even if we meet (someday) escrita por antônia


Capítulo 1
we won't recognize each other.




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Acontece por acaso, como todas as outras coisas. O garçom tinha cometido erro, mas também, pobre coitado, não era culpa dele: o restaurante estava praticamente lotado por causa da reunião do grupo de crochê da quarta avenida e também era dia das crianças, que não paravam de correr pra todo lado; o garçom tinha que ir e vir o tempo todo, não é culpa dele que ele confundiu a mesa 6 com a mesa 9. Esse tipo de coisa acontece. Por acaso.

 

E James Potter nem percebeu que estava com o cartão de outra pessoa, até porquê, nos dias de hoje, algumas ações são automáticas: a gente tira o cartão da carteira, entrega pro garçom, espera receber o cartão de volta, coloca na carteira e uma vez ou outra olha pro valor no recibo, só pra conferir se foi vítima de golpe ou não – e ainda tem gente que prefere ser mais prático e nem usa um intermediário de plástico com um chip, prefere usar um dispositivo eletrônico que também serve para mais umas mil e uma coisas. De qualquer forma, não era como se James Potter pudesse culpar alguém por uma desatenção que também tinha sido sua.

 

A burocracia era um problema, mas, nos dias de hoje, nem é tão complicado assim, é? Ele podia ter cancelado o cartão em alguns toques, bastava ter força de vontade. Se ele preferiu reclamar com os amigos, foi escolhe dele.

 

E também foi erro dele em pensar que a pessoa que estava com o cartão dele, Lily M. Evans, fosse cortar o cartão no meio e seguir a diante. Não. Por que ela faria isso? Talvez ela tenha percebido, até porquê, nos dias de hoje, algumas ações são automáticas.

 

Pra ser sincero, quando ele recebeu a primeira fatura pelo correio e descobriu a existência de um parasita na sua conta corrente, ele achou divertido. Era uma dessas coincidências que só acontece nas grandes cidades, com pessoas que nunca mais vão se ver de novo e que permanecem na condição de estranhos, eternamente.

 

Decidiu ver com o que Lily Evans tinha gasto o seu dinheiro e, se fosse uma brincadeira inofensiva, não via o porquê de não continuar com tudo aquilo: seria uma história engraçada para contar no futuro, sem dúvidas. No entanto, impôs uma regra unilateral: não procuraria saber quem ela era, as coisas teriam que acontecer naturalmente – por meio de uma série de coincidências e acasos, na grande metrópole de Londres.

 

Mostrou sua existência, de forma cautelosa. Com a identidade de Lily M. Evans – qual nome será que estava escondido pela letra M? Marie? Margaret? –, frequentou algumas cafeterias, comprou dois livros e um maço de cigarro, apesar de não ser um fumante em exercício. E então esperou. Estava sempre a espera do pior: o dia em que o cartão daria como cancelado ou então questionarem o por quê dele usar o cartão de Lily M. Evans quando ele era outra pessoa.

 

Quando o envelope do banco chegou no mês seguinte, ele se sentiu ansioso. Seus dedos formigaram enquanto ele abria a correspondência, mas, antes de procurar entre a lista de gastos o que tinha sido seu e o que tinha sido dela, se perguntou se aquilo não era um comportamento paranoico ou obsessivo; talvez fosse melhor cancelar o cartão e acabar com toda aquela ilusão que tinha criado nas últimas semanas. Por fim, cedeu a tentação: olhou os registros e apontou as coisas incomuns. Livros; ingressos de cinema; roupas; restaurantes; cafés; supermercados e flores – parecia uma provocação, um ultimato, um convite: a primeira pessoa a se incomodar perde.

 

E assim continuaram. Ele decidiu abrir exceções a sua única regra e visitou duas vezes o endereço do cinema na fatura e, talvez, ela tivesse decidido fazer o mesmo, já que James Potter reconheceu a livraria onde ela passou a comprar seus livros, era a mesma em que ele tinha feito suas compras.

 

Descobriu que ela havia comprado chocolates como presentes de Natal. Ele, por sua vez, tinha decidido comprar bebidas, era sempre uma ótima escolha.

As cafeterias que ela frequentava eram próximas ao escritório de James e ele se perguntou se já não haviam se esbarrado alguma vez e por causa disso, se permitiu imaginá-la. A criou sendo um pouco mais alta que o normal, com cabelos castanhos na altura do ombro e sua personalidade… ela era como ele, esperando algo acontecer, por acaso.

 

Não contava para os seus amigos sobre toda a experiência. Era algo que queria manter como segredo, não só por não querer parecer um maluco, mas também para não arruinar aquele acontecimento único que estava vivendo. Seria uma história engraçada para contar, mas no futuro, quando chegasse ao fim.

 

Foi por meio de observações que percebeu que todo dia 12, Lily M. Evans ia ao cinema no quinto quarteirão abaixo do restaurante onde tudo tinha começado. O horário variava muito pouco: geralmente o ingresso era comprado entre as 19 e 20 horas e essa percepção o deixou ansioso. Era uma chance de conhecê-la, ele tinha certeza. Mesmo se não conseguisse desvendar quem ela era naquela primeira ocasião, poderia tentar novamente no próximo mês, excluindo as pessoas que não repetiam a visita.

 

Mas era também medonho.

James Potter havia criado uma ilusão, alguém que se sentia confortável em criar conversas sobre o espaço, sobre Londres, sobre livros e sobre filmes e o que aconteceria se sua ilusão e a realidade fossem contrárias? Não seria melhor manter a experiência da forma que ela estava? Inalcançável, distante, impossível?

 

Por que James Potter nunca havia dito, nem para si mesmo, que tinha se apaixonado por uma completa estranha, mas as evidências mostravam justamente isso. E ele desejava, sabia que desejava, descobrir o seu rosto, descobrir quais filmes eram os seus favoritos, quais autores gostava de ler, o que geralmente pedia em todos aqueles restaurantes que tinha visitado e, acima de tudo, o por quê de não ter cancelado o cartão por todos aqueles meses após o equívoco do garçom, que confundiu o número 6 com o número 9.

 

Por fim, cedeu a vontade, sob algumas condições. Decidiu levar o seu corpo, só uma vez, ao cinema e deixar o acaso responsável pelo resto; seria o mais longe que ele iria. Após aquele evento, se não a encontrasse, desistiria e voltaria a viver como antes, no mundo dos desencontros.

 

Comprou o ingresso para o filme com o horário mais próximo, às 20h20.

Sentou-se numa cafeteria e olhou para as pessoas: será que ela estava ali?

Sentiu o seu coração bater mais rápido e respirou fundo.

Repetiu para si mesmo que as coisas acontecem quando tem que acontecer.

O movimento foi automático, porque nos dias de hoje, algumas coisas são assim: tirou o cartão da carteira, entregou para o garçom e olhou para os sapatos enquanto tentava controlar os pensamentos: será que ela estava ali?

O movimento foi automático, porque nos dias de hoje, algumas coisas são assim: devolveu o cartão a carteira e olhou rapidamente para o recibo, checando se não tinha sido vítima de algum golpe.

 

Quando decidiu jogar o cartão fora, no dia seguinte, James Potter percebeu o seu nome gravado no objeto de plástico. Sorriu. Seria uma história engraçada para contar no futuro, sem dúvidas.


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Notas finais do capítulo

Obrigada, Bruno, por ler tudo isso e dizer que estava "bastante razoável".

Li esse texto do Juan José Millás hoje de manhã e, como era dia dos namorados, pensei em adaptar para o meu casal favorito... e provavelmente o único que consigo escrever sobre. Não sabia muito bem o que fazer para o final e, como queria publicar a história ainda hoje, também não tinha muito tempo para refletir nessa questão.

Eu, particularmente, adoro essa temática de encontros e desencontros em um espaço urbano e não queria perder a chance, então espero que, se você chegou até aqui, tenha gostado, mesmo que concorde comigo que vários pontos poderiam ter sido mais bem elaborados.

Feliz dia dos namorados! (eu acho)
Com amor,
antônia.



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