O Anjo Entre Nós escrita por Tia Stephenie


Capítulo 1
Capítulo Único




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Bella crava seu olhar em mim sob a camada grossa de cílios, sentada na cama, o edredom violeta florido e velho entre os dedos. 

— Deixe-me viver, Edward — ela diz com a voz baixa.

Cerro os punhos. Ela não consegue enxergar o quanto eu a deixo viver? O quanto fiz para deixá-la viver?

— Eu deixo! — trovejo. Ela não se mexe um centímetro, há anos ela não se assusta com a minha voz.

Ela ergue a cabeça. Os fios finos do cabelo escuro, que um dia teve tom de chocolate, caem pelo seu rosto e ela os move com o dedo indicador. Ela me fita pelo máximo que pode, antes de seus olhos arderem e pequenas gotas de salmoura escorrerem por suas bochechas pálidas como a luz da lua do lado de fora da janela. Lágrimas correm pelas minhas bochechas também; dividimos tudo, até mesmo o que era para ser a sua coisa mais pessoal.

— Você não deixa — ela sussurra, a voz trêmula.

— Pare com isso, Bella. Você sabe qual o meu propósito não sabe? — Me sento ao seu lado.

— Pouco me importa.

Me viro para ela e seguro seu maxilar com as minhas mãos. Seu nariz está com um tom rosado, os cílios se uniram e os lábios estão inchados. 

— Fui criado para você, Bella. Nascemos ao mesmo tempo. — Ela fecha os olhos enquanto escuta a minha voz. — Eu não pude agir como um bebê naquela noite, eu tive que te proteger.

Ela franze o cenho.

— Me proteger?

— Oh, Bella! Imagine como fiquei vendo você, o meu destino, sofrendo? Você estava azul quando cheguei.

— “Pequeno milagre” — cita ela entre um murmúrio. O apelido que sua mãe lhe deu. — Você foi o milagre.

Solto o seu rosto e seguro suas mãos geladas em seu colo. 

 — Você é o milagre, Bella. 

Eu a ajudei com os tombos, com as escadas e com as aulas de educação física. Amava ver o seu rosto surpreso ao perceber que, na verdade, não caiu com a cara no chão, como pensava que ia acontecer.

— Eu não quero ser nada. Pare de me salvar, Edward. Deixe-me fazer minhas próprias escolhas.

Quero sentir raiva, mas o sentimento que corria em meu corpo era solidão. Não consigo mais trovejar, não quando ela não tem energia para sentir outra coisa além do que a solidão que a consome.

— Quer que eu te observe em uma banheira cheia de sangue e não faça nada?

Bella abaixa a cabeça. Pego os seus dedos finos e os coloco em meu peito, para que ela sinta o meu coração batendo por debaixo da camisa. Uma onda de respeito passa por nossos corpos.

— Não farei mais isso. Prometo.

Os cortes doeram em meus pulsos, mas o fluido quente e vermelho saiu somente de um corpo. Não era justo, nem um pouco justo. Por que uma garota como ela, pequena e frágil e perfeita, sente coisas que pessoas horríveis não sentem? A sensação me incomoda, mas me incomoda mais ainda que ela tenha que passar por isso.

— É seu dever me proteger, eu sei. — Ela respira fundo e encosta a cabeça no meu peito. Beijo o topo de sua cabeça, inalando o cheiro de morango de seu xampu. Puxo-a para mais perto e a seguro em meus braços.

Bella está com os dias contados, não viveria mais do que algumas semanas naquelas condições. Deus a criou, Deus lhe deu a vida, Deus lhe deu a mim, Deus autorizou a sua morte no momento em que ela foi concebida.

Nossos corações batem em sincronia. 

Tudum. 

Tudum.

Tudum.

O mesmo barulho, no mesmo segundo. Somos como um só. 

Sua depressão vai embora por um único minuto, a maior demonstração de tentativa que ela podia mostrar a Ele. Por que isso não pode fazê-lo mudar de ideia? Por que Ele não pode deixá-la no lugar que ela pertence? Nesse mundo, ao meu lado para protegê-la, enquanto ela se aventura como uma garota de sua idade? Há tantas dores em seu corpo esguio e nas olheiras que parecem pinceladas de tinta violeta em um quadro de marfim.

— Obrigada por iluminar a minha vida — sussurra Bella. Meus lábios se curvam nos cantos e fecho os olhos. 

A imagem da Bella bebê vem à minha mente; sua mãe a embalava, sentada numa cadeira no quartinho de Bella, decorado com tons de lavanda nos papéis de parede e no berço, com um lençol da mesma cor. Faço tudo ao meu alcance para que Bella sinta a segurança que eu senti naquele momento; a mãe cantarolando suave com a voz levemente falhada em seu ouvido, os movimentos de sobe e desce, os tapinhas leves nas pernas. Bella se aconchega em meus braços, um suspiro suave escapa de seus lábios.

Ergo o braço e acaricio sua bochecha de veludo, tão maltratada pelas noites de choro enquanto ela clamava pela volta de sua mãe. Numa dessas noites foi quando apareci pela primeira vez; vê-la chorar me doía tanto, que eu pensei que eu não fosse aguentar mais um segundo sequer daquilo. Foi a primeira vez em meses que ela dormiu tranquila; nos meus braços, com as minhas mãos acariciando seu cabelo no topo da cabeça enquanto seu corpo se moldava no meu. Tão pequena…

— Eu te amo, Bella — confesso, num suspiro. 

Ela sacudiu a cabeça negativamente, de novo e de novo. 

— Não diga isso, Edward. Não, não diga! 

Dobrei meus dedos em volta dos seus. 

— Eu te amo — repito. Ela tira sua cabeça do meu corpo e sinto falta do seu calor tangível. Ela me encara com a cabeça se movendo de um lado para o outro. 

O amor mais puro que pode existir, um anjo da guarda para com a sua humana. Nenhum ser humano conseguirá amar outro do jeito que eu amo somente na ponta dos dedos. Eu fui criado para ela, moldado especificamente para atendê-la. Deus me deu um dom enquanto soprava em meu rosto; “Que haja luz” Ele disse no momento que a garota estava fora do ventre. “Cuide dela” Ele pediu, me olhando nos olhos. Aceitei a minha bênção e o meu destino.

Minha pele incandescente clareia o quarto tomado pela escuridão — resultado do desinteresse que Bella tomou por luzes. 

Sinto vontade de salvá-la. 

Vou salvá-la. Quantas vezes forem possíveis e necessárias. 

Bella deita-se em sua cama e me deixa se aproximar. Deito-me com ela, um de frente para o outro. Ela me encara e eu a encaro. Bella e eu, prometidos um para o outro desde a concepção e a criação. Seria assim pela eternidade. Curvo-me e encosto meus lábios nos seus por um segundo, para que ela sinta o amor que sinto e isso afaste os pesadelos. 

Já se perguntou o porquê de bebês sorrirem enquanto dormem? Os pequeninos se comunicam com anjos enquanto sonham — assim como os adultos que são amados incondicionalmente por seus anjos.

Enquanto acaricio seu rosto com o polegar, ela cai no sono. 

Bella. Minha Bella. A pequena a quem eu devo tanto, mas ao mesmo tempo não devo nada. Bella, do sangue quente correndo nas veias, pequenas linhas azuis que rasgam por debaixo da pele pálida, que eu lutei tanto para manter circulando. Isabella, de quem eu sou cuidador.

As narinas do nariz pequeno e arrebitado se inflam enquanto, mesmo num sonho, ela tenta segurar o choro. 

Tão injusto.

Minha pele se apaga e ambos somos tomados pelo breu ao redor.

 

 

Quando acordo, Bella não está na cama. Olho para os lados; não está sentada na cadeira do computador, como costumava fazer pelas manhãs há um bom tempo — quando literatura ainda era algo que a interessava. Também não estava sentada no chão perto da janela, recebendo o pouco da luz matinal que Forks oferecia. Levanto-me da cama e ando para fora.

O barulho de potes de plástico se chocando chamam a minha atenção no corredor e eu ando até o banheiro. Lá está ela, de pé, como quem casualmente vai escovar os dentes; mas seu olhar diz o contrário. 

Seus dedos correm pelos frascos cilíndricos laranjas de remédios revoltos de etiquetas com seu nome. Apresso-me e tento puxar as pílulas de suas mãos, mas meus dedos passam por sua pele como se não existissem. Tento de novo e de novo, meu coração penetrante nos ouvidos. 

— Me dê isso, Bella! — grito com todo o ar que tenho nos pulmões. — Me dê, agora!

Ela se olha no espelho. Tento abraçá-la, mas meu corpo passa por entre o seu. Ela corre as mãos pelos braços, tentando conter o arrepio enquanto o corpo treme. Não apareço no reflexo do espelho, Bella está sozinha no banheiro, como sua mãe estivera há quase uma década.

O mesmo lugar. O mesmo ato. Mas… quem acharia seu corpo?

Angústia toma meu corpo enquanto minhas mãos suam. Ela coloca as pílulas de volta nos frascos e os segura no tórax enquanto anda em direção ao quarto novamente. Sigo-a como sua sombra, meu peito subindo e descendo enquanto minha respiração corta minha garganta como folhas de lixa.

Ela se senta na cama e vai para debaixo da coberta de flores violetas. Sento-me ao seu lado, mas meu corpo não faz peso na cama.

— Oh, mãe… — ela sussurra, olhando para o teto. — Sinto tanta falta de você, mamãe.

Sabia que ela pensava sobre seu pai também; mas não gostava de falar sobre a sua morte trágica num dia qualquer de trabalho. Em algumas noites, eu a ouvia sussurrar “Charlie, Charlie! Saia daí!”, mas nada além disso. Sua mãe recebia monólogos durante seus sonhos, sobre como elas viveram poucos dias juntas até que ela decidiu acabar com o que as duas tinham de melhor, a vida.

— Não vejo a hora de te ver novamente — sussurra ela, ajeitando a cabeça no travesseiro. Há um copo de água na mesa de cabeceira.

— Não faça isso, Bella — tento mais uma vez. 

Ela fecha os olhos e respira fundo. Minhas mãos estão trêmulas, como as dela. Sento-me ao seu lado, as costas encostadas na cabeceira. Minhas mãos atravessam seu corpo quando tento acariciar o topo de sua cabeça e ela estremece mais uma vez. Meus batimentos cardíacos se estabilizam enquanto eu a encaro.

Não há nada que eu possa fazer além de ser uma sombra na parte de trás de sua cabeça, uma pequena lembrança de que ela não está sozinha.

Tudum.

 

Tudum.

 

Tudum.

Ela se senta na cama e espalha o conteúdo dos frascos no edredom. Soporíferos. 30 cápsulas de um, 30 cápsulas de outro. Ela repassa as descrições dos hipnóticos como se cochichasse uma fofoca para um amigo. “Induz o sono”, “rápido e intenso”, “diminuição dos reflexos” é o que consigo ouvir.

Tento tocar nas pequenas pílulas, mas elas não se mexem um centímetro sequer. Bella prende o cabelo em um coque morno e pega o copo de água em sua mesa de cabeceira. O primeiro comprimido passa pela minha garganta como a ponta de uma faca de pão raspando na pele. O segundo foi mais afiado, como um espinho de peixe. O terceiro não passou de um leve desconforto. Ela enche a mão e toma um bocado de uma vez — esses eu não sinto.

Em poucos segundos ela acaba com metade das cápsulas. Ela toma toda a água do copo e encosta as costas na cabeceira, apoiando o topo da cabeça na parede. 

Não há velas para se apagar. Não há uma luz acesa na casa. É apenas Bella e o que sobrou em seu edredom.

O sol nem mesmo pensa em se arrastar do lado de fora.

Em poucos minutos os primeiros sinais do efeito dos soporíferos apareceriam. Qual a atingiria primeiro, a passividade ou a falta de força nos músculos? Como seu estômago aguentaria tanto de uma vez?

Deitei-me na cama virado para ela. Gotículas de suor se formam em sua testa, se acumulando nas linhas de expressão recém adquiridas. Ela fecha os olhos e respira fundo.

— Eu tentei — ela murmura com dificuldade, como se algo estivesse preso em sua garganta.

Ela também se deita e se vira para o meu lado, como se pudesse me ver. Um risinho escapa de seus lábios e ela franze o nariz.

— Eu sabia que você estava aqui — ela sussurra. Franzo o cenho. — Obrigada pela companhia.

Ela estica a mão e pega a minha para entrelaçar nossos dedos. Sua mão está gelada quando encontra a minha.

— Consigo te sentir tanto agora… — Ela puxa minha mão para segurar o seu rosto como se fosse uma concha. Em contraste com os dedos, sua bochecha está fervendo. — Oh, Edward.

O que acontecerá com aqueles olhos grandes e os lábios levemente inchados quando um dia encontrarem seu corpo sem vida? Bella é linda, não é essa a imagem — nem o fim — que ela merece. A falsa paz em seu rosto com os lábios curvados em um sorriso minúsculo enquanto inspira o cheiro em meu pulso não combina com a situação. Se não há paz, não é o que ela deve sentir.

— Por quê?

— Já foi. — Ela se aproxima de mim e se encaixa em meu peito. — Não há jeito melhor de ir. Vai ser como se eu estivesse dormindo, não vai?

— Eu… eu não sei, Bella. — Coloco a mão livre em suas omoplatas, sentindo os ossos nas pontas dos dedos, palpável mesmo através do suéter cor de chocolate.

— Eu sei que vai.

Aperto-a com força em mim.

Poderá eu perdoá-la um dia por ter feito o que fez? Por não ter resistido ao afogamento, mesmo enquanto eu implorava todos os dias para que boiasse só mais um pouco, até a ajuda chegar? Ela afirmava que a ajuda nunca chega, que no final de tudo ficamos sozinhos; vamos do mesmo jeito que viemos. Não concordo. Nunca concordei, mas ela não me ouvia.

As minúsculas fissuras em sua alma pura e bela se abriram mais e mais com cada pequena ventania e micro tempestade, como um tecido posto no varal para secar sob o sol por uma eternidade; se rasga nas pontas, se rasga no meio, até enfim cair no chão.

— Eu te amo, Edward — diz Bella, o som da sua voz abafado no meu peito.

— Eu te amo — digo de bate-pronto. 

E eu a amo. Amo tanto que poderia morrer em seu lugar todos os dias por mil anos; é para isso que eu fui criado, não é? Para amá-la e servi-la e ser completamente seu. Talvez meu amor tenha sido demais e sua morte seja o nosso castigo — mais meu do que dela, já que quem pecou foi eu. 

Me apaixonei mais e mais a cada segundo que passávamos juntos. A cada ida ao quintal, para que ela pudesse ler seus livros sentada na grama terna em certos momentos do ano. A observava de longe para dá-la privacidade; amava ver seu sorriso, mesmo que minúsculo no meu campo de visão, quando algum personagem nas letras cravadas no papel fazia alguma coisa e ela reagia em voz alta.

Mesmo com o rosto encostado em mim, sabia que ainda era linda. Mesmo com seu corpo processando pelo menos quarenta pílulas de soporíferos. Mesmo naqueles segundos antes do seu sono bater.

Não seria somente Bella, eu estaria com ela até o fim. Vamos como viemos, não é? Ela vai comigo, assim como eu vou com ela.

Meu corpo amolece um pouco, me avisando que não há volta. A sensação é deleitosa, quase como sentar-se em um campo de flores durante o pôr-do-sol da primavera. Não dá medo em mim e sei que não dá em Bella. Nesse momento, sei que aquela é a sua linha de chegada, a listra pintada no chão com tinta vermelha.

Talvez seja isso que ouriços e marmotas sentem ao poupar energia durante o inverno.

A respiração de Bella desacelera aos poucos em meu corpo, o sobe e desce do seu peito cada vez mais devagar.

Meu coração está lento nos ouvidos. Beijo o topo de sua cabeça e ela dá uma risada fina e preguiçosa, quase imperceptível. 

Estou cansado demais para mexer os membros. Quero dizer que a amo mais do que tudo, mas minha língua não se mexe; não sinto meu palato na ponta dela. Talvez meu palato nem exista mais, naquele momento. 

Não há paz, mas também não há medo. Não para Bella, não para mim. Eu a acompanharei até que ela conheça seu criador; sei que ele será amoroso, entenderá as circunstâncias. Tudo deve isso a ela. Eu devo isso a ela. Andaremos até os portões dourados do paraíso de mãos dadas, minhas asas à mostra, mas não para protegê-la. No amor não há temor — e eu não temo.

Serei sua concha, seu escudo, sua proteção até o fim. Até o momento em que juntos nossos corações pararão de bombear sangue. 

Pisco devagar demais. Já nem sinto o corpo de Bella encostado no meu, mas sei que ela ainda está ali porque eu a observo entre uma piscada e outra. Cada vez mais demoro para abrir os olhos.

Charlie não está aqui para enterrar sua única filha e eu fico feliz com isso. Sei que mesmo se ele não tivesse morrido há poucas semanas, Bella acabaria do mesmo jeito. Talvez de um jeito pior, com a arma de seu pai à mostra. 

— Eu… — ela tenta dizer algo. Mantenho meus olhos fechados, minhas pálpebras pesam uma tonelada. — Eu… Edward.

E sem aviso, a profecia começa a se cumprir.

“Diga-me porquê, Pai.”

“As coisas acontecem como têm de acontecer.”

Olhei para Bella sentada em sua cama, os dedos entrelaçados no colo enquanto lágrimas se formavam em seus olhos castanhos. Era seu aniversário de quinze anos. Seu pai a comprou um bolo, ‘Feliz aniversário Bella’ decorava o topo do chantilly, escrito com uma substância açucarada lilás. Ela sorriu para ele em agradecimento, mas seus olhos não se mexeram.

Ela comeu o bolo em garfadas grandes, como se estivesse atrasada para algum compromisso. Seu pai a olhava pelo canto do olho, apoiado na pia da cozinha. Me levantei do sofá e andei em sua direção; ela me olhou por um segundo e abaixou o rosto, como se eu não soubesse o que ela sentia. 

 

Eu também te amo, Isabella. Eu… também...

 

— Pequena Bella, onde você está? — perguntou Renee. Eu estava parado ao lado da porta do quarto de Bella, observando tudo. 

Bella deu um risinho e a cortina se mexeu enquanto ela tampava a boca com a mão. Renee olhou para os lados como se a procurasse e bateu as sapatilhas com força no chão. Ela andou até a janela e se pendurou, gritando por Bella, que riu novamente.

— Que som é esse? — Ela passou os dedos pela cortina e puxou de uma vez, revelando a miúda Bella de pouco mais de cinco anos. — Achei você!

— Mamãe! — Bella pulou no colo de Renee, que a esmagou em seus braços. Uma risada escapou de minha boca.

 

Tudum.

 

— Mãe? Mamãe, você está bem? — Bella caiu de joelhos no chão do banheiro; o rosto de Renee estava encostado no chão, o corpo mole como o de uma água viva. — Charlie! Charlie! — Bella gritou com o máximo de seus pulmões.

Charlie apareceu na porta segundos depois, os olhos arregalados e a boca entreaberta. Ele mexeu no corpo de Renee, que não respondia ao toque. Sem dizer uma palavra ele se levantou e correu para o andar debaixo, para pegar o telefone. Olhei para Bella, que sacudia sem parar o corpo da mãe enquanto gritava seu nome, esperando-a responder.

Na pia do banheiro havia uma pilha de potes alaranjados abertos.

Bella se deitou no corpo de sua mãe e gritou até suas cordas vocais não aguentarem mais.

 

Tudum.

 

Eu andava de um lado para o outro. Bella estava com o edredom arroxeado por cima do rosto, tentando abafar seu choro; sabia que se fizesse muito barulho Charlie apareceria para acalmá-la. Eu estava indignado com tamanha injustiça; ela era perfeita, por que tanto sofrimento? 

Seus balbucios clamavam por sua mãe, além de ajuda porque não sabia mais o que fazer. Algo estava errado em Bella e eu queria poder ajudá-la. Ela se virou para o lado numa tentativa falha de ir dormir, mas os soluços se intensificaram. 

Sentei em sua cama me preparando psicologicamente para chegar mais perto. Deitei-me ao seu lado e coloquei a mão sobre o seu braço. Havia tanta angústia somente naquele toque; queria tirar o que ela sentia o mais rápido possível, mas Deus não tem pressa. Ela se aquietou por um segundo.

Bella se virou e me fitou, os olhos levemente arregalados — mas ela sabia que não precisava temer, nós tínhamos o mesmo cheiro, a mesma composição, a mesma vida. O lábio inferior se projetou para frente e lágrimas voltaram a correr de seus olhos. Sorri para ela e ela chegou mais perto, encostando sua cabeça em meu peito. 

Acariciei a sua nuca, beijando o topo da sua cabeça de vez em quando. 

Pela primeira vez em muito tempo, Bella dormiu uma noite inteira.

 

Tudum

 

— Prometa-me que você ficará ao meu lado quando eu estiver morrendo, Edward — disse Bella.

— Eu não quero falar sobre isso. 

Ela fechou seu livro em um estalo. Um sorriso brincalhão coloriu seus lábios e meus pulmões se encheram.

— Todo mundo vai morrer um dia, eu só espero que você esteja lá quando for a minha vez. — Ela se levantou da cadeira da escrivaninha e andou até a janela. Estava ensolarado do lado de fora, graças à transição da primavera para o verão.

— Você sabe que eu estarei segurando sua mão quando você estiver bem velhinha.

Ela me encarou por cima do ombro e sorriu. Eu gostava dessa Bella, a que brincava, mesmo que sobre a morte. Seus quadris se mexiam de um jeito diferente nesses dias, como se ela se movesse sem precisar do esforço como nos outros dias. Seus olhos também eram diferentes, saíam do tom opaco de chocolate amargo e tomavam uma forma mais calorosa e brilhante. Sabia que nos dias a seguir ela teria uma recaída, mas vê-la assim pagava tudo.

Ela mordiscou o lábio inferior e andou para fora do quarto, me olhando por um segundo antes de passar pela porta — seus olhos estavam crispados e seus dentes à mostra. 

Ri enquanto me levantava de sua cama e andava atrás dela. 

Suas mangas do suéter chocolate estavam dobradas até os cotovelos enquanto ela corria para o lado de fora pela porta dos fundos. Sua pele pálida resplandeceu quando o cintilar do sol a tocou. Ela se sentou embaixo de uma árvore enquanto eu passava pela porta.

— Você gosta do verão, Edward? — perguntou Bella. 

Eu gostava da sua reação ao verão. Quando a via daquele jeito, sorridente e brincalhona e comunicativa, era como se eu estivesse cumprindo o meu papel do jeito certo. Eu fui feito para amá-la, então eu a devia sorrisos.

— Sim, eu gosto.

— Eu também. O jeito que os pássaros cantam aqui perto nessa época do ano faz tudo valer a pena.

Caminhei em sua direção sem pressa. Ela sorriu para mim mais uma vez antes de olhar para o céu. 

— Olha só! — Ela apontou para o céu atrás de mim e eu me virei para olhar. Pássaros brincavam voando de um lado para outro, como se eles também estivessem aproveitando a ocasião rara que era ter a presença de Bella ali. Sorri para eles.

Bella envolveu minha mão com seus dedos e me puxou para baixo, me fazendo cambalear. 

— Calma — sussurrei sentando-me ao seu lado. Ela passou seus braços pelo meu e encostou sua cabeça no meu ombro. Bella respirou fundo.

Eu a observei; o cabelo solto que reluzia em tons avermelhados caia em cascatas pelo seu tórax, a ponta do nariz estava levemente corada por conta da brisa ainda gélida e seus olhos estavam fechados, os longos e grossos cílios quase acariciando as bochechas.

Sorrio para ela.

 

Tudum.

 

Um grito escapou por entre meus dentes e segurei meu punho direito. Eu não sentia meu coração batendo, a dor em meu braço não deixava espaço para nada em meus pensamentos. O que era aquilo? Qual era o significado disso?

E em poucos segundos eu gritei de novo.

Caí de joelhos no chão, a dor vindo de ambos os punhos. Respirei fundo, tentando me acalmar, mas minha visão estava começando a ficar embaçada nos cantos. Minha pele estava quente ao toque, mas não havia nada de diferente.

De onde vinha a dor?

Fechei os olhos e respirei fundo, ficando de pé com um pouco de dificuldade. Cambaleei para fora, me segurando no batente da porta para não ir para o chão novamente.

Como se não fosse o suficiente, a quentura aumentou de novo, mais alguns centímetros no lado esquerdo do corpo, como se eu estivesse sendo cortado... repartido. Dilacerado.

Cerrei os punhos e respirei fundo. Precisava procurar Bella, para protegê-la do que quer que fosse aquilo.

Bati na porta do banheiro algumas vezes, mas ela não me respondeu. A chamei pelo nome, sem resposta novamente. Girei a maçaneta e a porta estava destrancada.

E a cena na minha frente era a coisa mais aterrorizante que alguém podia presenciar.

Bella estava deitada na banheira com os olhos fechados e o rosto mais pálido do que de costume. A água cobrindo seu corpo tomava um tom escarlate aos poucos.

Era... ela?

Foi Bella quem causou a dor?

Uma pequena lâmina estava apoiada na borda da banheira.

— Bella, o que é isso? — Corri ao seu encontro, ficando de joelhos no chão ao seu lado. — Bella?

Ela abriu os olhos em minha direção lentamente e os fechou de novo.

— Bella, o que você está fazendo?

A minha visão se tornou mais turva, como se eu estivesse enxergando através de uma película oleosa. Levantei as mãos e a segurei pelo ombro, sacudindo seu corpo.

— Bella? — Trovejo. Precisava que ela acordasse, me dissesse que aquilo não era verdade, que ela estava pregando uma peça em quem quer que fosse. Aquilo não podia ser real. Não, não era!

Levantei-me e saí do banheiro. Meus joelhos tremiam com cada passo, mas mantive-me firme de pé. Enquanto a dor nos pulsos cessava, a dor em meu coração tomava o lugar. A minha amada, a pessoa que eu deveria proteger, se feriu. Deus deixou que ela se machucasse.

Tentei correr escada abaixo, mas meu pé travou no antepenúltimo degrau e eu caí no chão; a dor triplicou, mas não importava. Eu precisava me superar, precisava tomar forma, tomar jeito, fazer algo. Não deixaria mais nenhuma injustiça acontecer com Bella.

— Charlie! — Gritei com o ar disponível em meus pulmões. — Charlie, por favor me escute.

Ele estava sentado no sofá da sala, uma xícara de café entre os dedos enquanto assistia o noticiário. Apressei-me e parei ao seu lado, tocando em seu ombro. A isso ele respondeu, estremecendo-se enquanto um arrepio eriçava seus pelos.

— Charlie, por favor, ajude Bella — supliquei. — Sua filha está em perigo.

Ele franziu o cenho e olhou para a direção de seu ombro, que eu pressionava com os dedos, com toda a força que eu conseguia fazer apesar da ardência nos punhos.

— Bella está morrendo, Charlie.

Ele olhou ao seu redor por um segundo, apoiou a xícara na mesa de centro e depois ficou de pé.

— Bella, você me chamou? — Perguntou Charlie, andando em direção à escada.

— Seja mais rápido, Charlie — sussurrei.

Num impulso ele correu para o andar de cima e parou na frente da porta do banheiro. Antes mesmo de conseguir arregalar os olhos e se perguntar o que era aquela cena, ele desceu novamente e foi em direção ao telefone colado na parede, decorado por Bella com pequenos adesivos de cachorro, já desgastados.

Respirei fundo e voltei para cima.

 

Tudum.

 

Tão pequena. Ela nasceu tão pequena. Três quilos e duzentos gramas. Quarenta centímetros. Bella, como sua mãe a apelidara, seria miúda, eu já tinha certeza disso. Sua mãe dormia pesado no quarto enquanto ela estava no berçário do hospital. Foi um parto… complicado. Um dia de trabalho de parto, para uma cesárea de emergência — havia demorado demais.

Entretanto, a única coisa que importava é que ela estava ali, viva, os braços e as pernas se mexendo sem parar, subindo e descendo. Aproximei-me dela e segurei a sua mão com o polegar. Ela olhou pra mim, mas eu sabia que naquele momento sua visão não estava formada o suficiente para me enxergar tão de longe; então me inclinei e cheguei mais perto, dando um beijo rápido em sua testa.

Ela se mexeu mais depressa, as mãos firmes segurando meu polegar.

Ah, como eu a amava. Amava suas unhas delicadas e perfeitamente moldadas, os braços gordinhos, a barriga cheia, a cabeça careca.

Bella seria perfeita. 

Conseguia imaginar todo seu caminho pela frente, com pais tão apaixonados por ela quanto eu. Seria tão querida no mundo como era quando ainda estava no ventre, se não mais. 

Sua respiração pesada me arrancou para fora de meus devaneios e eu olhei seu rosto com mais atenção, tentando entender o que acontecia com seu corpo. 

Um som ruidoso saía de sua garganta e um tom lilás tomou seu rosto.  Seu ruído se tornou uma tosse pequena e quase imperceptível. Bella… Tão cedo… 

Cedo demais.

E essa foi a minha motivação para me mexer e largar seu dedo para fazer algo que talvez não fosse o que eu tinha que fazer. Deus disse que eu deveria cuidar dela, não foi? E eu cuidaria.

Corri para o corredor esbranquiçado do lado de fora, para perto de uma enfermeira neonatal que prendia o cabelo cacheado em um coque. Enquanto eu andava em sua direção ela se virou para sorrir para uma colega que passava e parou do seu lado.

 — Ajude Bella — disse, sem efeito. Toquei em seu ombro e ela olhou em minha direção, mas não para mim. Ela se virou para a sua amiga novamente, que se despediu e andou para longe no corredor. — Ajude Bella.

E eu repeti e repeti, apertando-a com mais força nos braços e nos ombros, até que ela me ouvisse. Eu faria o necessário para ela me ouvir. 

Seus pêlos dos braços expostos pela camisa verde se eriçaram.

Poucos segundos depois ela andou em direção ao berçário e se aproximou de Bella, que estava com o rosto tomado pela cor roxa.

— Ajude Bella. 



Tudum.





Tudum.

 




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Notas finais do capítulo



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