Toada escrita por Clarisse Hugh


Capítulo 1
Toada




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Desde muito pequenos, eu e Poseidon nunca exibimos o tipo de parentesco reconhecido visualmente. Para além dos cabelos negros, coube a ele toda a espontaneidade e charme de nossa mãe – a pele bronzeada, os olhos verdes, o sorriso largo – enquanto a mim foi reservada a quietude contemplativa de nosso pai. Característica bastante adequada para a presença de um alguém-fantasma, e até nisso as similaridades se estendem, uma vez que minha palidez me rendeu gracejos aludindo à morte mais de uma vez.

(Meu senso de humor igualmente já rendeu reviradas de olhos e um ou outro engolir de saliva mais pronunciado, mas aceitei há tempos que certas coisas nesta vida são impossíveis de se evitar).

Então não, não somos parecidos.

Minha irmandade com Poseidon se faz notar em coisas sutis. No idêntico arquear de sobrancelhas e na mania de sempre ajeitar a aba do chapéu alguns centímetros para a direita. Na postura confortável sob o lombo de um cavalo, no encontrar refúgio na música quando palavras parecem não ser suficientes e, claro, no amar profunda e desesperadamente.

(Tenho quase certeza de que Reia não criou dois românticos incuráveis de propósito, mas algum tipo de responsabilidade sobre isso ela deve ter).

Nós dois parecemos ter nascido para paixões épicas e duradouras. Verdadeiras tragédias gregas materializadas num pulsar constante em nosso peito. Ele, com a força do galope de um milhão de cavalos, e eu, com sentimentos entranhados tão fundo que é como se houvessem se enraizado em minha alma.

Para ele, sempre foi Atena, e eu igualmente nunca tive dúvidas acerca de minha adoração por Perséfone Rosa.

Toda essa complexa história talvez rendesse um bom livro, mas não tenho certeza se algum de nós seria capaz de organizar tanto sentir em frases coerentes.

O negócio entre mim e Poseidon é que, embora ele tenha dificuldades com sua impulsividade, de algum modo consegue manejar bem a arte da comunicação com suas frases truncadas, dares de ombros e risos. Eu sempre fui o mais apegado nas palavras, entre nós dois, mas não de modo acadêmico. Mais como um se reconhecer nas linhas de autores que já deixaram esta terra há anos. Isso não me garantiu eloquência na prática, entretanto. Sou o homem dos solilóquios e palestras mentais.

Talvez fosse uma boa ideia recorrer à Atena.

E é claro, aí resta outra diferença fundamental entre os irmãos Costa: Poseidon alcançou a graça de um amor recíproco e eu... Bem, eu sigo só.

 

­○♪○

 

O dia de hoje se apresentou fresco como a sugestão de um novo começo na Fazenda Parnaso.

Um temporal lavou o mundo de madrugada e agora restou apenas a quietude das primeiras horas da manhã. Levantei-me como que a chamado do aroma da terra molhada de chuva.

Petricor, Atena disse no outro dia, quando foi com Poseidon na fazenda.

É um nome bonito para esse cheiro. Melancolia líquida.

Igualmente fluidos, meus passos sem destino me transportam até os antigos trilhos de trem. O local abandonado vem sendo lentamente tomado pela grama e andar por aqui é um pouco como ser esquecido pelo mundo também.

Há algo na placidez do cenário que inspira confissões vulneráveis e parece até providencial que meus dedos tenham alcançado o braço da minha viola na saída, quase como um reflexo.

Caminho paralelamente à linha férrea – a ponta dos dedos tocando as ranhuras da madeira escura do meu instrumento, a ponta das botinas resvalando os carris – e um suspiro profundo me abandona antes que eu dedilhe as primeiras notas de uma canção suave.

Vem, morena, ouvir comigo essa cantiga. Sair por essa vida aventureira. Tanta toada eu trago na viola, pra ver você mais feliz.

Normalmente, quando nos apresentamos, eu prefiro ficar apenas no acompanhamento das cordas enquanto Poseidon canta, mas hoje não tenho público ou mesmo meu irmão a meu lado, e as palavras escorregam facilmente pelos meus lábios.

Escuta o trem de ferro alegre a cantar. Na reta da chegada pra descansar. No coração sereno da toada, bem querer...

Minha voz não tem nada demais. Não alcanço suavidade o suficiente para ser doce ou rouquidão capaz de me tornar sensual, mas na normalidade do meu timbre falo honestamente e acho que isto é tudo que o momento poderia pedir.

Tanta saudade eu já senti. Morena, mas foi coisa tão bonita. Da vida, nunca vou me arrepender...

Não sei se essa música me veio por conta do ritmo que me remete ao suave balanço de uma viagem de trem ou pela efetiva menção dele na letra. Talvez até pelo uso de “morena” como vocativo e da tentação de poder ser capaz de chamar minha querida Perséfone por esse apelido tanto quanto meu irmão se delicia em dirigir-se a sua namorada como “loira”. Mas o fato é que o sentimento desses versos é muito real para mim, o que chega a ser contraditório.

Como eu posso ter saudades de algo que nunca vivi?

Morena, ouve comigo essa cantiga. Sair por essa vida aventureira. Tanta toada eu trago na viola, pra ver você mais feliz. — Ah, meu pequeno botão de rosa, te daria o mundo se eu pudesse... – Escuta o trem de ferro alegre a cantar. Na reta da chegada pra descansar. No coração sereno da toada, bem querer.

O céu azul sem nuvens que me rodeia se oferece tão claro pra mim que é com renovada convicção que me escapam os versos seguintes:

Tanta saudade eu já senti. Morena, mas foi coisa tão bonita. Da vida, nunca vou me arrepender.

Jamais poderia me arrepender, ainda que nunca tenha seus olhos castanhos me olhando com a mesma paixão que lhe dedico, ou um roçar tímido dos seus lábios contra os meus.

Perséfone, meu amor, esta vida me deu a oportunidade de te ver florescer e isso é mais do que suficiente.

A canção chega na parte sem letra e eu murmuro as notas juntamente com a viola até alcançar o momento em que tudo soa mais convite que música.

Vem, morena...

Falo, repito e reitero.

Vem, morena... Vem, morena... Vem, morena...

Com a certeza de quem ama.

Vem, morena... Vem, morena...

Com a dúvida de quem, apesar de tudo, ousa acreditar.

Vem, morena, ouve comigo essa cantiga. Sair por essa vida aventureira. Tanta toada eu trago na viola, pra ver você mais feliz. Escuta o trem de ferro alegre a cantar. Na reta da chegada pra descansar. No coração sereno da toada, bem querer...

Permito que o acorde final se arraste tal qual o meu antigo sentimento. Embalado pela beleza simples de uma música romântica, sorrio um tiquinho e estou prestes a dar um novo passo, começar uma nova melodia ou qualquer coisa assim quando...

— Espere!

O pedido ressoa em meus ouvidos num timbre que tenho quase medo de reconhecer, seguido pelo som de passos apressados sob os pedregulhos do caminho.

Me viro na direção do barulho e dou de cara com minha preciosa Perséfone, me alcançando em poucos minutos com sua corrida. Respiração audível, ela tem o tronco pendendo para frente e as mãos apoiadas nos joelhos enquanto recupera o fôlego. Em seus dedos, traz uma margarida com algumas das pétalas faltando, como um desfolhar de “bem-me-queres” e “mal-me-queres” interrompido.

Seus olhos resplandecem numa doçura capaz fazer florescer uma estação inteira e é quase inconcebível o embaraço que vejo em seus traços. Em cada expressão sua, ela parece me pedir desculpas pela demora e eu...

— Você estava chamando. Eu vim.

Subitamente, sou invadido pela certeza de que, se minha vida inteira até o presente momento fosse um poema, ele soaria mais ou menos assim:

Quando a música primeiro lhe veio, era uma canção de posse e de falta: tinha saudades, mas não sua amada.

Foi acompanhado por ela, então, em cada passo da estrada, enquanto a melancolia guiava seus versos.

A melodia cresceu, poderosa e florescida, transformando-se num chamado.

Passara tanto tempo tocando, Orfeu reencarnado, que esqueceu-se de que podia ser ouvido.

E o amor escutado – toada apaixonante – segue sendo a sinfonia mais linda do universo.

Há poucos minutos, imerso no meu próprio cantarolar, eu me perdia em linhas que clamavam “vem, morena” e, tal qual a primavera após um longo inverno, ela veio.


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