Seja o Homem que Nasceu para Ser escrita por shaka moon


Capítulo 1
único.




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love, it will not betray you,
dismay or enslave you,
it will set you free.
be more like the man
you were made to be.

Mu se repreendeu mentalmente quando deu por si a subir as escadas que o levavam do templo de Áries ao de Touro.

Fazia algum tempo que as guerras santas haviam cessado, e o Santuário estava vivendo um momento de paz. Atena decidira, com o seu poder, ressuscitar todos os seus cavaleiros mortos nas batalhas, à excepção dos que a haviam desertado. Os Cavaleiros de Ouro e Prata estavam quase todos de volta e, dentro desses, se encontravam Máscara da Morte e Afrodite, dos quais todos os restantes cavaleiros dourados haviam duvidado até a deusa ter aplacado os seus ânimos.

Mu entendia-os, como era habitual nele: Peixes e Câncer não haviam realmente traído a Atena, mas duvidaram da sua capacidade de praticar o seu ideal de justiça. Mu validava a explicação latente nos cosmos dos dois cavaleiros, mas podia jurar ter sentido algo mais que isso quando os enfrentou durante a Guerra Santa contra Hades. Não abandonaria a sua convicção tão facilmente, e por isso preferia ficar alerta quando se encontrava na presença dos cavaleiros. Estava habituado a desconfiar desde jovem, era um hábito difícil de perder.

Encontrou o amigo, Aldebaran, sentado à entrada do seu templo, com um ar contemplador, olhando o céu azul de verão e conversando animadamente com o cavaleiro de Pégaso. Pelos vistos, após a batalha das doze casas, os dois tinham-se tornado bons amigos, Mu observou com um sorriso.

— Boa tarde, Aldebaran, Seiya –— sorriu para os dois cavaleiros, que retribuíram o sorriso com um aceno vigoroso de cabeça.

— Mu! — Seiya exclamou, se levantando. — Como está? Faz imenso tempo que não falamos! — disse divertido.

— Olá Seiya — Mu abriu mais o sorriso para o jovem. — Agora que as guerras terminaram, tenho imensas armaduras para reparar. Mas logo fico livre e colocamos a conversa em dia, ok? Traga o Shiryu, Kiki tem muitas saudades dele!

— Assim farei – disse Pégaso, estufando o peito com um sorriso orgulhoso. – Onde vai, Mu?

Ao ouvir a pergunta, Aldebaran desviou os olhos do céu e fitou o amigo mais intensamente.

— Tenho um assunto pendente com o cavaleiro de Virgem — respondeu Mu, o sorriso desvanecendo rapidamente.

— Com Shaka? Aconteceu alguma coisa? – perguntou Pégaso curioso.

— Seiya, deixe o Mu em paz — riu Aldebaran, se levantando para bagunçar os cabelos do mais novo. – Pode passar, amigo.

— Obrigado, Aldebaran – se despediu com um abraço rápido. Quando ia a meio da travessia pelo templo de Touro, sentiu passos o seguindo. Mu virou-se para trás, encontrando Aldebaran o fitando com uma expressão estranha no rosto.

— Eu sei que você está com pressa, mas quando voltar quero saber o que é isso que tem de resolver com Shaka – Touro proferiu com ar pensativo, fitando o lemuriano seriamente. Mu suspirou e deixou que Aldebaran caminhasse até ele, parando a um passo de distância.

— Eu posso lhe falar já, Aldebaran — Mu sorriu francamente. Parecia cansado; Aldebaran não sabia dizer. Mu era especialista em ocultar suas emoções por trás de uma máscara de serenidade eterna. – Estou preocupado com Shaka. Desde o meu regresso ao Santuário, no início da batalha das doze casas, que ando para lhe dar uma palavra, mas nunca tive tempo, e Shaka nunca pareceu disposto a me receber. Assim que espero hoje ter mais sorte. Tem algumas coisas que nunca lhe disse e preciso dizer.

Aldebaran maliciou as palavras do amigo e riu. Mu franziu o cenho, não entendendo a reacção dele. – Vai se declarar, Mu?

— Aldebaran! — Mu exclamou, surpreendido com o taurino. – É claro que não. Eu não gosto do Shaka... desse jeito. Preciso de algum tempo para o conhecer melhor, já que nunca tive tempo para estreitar laços com alguém que não seja você aqui no Santuário.

Touro riu, concordando. – É verdade. Você precisa sair mais da sua torre, Mu. Sempre viveu muito fechado. Não gosto de te ver assim. Agora que tem mais liberdade, aproveite para conversar com os outros cavaleiros. Mas cuidado com o Milo! Ele vai encher seu saco com uma lista interminável de feito. Seja breve conversando com ele, senão vai ficar a tarde inteira escutando sua história de vida...

Mu gargalhou junto com Aldebaran. A risada do brasileiro era contagiante para ele. – Obrigada, Aldebaran. Não sabia o que faria sem um amigo como você.

— Pode contar para o que precisar, amigo.

Aldebaran viu Mu desaparecer na saída do seu templo e suspirou, balançando a cabeça. Sorriu para a saída do templo, onde Mu estivera à pouco. Esperava que desse tudo certo. Sabia que o cavaleiro de Virgem era um osso difícil de roer, um homem com o qual era impossível interagir sem se sentir estranho ou forçado. Acreditava que Mu pudesse contornar esses obstáculos que Shaka criara à sua volta e pudesse apresentar um novo cavaleiro de Virgem para o Santuário e, também, um novo amigo.

Mu não parou para conversar com nenhum outro cavaleiro na sua subida até ao templo de Virgem, à excepção de Aiolia, que, tal como Aldebaran, possuía um bom humor nato e contagioso, e por isso parara o ariano para uma conversa rápida e corriqueira. Mu agradeceu a hospitalidade, mas disse que estava com pressa e precisava subir até ao próximo templo rapidamente. Aiolia assentiu, desejando-lhe sorte com o que ele fosse fazer.

Subiu as escadas que uniam Leão a Virgem mais velozmente, sentindo-se ansioso por estar na presença de Shaka. Desde a batalha contra Hades, não havia visitado o virginiando uma única vez. E desde que voltara ao santuário, mesmo antes da batalha das doze casas, não havia tido oportunidade de falar com ele.

Oportunidade! Oportunidades tinham havido muitas, mas Mu preferia pensar as suas escolhas antes de as tomar, e por isso, sempre que a ideia de visitar Shaka aparecia na sua mente, ele a esfriava com pensamentos racionais e a ilusão de que não era realmente necessário em Virgem. Nada era realmente necessário para um cavaleiro senão servir a sua deusa e lutar.

Assim, foi adiando a sua visita, até a repensar durante a batalha contra o Deus do Submundo, na qual a morte de Shaka o levara ao desespero, ao sentimento de que havia perdido demasiado tempo matutando no assunto e sem agir. Acima de tudo, a morte do cavaleiro de Virgem o deixou com uma certeza: ele não estava de luto por um amigo. Estava de luto por um colega, alguém que já não conhecia.

Shaka e Mu haviam sido bons amigos durante o curto tempo que os dois passaram no santuário. Mas Mu deixara o santuário com apenas 7 anos. Tinham sido quase 13 anos sem se verem, sem se falarem. Mu tinha a certeza que Shaka se havia esquecido dele por completo, e deliberadamente, pois sabia o virginiano como disciplinado e bastante sério em relação aos seus treinamentos. Durante o seu exílio em Jamiel, o único que o havia visitado tinha sido Aldebaran, o seu fiel amigo taurino. Corriam rumores pelo Santuário sobre a sua traição. Aldebaran arriscara demais, sempre lhe dissera isso, aplacava a sua solidão com a racionalidade, "Aldebaran, você não pode sofrer com isso, não quero comprometer a sua vida", "Mu, eu não vou a lado nenhum. E se me virem como traidor, pois que seja."

E, com as visitas do brasileiro e a solidão como companhia, Mu foi esquecendo Shaka também.

O ariano encontrava-se agora à entrada da sexta casa do zodíaco. Sentia o cosmo poderoso que o companheiro de armas emanava preencher todo o espaço à sua volta. Rapidamente foi recebido pela voz suave do virginiano, ecoando pelas paredes frias do templo:

— Boa tarde, Mu de Áries. Precisa fazer a travessia deste templo?

Mu não respondeu de seguida. Avançou calmamente, adentrando o templo escuro. A casa de virgem era sumptuosa, como todas as outras, adornada com grandes pilares de pedra e algumas ilustrações de cenas mitológicas esculpidas nas paredes e portas. Mu reconheceu imediatamente a porta que levava ao Jardim das Salas Gêmeas, destacando-se no escuro do templo com tons dourados e um relevo de flor de lótus no centro. Desviou o olhar, era doloroso.

— Não vim para atravessar a sua casa, Shaka de Virgem.

A resposta de Shaka não se fez tardar:

— Diga-me o que o traz aqui então.

O tom do virginiano era calmo, mas frio. Mu pensou que seria melhor pedir autorização para entrar antes de fazer qualquer outra coisa.

— Pode entrar, Mu de Áries. Estou no cómodo da direita... Mas você já deve saber disso.

Sim, Mu sabia. Conseguia sentir o cosmo gigantesco de Shaka vindo daquela direcção. Caminhou placidamente até o local indicado pelo guardião do templo e se deparou com Shaka sentado, como era seu costume, em posição de lótus, meditando incansavelmente. Mantinha os olhos fechados, como sempre, e um sorriso que Mu sabia ser falsamente cândido no rosto. Shaka podia enganar os outros, mas não conseguia enganá-lo a ele.

— Pode começar, Mu de Áries.

Mu inspirou fundo antes de começar. Sentia-se nervoso, quase tonto, na presença de um ser tão poderoso quanto o virginiano.

— Venho-lhe dizer algumas palavras que não quer ouvir.

— Tão persuasivo assim? – Shaka alargou o sorriso, desfazendo-se da sua posição de lótus e levantando-se. Para além dos sons da armadura retinindo no chão, nada mais era ouvido no cómodo. – Confesso estar mais que curioso por ouvir essas suas palavras, Mu.

O ariano espantou-se com o uso do seu primeiro nome, mas ocultou a sua surpresa rapidamente. O seu rosto adquiriu uma espressão mais séria e as pálpebras foram cerradas, imitando Shaka. Ainda de olhos fechados, sentiu o cavaleiro mover-se pelo cómodo, a sua armadura tilintando no chão de mármore.

— Aceita um chá, Mu? – Shaka perguntou. A voz estava mais longe, Mu percebeu. Um impulso de seguir o virginiano percorreu-lhe o corpo, mas forçou-se a ficar parado em pé, esperando o outro retornar.

—Shaka… – Mu hesitou, pois não se sentia na liberdade de chamar o cavaleiro pelo seu primeiro nome. Porém, vendo que nenhuma objecção foi feita, prosseguiu. - ...Eu tenho um assunto para resolver com você.

— Você já falou isso, Mu – o ariano ouvia agora o barulho de púcaros de alumínio sendo remexidos incessantemente. – Tília ou camomila?

Mu suspirou. – Tília está bom.

Dentro de poucos minutos o virginiano estava de volta com uma bandeja de metal envelhecido, duas chávenas rústicas e um bule. Pousou-os numa mesa, a um canto escondido do cómodo e no qual Mu não tinha reparado. Convidou o ariano a sentar-se com ele nas almofadas alaranjadas que dispunha no chão. Apesar de ter os olhos fechados, não derrubou nada e sentou-se calmamente numa almofada macia. Mu sentou-se à sua frente, resignado. Esperou Shaka servir o chá aos dois para começar a falar.

— Estou muito grato por Atena ter revivido todos nós após a guerra santa contra Hades – Mu falou de supetão. Tentava se manter calmo, mas estar na presença daquele homem o intimidava e despertava nele um nervosismo que não lhe era habitual.

Shaka riu baixinho, com escárnio. – Ora, Mu, você não veio até aqui pra me falar isso, não é verdade? Eu concordo. Estou muito agradecido.

Mu ignorou a pergunta de Shaka e continuou. – Todos nós morremos nessa batalha. Morremos bravamente, como guerreiros de Atena, protegendo a nossa Deusa. – Mu fez uma pausa, bebericando um pouco do líquido fumegante. – É assim que a morte de um cavaleiro deve ser. Quero acreditar que foi assim a sua morte, Shaka de Virgem. Mas... Eu sei... E você deve saber, também... a morte física não é pior que uma vida não vivida.

O ariano notou uma mudança no semblante do cavaleiro de Virgem quando acabou de falar.

— Porquê estas considerações agora, Mu? Pensei que éramos amigos. — Shaka hesitou, mas era orgulhoso demais para não continuar. — É uma ameaça?

Dessa vez, foi Mu quem teve vontade de rir, mas controlou-se. O uso daquele palavra tinha-o desarmado.

— Não estou lhe ameaçando, Shaka. Longe de mim sequer pensar nisso – era perceptível um certo divertimento na voz do lemuriano, como se a ideia de Shaka sentindo-se ameaçado fosse tão caricata que provocava o riso. Porém, esse logo desapareceu com suas próximas palavras. – Mas… amigos é uma palavra muito forte. Você acredita nisso? Somos colegas, Shaka. Já fomos mais do que isso, mas agora…

— Não me diga que vai bancar o sentimentalista. Por favor, Mu, me diga que não veio aqui para me dizer isso.

Shaka ouviu a sua voz ecoar pelo templo. Estava na defensiva, mas sem vontade de se desfazer da sua posição. O orgulho é um sentimento muito pegajoso e complicado de remover, infelizmente.

— Você vai morrer por falta de amor e sabe disso. Foi isso que eu vim lhe falar, Shaka de Virgem. Nessa curta vida, tanto sua quanto minha, você não fez mais que meditar sozinho. Você medita, medita e ascende. Se afasta. O que está buscando, Shaka?

Shaka se assustou com o à vontade repentino do ariano; afinal, eram poucas as vezes em que tinham falado após a partida do mesmo do Santuário, há mais de uma década. Bebeu um pouco do chá quente enquanto organizava seus pensamentos e pensava numa resposta para o cavaleiro de Áries.

— A que propósito vem essa conversa?

Ah, claro, responder uma pergunta com uma pergunta era o melhor jeito de se esquivar a ela. Mu sorriu amargamente, suspirando. Mas reparou que Shaka poderia estar minimamente intrigado, e isso agradou-lhe.

— A gente olhou a morte de frente, Shaka. Eu olhei a morte nos olhos, e você também, e aceitou-a, como o homem corajoso que sei que é. Mas, sendo tão corajoso, não posso deixar de me perguntar o porquê de se recusar a… viver. É quase cobarde…

Aquilo atingiu Shaka como um balde de água fria. E Mu percebeu o susto do loiro, latente no seu cosmo e agora no seu semblante perturbado. Shaka tinha o cenho levemente franzido e uma careta nos lábios para suprimir o ultraje que sentia.

— Como ousa vir até minha própria casa e me insultar, Mu de Áries? – indagou frio, com algo palpitando dentro de si. Os palpites aumentaram de intensidade assim que percebeu o sorriso triste que se desenhava na face do ariano.

Ás vezes, Mu admirava-se; apesar de bem educado, com um intelecto e uma força que ascendiam até aos deuses, esses intocáveis que pairavam sobre a Terra e teciam o destino dos mortais com fios subtis de teia de aranha, Shaka era ainda um rapaz, quase um homem feito, moldado pelas batalhas e provações divinas e terrenas. Parecia-lhe evidente que a máscara de misticismo distante era uma proteção que o cavaleiro usava para não se permitir participar da vida humana.

Como o próprio Mu havia feito tantas vezes no passado, e por isso, reconhecia-o.

Mu via um homem extremamente poderoso, um cavaleiro de Atena dos mais intrépidos e impiedosos que existiam, um homem orgulhoso e sábio que passava todos os seus longos dias em posição de lótus, procurando a iluminação divina. E o que mais surpreendeu Mu foi saber que isso não era tudo acerca de Shaka.

Havia mais, muito mais; Mu tinha a certeza absoluta de que Shaka era muito mais do que o homem mais próximo de Deus (e que o homem nesse título era uma chave de suma importância para conseguir desmontar o enigma que era o Cavaleiro de Virgem). Por isso, Mu procurava nas entrelinhas das suas falas, nos seus sorrisos plácidos, que oscilavam entre o sarcástico e o desafiante, com laivos de bondade que por vezes nem o cavaleiro de Virgem conseguia ocultar do ariano... procurava nas suas pálpebras, eternamente cerradas em busca de uma visão sábia sobre o mundo... mas procurava acima de tudo nas palavras não ditas, engolidas em seco pelo virginiano; nas hesitações, raras, mas marcantes; e nas inquietudes do seu cosmo que Shaka não se dava ao trabalho de encobrir, de vez em quando, vencido pelo cansaço.

Por vezes, notava um desconforto que parecia eterno no indiano, a alma tímida de um rebelde adolescente, a coragem e a sabedoria de um homem crescido; acima de tudo, Mu via um poço de contradições. Shaka era o seu enigma preferido, e sentia que o virginiano, intimamente, se via da mesma forma. Será que esperava alguém desmontá-lo?

Será que ia ser ele?

— As minhas dúvidas são honestas. Não pretendo insultá-lo. O maior insulto seria se nem sequer o julgasse capaz de aceitar esta conversa. Que não julgo.

Shaka ponderou todas as suas possibilidades de resposta e decidiu que nenhuma delas seria melhor que o silêncio. Por isso apenas molhou os lábios com a língua e engoliu em seco, deixando o outro continuar o seu monólogo.

— Eu percebi isso. – Mu prosseguiu, se referindo ao gesto de Shaka. — Mas você está mais nervoso do que se defendendo, não é verdade? Você parece saber o que quer, saber o que está fazendo. Sempre soube.

Shaka sabia que não era bem assim, e Mu também, pelos vistos, mas assentiu mudamente e serviu-se outra vez do chá. Insípido, sem açúcar, apenas com o aroma das folhas de tília. Algo para acalmar os seus nervos. Shaka sabia que Mu o percebia como nenhum outro cavaleiro fazia; o ariano tentava desmontar o mistério em que Shaka se envolvia, e o loiro se via quase numa situação de guerra fria sempre que falava com o cavalerio de Áries. Qualquer cavaleiro, na verdade…

— A incerteza o incomoda — declarou o outro.

— Sim — Shaka anuiu —, sempre me incomodou. Mas há um lugar de fé onde a racionalidade não alcança; é lá que quero estar.

Mu sorriu. Parecia que afinal a sua visita não tinha sido em vão.

— É lá que você deve estar. É lá onde todos estamos… onde lhe esperamos. — Mu sentiu que arriscou demasiado com aquelas palavras, mas o cavaleiro de Virgem parecia aberto ao diálogo, constatou com agrado.

Shaka ponderou as palavras do ariano. Belas palavras, um nobre sentimento — estaria ele a tentar resgatá-lo de algo? Mu tinha razão, a incerteza o incomodava muito. Olhar para dentro de si e ver um fundo turvo desmoralizava-o. O chão que construíra durante tantos anos parecia afastar-se, correr para longe dos seus pés, deixando-o num vazio infindável.

A luz só se acendia ao fundo do túnel quando o brilho do seu cosmo se elevava, em comunhão com o universo, com os átomos, com a sabedoria infinita e intemporal que encontrara na meditação e na prática religiosa.

A luz parecia… estar a acender-se agora?

Sentiu o cosmo do amigo elevar-se numa faísca suave; tentava alcançá-lo.

Shaka queria dizer algo, fazer um belo discurso cuja única função era assegurar a manutenção do status quo que o aprisionava, mas do qual não estava pronto para se desfazer totalmente. Talvez até uma negação simples e crua, por se sentir inconfortavelmente acuado com o à-vontade do ariano, que nos últimos tempos tinha sido a única pessoa a tentar algo do tipo com ele, mas mordeu a língua quando viu Mu sorrir-lhe calmamente. Ficou meio aliviado, quiçá nervoso – fora apanhado desprevenido por aquela manifestação cósmica de… compaixão? Amor? Palavras muito fortes, muito fortes. Remeteu-se ao silêncio característico, embrenhando-se nos seus pensamentos e na sua meditação, o estado mais natural para um homem divino como ele, durante bastante tempo... até Mu o relembrar que ainda ali estava com algo que se assemelhou a um abraço metafísico, enviado pelo seu cosmo.

O cosmo de Mu era brilhante e plácido, reservado, e intrigante até para o próprio Shaka, que era um dos mais habilidoso de todos os Cavaleiros de Ouro a ler a mente dos seus oponentes. Era um cosmo gentil, extremamente gentil, algo que Shaka sabia não ser e pelo qual se recriminava. Ser mais gentil não era uma de suas prioridades, claro está, mas era algo importante se pretendia algum dia amar como um Deus: toda e qualquer criatura, sem julgamentos, sem fronteiras. Amar infinitamente, sem começo e sem fim; possuir um cosmo aconchegador, no qual os mais fracos dos homens encontrassem força para continuar e ter uma certeza: que alguém, naquela vida, naquele momento, os amava incondicionalmente.

Shaka meditara muitas vezes sobre o assunto – muitas, muitas mesmo, até em demasia —, mas não conseguira chegar a nenhuma conclusão. Tal como agora, sempre se deparara com um beco sem saída para o seu raciocínio.

Sentiu algo retrair-se no seu peito, algo que nem julgava possuir; para alguém tão iluminado, experienciar o orgulho ferido era quase um pecado. Tentara ao longo da sua vida afogá-lo com silêncios prolongados, orações rotineiras, nadara em mares de conhecimento profundos, mas, no final, sentia que acabara por se afundar a ele mesmo.

E agora a sua maior virtude era a sua maior falha. Era onde a ferida tinha ficado aberta, e ia demorar para sarar, ia demorar muito tempo, talvez até mais tempo do que o próprio Shaka vivesse. E, por alguns momentos, ele teve medo disso. E não ia admitir nunca, mas ainda tinha e sempre teria. O medo de não se curar nunca da solidão... de nunca se curar de si mesmo, de nunca desinfectar a ferida.

Estava demasiado desprotegido na terra, demasiado desconfortável nos céus; e pairava assim entre o homem e o divino, sem nunca se decidir por nenhum. Na sua vida, era tudo que iria deixar para trás. O homem mais próximo dos deuses.

E de que servia ser o homem mais próximo dos deuses se não era nem um nem outro? Reconhecia que lhe faltava o coração de um homem ingénuo e a bondade incondicional de um Deus, valores que em impôr a si próprio mas que nunca conseguira. Estava demasiado perdido em si mesmo.

Durante o tempo em que se deixou à mercê de seus devaneios, desligou-se da realidade. Mu estava ainda sentado à sua frente, esperando alguma palavra ou gesto que contrariassem tudo o que tinha dito até ao momento. Mas não podia negar, as considerações do outro tinham-no tocado profundamente. Doía-lhe o orgulho ferido, estúpido, por não ter percebido mais cedo — ou melhor, por ter percebido e ignorado, desconsiderando o assunto da sua felicidade terrena como algo de segunda categoria.

Shaka ergueu a cabeça para o hóspede e sem delongas perguntou-lhe se queria ficar ou se pretendia voltar para o seu templo. (Gostaria que ficasse).

— Isso depende de você, Shaka – devolveu Mu, semicerrando os olhos, mas sorriu ao perceber uma pontade de ansiedade na voz do outro. Shaka reparou no sorriso que se lhe desenhava nos lábios. – Se quiser que fique, eu fico.

Sentiu o cosmo do amigo elevar-se numa labareda quente, como que lhe pedindo para não rechaçar aquilo que sabia, bem lá no fundo, ser a sua vontade.

Limitou-se a uma única palavra; uma única sílaba não poderia denunciar a sua inquietação nervosa, curiosa por esta nova realidade que se lhe afigurava à sua frente.

— Sim.

O cosmo de Mu fez-se sentir junto do seu, como uma carícia gentil e extremamente paciente (sempre tão paciente), e sentia os seus pensamentos complexos desvanecerem-se para darem lugar a uma espécie de paz mental (emocional?) como poucas vezes sentira desde que voltara à vida. Gostava da companhia de Mu por isso – pela sutileza do ariano, quase mágica, que este possuía de se infiltrar por debaixo dos mais íntimos recantos da alma de Shaka. E Shaka era orgulhoso o suficiente para não o vocalizar, mas sentia-o. Haviam se passado anos, e ainda o sentia. Estava agradecido, bastante.

Era reconfortante ter alguém tão próximo sem ser tocado, Shaka concluía com um sorriso discreto, enquanto observava um sorriso semelhante desenhar-se nos lábios do ariano à sua frente.


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Notas finais do capítulo

comentários são sempre animadores e bem-vindos (inclusive os xingamentos).

shaka moon (11 de agosto de 2021)



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