Uma espiadinha no futuro escrita por Laura Vieira, WinnieCooper


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

Essa fanfic marca meu início na vida fanfiqueira noveleira. Tomara que gostem ❤️



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O sol já ia alto na fazenda, Clara e Julião Júnior já tinham saído para ir a escola com o pai de carroça. Clara odiava ir a escola de carroça, ficava indignada de andar com seu salto e seu vestido justo chacoalhando pelas estradas esburacadas, mas Catarina achava que ela precisava sentir e entender, como ela em sua época, a importância das coisas simples da vida. Não que Clara fosse mimada, só achava a filha um pouco melindrosa demais, havia puxado bastante a ela, amava ler, escrever e acima de tudo, lutava a sua maneira, aos dezesseis anos pelos direitos das mulheres. Já Julião era seu completo oposto, havia puxado ao pai, amava a vida da roça e sabia tudo sobre a rotina da fazenda, da produção de queijo e laticínios, conhecia os animais como ninguém e já dava passos de que iria administrar tudo no futuro.

Depois de tomar seu café e conversar um pouco com Neca e Mimosa, resolveu ler. Fazia tempo que não mergulhava em um livro, escolheu um para se distrair, um romance de Machado de Assis.

Ao abrir o livro, já gasto pelo tempo, observou um envelope em sua primeira página. Ficou curiosa e leu o remetente e o destinatário:

De: Catarina Batista

Para: Catarina Batista.

Seus olhos se esbugalharam e ela começou a tremer levemente, reconheceu a letra, era dela.

Lembrou-se vagamente daquela carta, havia lido uma reportagem de um jornal, uma mulher tinha escrito uma carta a si mesma para só ler no futuro, era tudo o que lembrava.

Estava com o envelope em mãos, sua passagem para voltar ao passado, não tinha controle nenhum do que estava escrito ali, não se lembrava do conteúdo. Mas resolveu encarar, afinal era só um papel.

Rasgou o envelope pegou uma folha amarelada pelo tempo.

“São Paulo, 1927

Olá Catarina do futuro, tudo bem com você? Espero que meu plano tenha dado certo e que tenha escolhido um livro para reler no futuro, ficaria muito frustrada se tivesse morrido e não encontrasse essa carta, ou pior, tivesse a descoberto no momento errado.

Bom, deve estar se sentindo perdida, então irei explicar o que está acontecendo. Li uma reportagem no jornal de uma mulher que havia presenciado uma experiência diferente que, segundo ela, mudou sua visão de vida. Quando jovem, escreveu uma carta a si mesma relatando seus pensamentos na época, sua vida e sua visão de como estaria no futuro. Guardou a carta num álbum de fotografia e só a reencontrou vinte anos depois. Decidi fazer o mesmo.

Primeiro te situarei do que está acontecendo. Sim, como deve imaginar, estou expulsando todos os pretendentes que insistem em vir me cortejar. Tudo porque papai continua com a ideia fixa de me casar antes de Bianca. Toda essa bobagem de tradição machista que faço questão de findar. Bianca continua uma besta apaixonada por Heitor e vive me ameaçando com greves de fome para que eu noive, não acredita com quem: Petruchio...

Parou sua leitura da carta momentaneamente e ouviu a carroça do marido chegar. Observou-o da janela do quarto. Ele continuava igual, só que um pouco mais velho, os anos lhe trouxeram algumas rugas e cabelos grisalhos, mas sua pele continuava morena pela queimadura do sol e seus trejeitos, bom, ela podia lê-lo só de observá-lo descer da carroça. No momento achou-o preocupado, seus ombros estavam rígidos e bufou ao mesmo tempo que tirou o chapéu e passou a mão no topo de sua cabeça. Algo o preocupava.

Sorriu lembrando-se da carta, a Catarina de quase vinte anos atrás não sabia que decoraria todos os jeitos do Petruchio que ela supôs ser insignificante na época em que a galanteava.

...Talvez você não se lembre dele, foram tantos que nos cortejavam. Um dos últimos foi aquele vigarista do jornalista Serafim. Uma coisa que posso falar de Petruchio é que ele não é interesseiro igual a ele. Espere, nunca imaginei que falaria algo bom de Petruchio, ainda mais por carta, agora já está escrito e não vou rasgar e escrever outra. Provavelmente sequer se lembrará dele, então está tudo bem...

Petruchio entrou no cômodo em que ela estava e retirou seu chapéu bravo, ainda bufando.

— Vai ficar com essa cara o resto do dia? Ou está querendo me chamar a atenção? – não foi nada delicada com ele.

— Sua filha! Ocê sabe que Clara me deixa maluco!

Estava respondido, tentou entender como não havia pensado nisso ainda, Clara sempre o deixava nervoso, só queria saber o motivo desta vez.

— O que ela fez afinal?

Ele suspirou, olhou para a mulher e pareceu pensar se valia a pena dizer o que queria dizer a ela, abanou negativamente a cabeça.

— Não fez nada!

Catarina pensou na Catarina do passado, na certa gritaria com ele e reagiria completamente sem paciência para sua grosseria. Mas a Catarina do presente era diferente, conhecia-o suficiente para saber que algo não estava certo.

Não disse nada, deixou que o marido saísse do quarto e fosse cumprir seu trabalho pela fazenda. Anotou mentalmente que daria tempo para ele e que investigaria o que Clara fizera mais tarde. Voltou a sua carta.

...Segundo, a profissão que pretendo seguir. Bom, dei uma mudada nesse item, porque pasmem olha o que ela havia colocado em sua carta: Com quem pretendia casar e quantos filhos teria e seus nomes. Não pretendo casar nunca e com ninguém. Muito menos ter filhos. Se me casasse com Julião Petruchio, por exemplo, eu tenho certeza que ele iria querer um filho homem com seu nome, que homem machista não quer isso? Aliás, que tradição horrível, porque homens tem o direito de colocar seu próprio nome em um filho e as mulheres não? Não pretendo ter filhos, nunca sequer me casar, mas se tivesse uma menina com certeza se chamaria Catarina...

Parou sua leitura e começou a rir. É claro que ela havia se auto sabotado nesse item. Nunca sequer imaginou que colocaria sim o nome de seu filho com o nome de seu marido. Se lembrou do dia que decidiram o nome das crianças. Fazia poucos dias que tinha voltado da casa de seu pai, o bebê mexia em sua barriga e antes de dormir, fora a primeira vez que Petruchio o sentiu mexer. Ficou bobamente olhando para seu ventre, o beijava o tempo todo e lágrimas brotavam de seus olhos quando anunciou a ela o nome machista que havia escolhido se fosse menino.

— Julião Júnior, meu filho, papai tá tão feliz de sentir ocê pela primeira vez.

Catarina não sabia se fora os olhos brilhantes e lacrimejantes dele, ou se fora o fato de nunca o ver tão carinhoso e apaixonado antes, ou se ainda estava muito boba e apaixonada pela prova de amor que lhe dera quando descobriu quem havia pegado suas apólices, surpreendentemente não brigou com ele. Não brigou por pedir um nome machista para seu filho, não brigou por chamá-lo de seu filho, não quis quebrar o momento mágico. Simplesmente pediu:

— Se for menina, quero que chame Clara, o nome de minha mãe.

Petruchio concordou com a cabeça e deu um beijo em sua barriga.

— Eu gosto, é o nome da nossa fazenda e o nome de minha avó.

Lembrando agora do momento, achou que foi muito pacífica em relação a concordar com tudo tão rapidamente. Mas não se importava, achava que o nome dos filhos eram perfeitos para eles. Não conseguia imaginar nenhum outro.

...A profissão que pretendo seguir é ser uma pessoa revolucionária, tudo bem que não é uma profissão propriamente, mas quero mudar o mundo. Pretendo ser notada, conseguir que as mulheres tenham direitos como votar, que sejam tratadas com respeito e tenham voz e vez em tudo o que fazem, mesmo que para isso tenha que mudar de país, morar na Europa...

Com certeza sua vida não tinha tomado esse rumo, mas poderia dizer que sua profissão atual sim mudava de certa forma o mundo. Catarina escrevia para o jornal mais importante de São Paulo, era ouvida por várias pessoas importantes, mas mesmo sendo um cenário promissor, só tinha voz porque usava de um pseudônimo masculino. Escrevia com o nome: Joaquim Pereira.

Ficava triste em saber que nunca tinha tido uma chance com seu nome feminino, lembrou de todas as tentativas frustradas de se fazer ouvir com o nome Catarina Batista Petruchio. Só conseguiu uma chance de falar o que pensava quando decidiu, depois de muita dor, utilizar de seu nome Joaquim Pereira. O que a orgulhava era que sentia que fazia diferença na vida de algumas pessoas, e depois de muita luta, as mulheres finalmente puderam votar em 1934, sabia que tinha contribuído de alguma forma para que isso acontecesse através de seus textos e estudos.

Apesar de tudo, sabia que a luta não acabaria tão fácil e rapidamente. Esperava contribuir com muito mais, como conseguir empregos e salários iguais ao dos homens.

Ficou refletindo longos minutos com sua carta na mão, pensou em tudo o que havia passado, não se deu conta do tempo, nem do marido entrando novamente no quarto. Estava tão absorta em pensamentos que só notou a presença física dele quando este relou sua mão em sua testa.

— Ocê tá bem favo de mel?

Catarina piscou e o observou. Parecia preocupado com seu estado e lembrou de tudo o que já fizera por ela, mesmo sendo um chucro, como amava dizer, havia a ajudado a ter sua independência ao dirigir um automóvel, tinha respeito ao administrar a fazenda, Petruchio tinha orgulho quando lia todos os textos que fazia para o jornal, era o melhor pai que poderia ser, sempre orgulhoso e preocupado com os filhos, era carinhoso e preocupado consigo, mesmo depois de brigas com arremessos de vasos. Não poderia imaginar outra vida para si senão a seu lado.

Então Catarina o beijou carinhosamente, aproveitando seus lábios, os únicos que havia tocado sua vida toda, aproveitando suas mãos carinhosas em seu rosto, que sabiam trilhar caminhos que a faziam suspirar, mesmo depois de anos juntos, a sensação de frio na barriga e amor transbordava de seu peito e ela não poderia querer estar em outro lugar a não ser em seus braços.

Quando cessaram o beijo, Catarina o acariciou no rosto, passou os dedos pelas rugas de seus olhos e pela barba, agora com mais fios brancos que escuros. Olhou em seus olhos e disse tudo o que a carta havia mostrado a si.

— Obrigada. Por tudo.

Petruchio a encarou confuso.

— O que que foi que eu fiz? – perguntou com medo se afastando dela.

Catarina revirou os olhos diante da resposta a sua declaração.

— Não, tá querendo alguma coisa? – Petruchio apontou os dedos para ela. – Pior! Tá é armando alguma coisa contra mim! Oh Catarina, eu não tenho tempo pra suas armações não, fique sabendo.

A essa altura, toda paixão que tinha por ele foi momentaneamente esquecida e o primeiro vaso foi alcançado.

— Eu estou aqui, demonstrando todo meu amor e minha gratidão a você e é desconfiança que recebo em troca? SAIA DA MINHA FRENTE!

Anos de experiência fizeram o marido sair correndo do quarto antes que o vaso arremessado por ela atingisse a porta.

Catarina bufou nervosa e pegou a carta, resolveu ler o final antes da raiva a dominar novamente.

...Não sei se conseguiu realizar tudo isso Catarina, mesmo que não tenha uma profissão de destaque, que mude o mundo, mesmo em um cenário horrível (só não imagino casada com um chucro como Julião Petruchio), espero que esteja feliz e realizada. Feliz do rumo que nossa vida tomou, feliz em ser você em qualquer circunstância e essência...

— E você é feliz, mesmo que os rumos tomados para sua felicidade sejam completamente diferentes do que um dia imaginou. Você é feliz!

Falava com o papel como se ele fosse uma pessoa.

... Foi um prazer conversar com você, Catarina do Futuro.

— O prazer foi meu Catarina do Passado.

Apertou o papel contra seu peito, feliz por tudo o que tinha vivido e por todas suas escolhas caminharem de acordo com sua felicidade.

— EU NÃO QUERO FALAR SOBRE ISSO!

Ouviu Clara berrar ao mesmo tempo que arremessava um vaso em seu quarto. Catarina se levantou e foi em direção a filha, encontrou Petruchio e seu filho Julião parados na porta com uma feição nada feliz.

— O que aconteceu?

— Papai descobriu que Clara está apaixonada pelo Miguel.

Julião começou a dar risada ao mesmo tempo que Petruchio mantinha sua cara zangada.

— Vão fazer alguma coisa e deixem que converso com ela. VÃO!

Espantou os dois da porta do quarto e entrou pedindo licença. Sabia que a filha não tinha um temperamento fácil, tentaria começar um diálogo com ela de forma branda.

— ...O que Julião fofocou para você? – perguntou a mãe.

Clara demonstrou estar cansada, parecia exausta emocionante, como se estivesse travando uma luta consigo mesma.

— Pra começar eu não estou apaixonada e não pretendo ficar nunca! – se defendeu para a mãe antes que ela dissesse qualquer coisa.

— E por que essa alto defesa tão enfática?

Clara suspirou e olhou nos olhos da mãe.

— Hoje, enquanto íamos de carroça para a escola, Miguel acabou pegando carona de novo com a gente...

Miguel era filho de um sitiante que morava na estrada que dava para a cidade, um ano mais velho que ambos, sempre pegava carona com Petruchio para irem a escola.

— E...

— E que ele sempre me traz flores, que odeio, começou a me chamar de “sonho meu”, o apelido horroroso que odeio, me irritei e amassei as flores e disse para parar de me chamar daquilo e de repente... Papai começou a dar risada, disse que eu era igualzinha a você. Julião começou a dar risada e falar que iria me casar com Miguel, como você casou com papai, de repente papai estava bravo porque não queria me ver casada com qualquer um e começou a ameaçar o Miguel, que se ele me fizesse chorar um dia, ele o faria chorar também...

Clara continuou a se confessar, mas Catarina não ouvia mais, compreendeu tudo. A braveza de Petruchio, a confusão de minutos atrás e os vasos quebrados.

— ...Jamais me casaria com ele, sabe que Miguel é um chucro que tive a infelicidade de conhecer, acho que uma mulher tem muitas coisas para fazer antes de sequer cogitar a ideia de casar... Pretendo ser importante na sociedade, quero ser a primeira prefeita eleita de São Paulo!

— Entendi tudo... – disse a filha se levantando da onde estava sentada e procurando objetos na escrivaninha dela. – Tenho um conselho para te dar... – finalmente achou o que procurava. – Escreva!

Clara observou a mãe com um papel e caneta em mãos, mostrando que a solução era desabafar com um papel. Catarina resolveu explicar.

— Acabei de ter uma experiência incrível lendo uma carta que escrevi a mim mesma quase vinte anos atrás. Escreva tudo o que está sentindo agora, narre o seu mundo atual, diga o que espera para seu futuro. Por fim, a guarde em um livro, ou em um álbum de fotografia que sabe que permanecerá com você. Será a melhor experiência que viverá.

Clara aceitou o papel da mão da mãe e pensou alguns segundos se aceitaria o desafio.

— O que dizia sua carta? – perguntou curiosa a mãe.

— Escreva a sua e no seu tempo descobrirá tudo. Curiosa!

Deixou a filha a sós saindo do quarto. Sabia que aos dezesseis anos Clara não entendia nada das entrelinhas da vida. Ela por outro lado, adulta, dona de si e de seu destino, sabia que uma vida de casamento não significava abdicar de sua vida profissional, de suas ambições e de seus sonhos próprios. Nem era menos feminista por ter uma família tradicional. Torcia para que a filha conquistasse tudo o que almejava e acima de tudo, o que nunca imaginou conquistar.

Dobrou sua carta e a guardou: intrincada em si. Sorriu para o presente que vivia, sem traumas de seu passado ou medos de um futuro que ainda estava por vir.

 


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Notas finais do capítulo

Se você gostou e chegou até o final. Me diga o que achou, ficarei muito feliz. Obrigada por ler ❤️



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