Antônio só queria ser um piano escrita por Sirukyps


Capítulo 1
Único




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Antônio só queria ser um piano.

E, a cada reunião mundial, este desejo lhe atormentava mais.

E mais.

Apoiando o rosto sobre a mão, divagava.

A suavidade do percorrer entre as teclas brancas e negras já nem o permitia escutar a pauta do suíço.

Sorrindo bobamente, isto seria algo tão...

Sublime?

Fantástico?

O decrescer da melodia.

A suavidade da última nota.

Às vezes, imerso naquele mundo de inspiração, os lânguidos dedos austríacos só permitiam que o seu detentor abrisse os olhos ao final. Suspirando desapontado, agora, de longe, ele somente os observavam, ali, repousados sobre papéis sem nada escrever.

Até porque, eles não combinavam com canetas, e sim, com batutas, arcos de violinos. Supunha que tal talento seria possível, até mesmo, romper os selos do apocalipse apenas, acidentalmente, deslizassem pelos tons menores. Sem dúvida, ele enfrentaria a fúria oceânica pela oportunidade em ser agraciado por aquela vibração tão apurada, feroz, instintiva que, unicamente, o austríaco alcançava ao tocar.

E, isto seria tão...

Não.

Tomando um gole da água sob a desculpa que precisava acordar, cada parte do seu corpo o traía, implorando para ser uma das finas peças sonorizadas pelos talentosos dígitos.

Atingido por aquelas habilidosas mãos daquele país tão...

Cerrando o punho, forçava uma tosse para afastar os inoportunos pensamentos.

Desemprego?

Inflação?

Conferindo a pauta no amontoado de folhas a sua frente, àquela altura, o latino não fazia ideia acerca do assunto discutido com tanta veemência.

Saúde?

Educação?

Por que ninguém falava sobre paixão?  

Em sua defesa, não poderia ser repreendido. Afinal, que culpa tinha por naufragar na magia contida naquelas ametistas, as quais, embora igualmente distraídas entre possíveis composições, permaneciam com a capacidade de lhe furtar o espírito.

Roderich não sabia, mas houvera sido, exatamente, por conta das matinais melodias que nenhum canto marinho jamais o seduziu, pelas diversas vezes que estivera perdido pelo Atlântico. Agora, refletia acerca do quanto as sereias o invejaria se fossem contempladas com somente alguns segundos usufruindo das arrancadas notas em perfeita harmonia daquele país tão...

Tão...

Um acorde distante, advindo de algum despreocupado celular, recordava ao espanhol que o seu tempo havia passado.

E, naquele país tão...

Ele era um violino guardado.

A batuta quebrada.

Quem sabe até um surto de inspiração, onde, numa segunda lida, seria amassado e arremessado distante por se tratar de outro rascunho fracassado.

Espionando de esguelha o estimado país, recordava de cada uma das desculpas que ele criou por meses para convencer o marido acompanhá-lo na valsa do ducentésimo aniversário, a qual, apesar de bastante ensaiada, nunca fora dançada.

Refletindo, depois de tantos anos, será que eles ainda acertariam os passos?

Se bem que...

Não importava.

Aquilo já não valia nada.   

A regência e...

Não!

Ele era o país da paixão, cuja determinação lhe queimava a alma.

Em brasa.

Quente como o próprio inferno.

Desistir de algo o consumiria como um vulcão em erupção.

Desta forma, preferia ser destruído do que recuar e, tal atitude impensada já havia lhe tirado tirado colônias e a própria armada, contudo, conviver com o sentimento de não tentar o adoecia.

Por isto, terminando o copo de água e, talvez, só merecesse beber algo mais forte para... Escutando os lábios falar sem prestar atenção, quando chegou a aguardada pausa, o desastrado sonhador simplesmente marchou até o concentrado homem que já levantava.

E, quase se esquecendo sobre como equilibrar nas próprias pernas, cambaleou afrente, vomitando sem pensar muito:

— Roderich... Você... – De que raios falariam? Petrificado, o roxo naqueles olhos lhe recordava o entardecer e... Percebendo estes revirar, o cenho franzido pedia calma, enquanto se atrapalhava para continuar. – Você veio? 

— Como eu não viria? – Desgostoso, bronquearia, mas... Fitando as esmeraldas sem jeito, jamais admitiria que sentia certa saudade daquele casual nervosismo quando o “famoso conquistador” não sabia o que falar. Certa vez, chegou a explicar que peixes nadavam e... Suspirando fundo para manter a indiferença e resistir a vontade de ajeitar a torta gravata, baixou um pouco a guarda. – Sim, eu vim, Antônio. – O discreto riso estava cada vez mais inevitável conforme o ex-marido estava ainda mais sem jeito. Piscando calmo, interpôs. – E suponho que não consegue escolher algo sobre o que possamos conversar.

— Sim. – Coçando a nuca, os assuntos se entrelaçavam e tudo virava um grande nó. Talvez, nunca pudesse ser um piano, pois, iria conter um desastroso som. Deste modo, relaxando os ombros, confessou. – Nunca sei. Eu só... Eu só fico feliz quando o reencontro.

— Você não precisaria me reencontrar se... – A mágoa. Pensando bem, aquele não era o lugar. Pigarreando, corrigiu sem humor. – Você pode falar sobre como estão as coisas em sua casa. Sobre o Romano, talvez. Até mesmo sobre a Bélgica. – E, aos poucos, Roderich percebia o habitual sorriso espanhol aumentar em concordância, coisa que o idiota fazia quando esvaecia. E, para falar a verdade, a necessidade naquele momento, não era apropriadamente palavras, e sim, uma torta de amêndoas. Portanto, a sugestão casual. – Estamos no intervalo, por que não vamos comer algo?   

— Claro! Até sinto que meu apetite voltar.

— Antônio. – A moderada repreensão. – Você está se alimentando?

— Sim. – O riso educado, repleto de sotaque. Aproximando-se do casal, o francês depositava a mão sobre o ombro espanhol, ratificando ao austríaco. – Ele está.

E, por um par de segundos, o silêncio reinou guilhotinando casualidades, tortas e esperanças.

Baixando o rosto, Antônio jurava que a altiva mão lhe concedendo carinho, pesava como mil correntes. E, mais do que nunca, ele queria ser um piano, daqueles bem velhos, pesados e que muitos considerariam um fardo, somente assim, nada poderia separá-los das talentosas mãos.

Mas, não...

Ele...

Acobertando os carinhosos dedos com a própria palma, ele... queria afastá-lo?

Ele...

Eles...

Eles não... O radiante sorriso, recordava que, ali, brilhando ao seu lado, estava o melhor amigo. Como também, o constante lembrete que aqueles verdes campos agrícolas já não detinha o direito de sonhar com o estimado músico.

E, por mais que o germânico fosse, eternamente, sua composição favorita, não poderia o presentear com cravos, pois entre ele e o palco, os acumulados anos era uma disforme multidão.

Deste modo, percebendo-o afastar, também caminhou na direção oposta junto ao amigo. Contudo, ainda que fosse senso comum que somente tragédias emergissem de casamentos arranjados, a frequência com a qual os olhos se cruzavam de relance durante toda a segunda parte daquela reunião, apenas confirmava que, o entusiasmo que flamejava, mantendo vivo o seu país, não o fizera o único apaixonado.

E, intimamente feliz, Antônio sabia que por mais que ele jamais viesse a ser o esplêndido instrumento, a paixão que os unia transformava cada simplório encontro numa inesquecível sinfonia. Até porque, por mais que ele não pudesse ser um piano, considerava-os como teclas. Em unidade, cada um continha seu tom. Todavia, quando juntos foram dedilhados, reinaram, por duzentos anos, numa imperial melodia.


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