que tinha como esse dia piorar ainda mais?

— Achei que a chuva ia dar uma trégua até chegarmos, mas só piorou. — Will suspirou, enquanto olhava os pingos caindo no vidro. — Mesmo se corrermos, vamos chegar encharcados no prédio. 

Espera, eu tenho um guarda-chuva aqui em algum lugar — ele girou o corpo e tateou o chão da parte de trás do carro. — Achei! 

— Belo guarda-chuva — Will não conseguiu conter a risada. 

— É da minha irmã mais nova. — Nico revirou os olhos, olhando para o guarda-chuva rosa e com estampa de cavalinhos fofos de Hazel. — É isso, ou nada. 

— Vai ter que servir — Will concordou. 

Eles então se prepararam para sair. Nico guardou a toalha, colocando a mochila nas costas, ele saiu do carro e abriu o guarda-chuva. Ia dar a volta e pegar Will na outra porta para não se molhar, mas o vizinho correu na sua direção primeiro. Enquanto andavam, ele estava tentando manter distância de Will e da bola de pelo em seu colo, mas o guarda-chuva era pequeno demais para todo mundo. 

— Ei, você vai ficar doente de novo assim — Will observou que os ombros de Nico estavam molhando e colocou a mão no cabo do guarda-chuva, o ajeitando. 

Nico quase soltou um palavrão, pois a mão de Will estava bem em cima da sua. Era macia e quente e, mesmo que os dedos de Nico fossem cumpridos, a mão do vizinho quase envolvia a sua completamente. 

Ele olhou para o vizinho pelo canto do olho. Will estava com um sorriso lindo no rosto e parecia brilhar, mesmo que não tivesse mais sol. O coração de Nico estava disparado, ele sentia um friozinho na barriga e não sabia dizer se estava suando ou apenas molhado por causa da chuva. Afinal, o que estava acontecendo com ele? Ia mesmo ficar doente de novo? 

— São e salvos! — Will vibrou. 

Quando Nico deu por si, eles já estavam  subindo as escadas para chegar ao saguão. O vizinho colocou Cérbero no chão, que se chacoalhou no mesmo momento. Felizmente, não havia ninguém ali além deles, a última coisa que ele queria agora era levar uma bronca do Sr. D por encharcar a entrada do prédio.  

Nico chacoalhou o guarda-chuva e o fechou antes de entrar. Will apressou-se em apertar o botão para chamar o elevador. Eles subiram até o sétimo andar sem falar nada. 

Quando as portas se abriram, Nico devolveu a mochila de Will e pegou a guia de Cérbero. Estava pronto para se despedir quando o vizinho perguntou: 

— Ei, o que você vai fazer amanhã? 

— Hm, nada. — Nico parou no meio do corredor. — Por quê? Você quer treinar de novo? 

— Não, não. É que... — Will olhou para o chão. Ele parecia... nervoso?! Estranho. — Sabia que abriu um parque de diversões novo na cidade?

— Ouvi falar.

— Então, eu queria muito ir, mas não é divertido sozinho. Você quer ir comigo? 

Will provavelmente deveria ter muitos amigos na faculdade, afinal, era um cara extremamente sociável e extrovertido. Então por que estava convidando justo Nico para ir com ele?

— Só eu e você? — perguntou, desconfiado. Eles já haviam saído juntos algumas vezes nas últimas duas semanas, mas sempre era algo que envolvia Cérbero. Nico tinha quase certeza que cães eram proibidos em parques de diversões. Com exceção, claro, de cães-guia.                      

— Claro! Por quê? — ele riu. — Ah, você está preocupado com Cérbero? Tenho certeza que ele pode ficar sozinho por algumas horas! 

— É, acho que pode — Nico olhou para Cérbero, que estava sentado no chão brincando com o cadarço do seu tênis. Deixar o filhote sozinho era a sua última preocupação naquele momento. 

— Então... — Will disse, parecendo um pouquinho apreensivo com a resposta. — Você quer ir comigo?

— Hm, sim.

— Beleza! — ele sorriu. — Podemos nos encontrar às 6 da tarde? No saguão?  

— Pode ser — deu de ombros, tentando mascarar sua animação.

— Ciao, Di Angelo! — Will andou de costas e acenou para ele. Um sorriso enorme nos lábios. — Arrivederci!

Nico segurou-se para não sorrir também, porque seu vizinho ficava tão fofo falando em italiano. 

Ciao, Solace.   

***

Nico tomou banho e jogou suas roupas molhadas no cesto de roupa suja. Olhou para o tênis coberto de areia, sem saber se deveria colocá-lo de molho ou direto na máquina de lavar. Bem, resolveria isso amanhã. Ele não havia comido nada durante a tarde toda, mas não estava com fome. Por fim, apenas deitou-se na cama e logo caiu no sono. 

No meio da noite, Nico acordou e reparou que o tempo havia piorado. A chuva tinha ficado mais forte e também estava trovejando agora. Torceu para ser um daqueles temporais passageiros de dias mais quentes, caso contrário, isso arruinaria o passeio ao parque de diversões.

Ele andou rapidamente até a cozinha e tomou um copo de água. Quando passou na frente da área de serviço, escutou uma espécie de choro. Abriu a porta e Cérbero veio direto na sua direção.

— Ei! O que foi? — ele se abaixou, ficando na altura do filhote. Então, outro raio cortou o céu, deixando o cômodo iluminado por alguns segundos. Cérbero tentou pular no colo dele, parecendo muito assustado. — Acho que você também não gosta de trovões, hein? 

Nico entendia o filhote, afinal, também não gostava de raios e trovões. Quando era criança, sempre procurava abrigo no quarto de Bianca em noites assim. A irmã zombava dele, o chamando de medroso, mas depois permitia que ele se deitasse ao seu lado na cama e até mesmo cantava baixinho até que pegasse no sono novamente.

Ele suspirou, sabendo que provavelmente iria se arrepender mais tarde dessa decisão. 

— Ok, eu vou deixar você dormir no meu quarto, mas é por hoje! Não se acostume! — ele pegou a cama do filhote e voltou para o quarto. Cérbero o seguiu, com o rabinho abanando. — Ei, cada um na sua cama! — alertou, quando viu o filhote cheirando o seu colchão, como se estivesse pensando em um jeito de subir.

Botou a pequena cama no chão, ao lado do guarda-roupa. Não colocou jornais porque Cérbero não costumava mais fazer xixi durante a noite. Parecia que esses passeios diários pelo quarteirão estavam mesmo sendo úteis, afinal. O filhote não protestou, ele parecia muito mais calmo agora. As cortinas deixavam o quarto praticamente escuro e a porta estava fechada, o que abafava um pouco os sons dos raios no lado de fora. 

Nico deitou-se e fechou os olhos, mas ficou se remexendo na cama de um lado para o outro. Ele olhou para o chão e Cérbero levantou a cabeça, o encarando. Parecia que ele não era o único que não conseguia dormir. 

O convite do vizinho veio à sua mente novamente. Ele sentou-se na cama e passou as mãos pelos cabelos bagunçados, sentindo-se confuso. Will era sempre tão legal e gentil como ele, mas também era assim com as outras pessoas. Mostrava-se preocupado com a sua saúde, mas isso podia apenas ter relação com o fato de que seria médico. Às vezes, falava algo que o deixava intrigado, mas então sorria e mudava de assunto. 

Não tinha como esse passeio ao parque de diversões ser um encontro, não é? Will provavelmente não gostava dele desse jeito

"É apenas um convite amigável entre vizinhos, nada mais", pensou. Afinal, não queria ter falsas esperanças e depois se decepcionar, como sempre acontecia. 

Nico colocou a mão no peito, sentindo o coração doer. Pegou o celular e pesquisou os sintomas que havia sentido antes. Só esperava que não estivesse ficando doente de novo, ele havia acabado de se recuperar.

Bem, Nico não estava doente, isso era bom. Mas os resultados da pesquisa diziam que ele aparentemente estava apaixonado! Ele não podia acreditar no que havia acabado de ler!

Ok, claro que Nico gostava de Will de um jeito especial, mas achava que era só uma quedinha! Ele já havia gostado de vários garotos antes, e até saído com alguns, mas nunca havia se apaixonado por eles. Nunca!

Droga! Por que Will? Por que justo ele?

De repente, ele se arrependeu de ter aceitado o convite. Como ele iria encarar Will sem deixar transparecer seus sentimentos agora que sabia como realmente se sentia?

— Será que eu devo dizer que estou doente? — questionou, em voz alta para ninguém em especial. — Não. Will vai querer me examinar e vai descobrir que é mentira. Ah, posso falar que eu tinha um compromisso familiar e tinha me esquecido!  Espera, não. Ele já sabe que minha família materna mora fora e que meu pai está viajando. Merda, merda!

O filhote levantou-se da sua cama e apoiou as patinhas no colchão de Nico, parecendo preocupado. 

— O que eu faço agora? Devo ir ao parque com ele, ou não?  — suspirou, passando a mão pela cabeça do filhote distraidamente.

Cérbero olhou para ele, inclinando a cabeça para o lado, como se avaliasse a situação. 

— Au! Au! Au!

— O quê? — ele olhou para o cão, sentindo-se confuso. — Isso é um “sim” ou um “não”?

Mas Cérbero apenas voltou para a sua cama, como se tivesse ficado cansado da conversa. Ótimo.

Caramba, todo aquele sol que Nico pegou na praia devia mesmo ter o afetado! Afinal, ele realmente achou que um filhote de cachorro que perseguia o próprio rabo lhe daria conselhos amorosos? Patético!

Bem, parecia que Nico teria que resolver esse dilema sozinho.


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Notas finais do capítulo

* A editora Olympus' Books não existe na vida real (pelo menos, eu acho que não rs) eu inventei o nome para colocar aqui no capítulo.
* Pequeno dicionário de italiano de TDQP >>
Ciao: tchau
Arriverdeci: até mais; adeus

No próximo capítulo, Nico e Will vão ao parque de diversões! Será que é mesmo um encontro? Hm...

Até sexta-feira que vem! õ/



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