Martírio. escrita por Sevenhj777


Capítulo 3
Intuição.




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Lapsos de memória se entrelaçam de maneira crescente, num evento em cadeia que envolveu o passado e o presente. Nos campos do Gulag, operários são feitos de escravos, minerando em troca de pão e massa. Ao fundo, experimentos, canibalismo, estupros e saques. 

 

A pobre criança, escondida dentro do armário, foi puxada para fora, sendo arrastada pelos enormes corredores que se estendem por todo o quartel. Ao ser presa firmemente numa cadeira, olhou assustada para aqueles soldados soviéticos. Para ela, eles são como monstros; monstros que violentaram sua única família, monstros que o fizeram de escravo. 

 

A boca ficou seca, e os gritos não saíram mais por falta de força. Um gosto amargo de ferrugem invadiu-lhe a boca, e a sensação friorenta de uma agulha injetando algo em sua espinha. 

 

— Parem, por favor! — Foi seu último grito, antes de tudo ficar repentinamente escuro. Um vazio imensurável, um silêncio ensurdecedor e um peso absurdo nos ombros. É o mais próximo do inferno na Terra.

 

Aquela criança não está mais lá. Agora, um monstro em forma de gente, com olhos mergulhados num negro forte e os canídeos saltados para fora. Mesmo tão pequeno, pôde arrancar a espinha dorsal de um soldado caido no chão, quebrando o monte de ossos simplesmente com a pressão dos próprio dentes. É uma verdadeira fera, uma máquina mortífera criada pela ambição dos soviéticos para fortalecerem seu exército.

 

De repente, a luz o alcançou.  

 

A "criança" se levantou num susto, com o corpo coberto por suor e uma sensação febril. Os olhos azuis se arregalaram, ainda com enorme dificuldade para associar o que está acontecendo. Desnorteado, olhou para as próprias mãos e deixou um breve suspiro de alívio escapar. Felizmente foi só um sonho, ou talvez um fragmento de memória – a amnésia não o permite diferir ambos. 

 

Agora deve ter por volta dos dezessete anos, mas a pouca idade não impediu o governo de colocá-lo num dos experimentos mais desumanos da história da humanidade (se é que um vampiro pode ser classificado dentro desse círculo). 

 

Ele se levantou com certa dificuldade, o que deixou exposto o tronco nu e magro, modelado por alguns músculos não tão chamativos. No peito há a imagem tatuada de Stalin, certamente um dos homens mais respeitados por aquelas terras. Ou pelo menos era o que costumava ser, até sua morte. Agora, o legado de massacres e opressão que ele deixou para trás segue firme e forte, e um dos maiores oprimidos desta ditadura, estranhamente, tem no corpo a imagem de seu maior opressor. 

 

Naquele apartamento de sete metros quadrados, a cozinha, a sala, o banheiro e o quarto são todos um só, sem uma única parede para dividir os cômodos. Aquele homem caminhou vagarosamente em direção à pia, deixando a torneira ligada com o ralo tampado. Aguardou pacientemente até encher a bacia, onde enfiou o próprio rosto e manteve a cara submersa por longos segundos.

 

Aqueles flashes de memória reacenderam em sua mente, visivelmente instável. Se lembrou mais uma vez do gosto de sangue na boca, dos experimentos e dos pedidos de socorro de uma mulher de meia idade enquanto é violentada na frente do próprio filho.

 

Fnalmente tirou o rosto debaixo d'água, olhando o próprio reflexo no espelho embaçado. A esclera dos olhos subitamente se tornou negra, e o tom da iris se fortaleceu numa coloração azul cobalto. Por baixo das pálpebras e se ramificando por toda a bochecha, veias escuras surgiram e as presas da boca saltaram. É a perfeita imagem de um vampiro, um ser animalesco, sobrenatural e com uma aparência macabra – apesar de ser quase um anjo perto do remanescente dos Heulen. 

 

Balançou a cabeça negativamente, equilibrando a respiração outrora ofegante. A esclera voltou ao profundo branco, e a iris foi apagando vagarosamente aquele forte tom, mantendo-se num azul fraco, sem vida. As presas saltadas também voltaram ao normal, e aquele pálido vampiro se olhou novamente no reflexo do espelho; agora se parece com um homem normal, incrivelmente pálido, mas normal.

 

Nail Kafka é o nome deste homem, um vampiro criado entre os zek, que vivenciou a opressão e se tornou parte dos experimentos soviéticos. Lutou na fronteira do país, assassinou pessoas e ainda sente o gosto amargo do sangue delas. Nail não é um homem comum, e por isso não tem acesso aos direitos humanitários mais básicos. Todavia, foi doutrinado e se vê como um homem de sorte; possui o próprio apartamento enquanto milhares de humanos vivem nas ruas, em troca de suas faculdades mentais e sua força física? Sim, mas é melhor que continuar sendo escravizado.

 

Nail se viu como num experimento similar ao Heulen durante anos, e não se lembra de absolutamente nada deste longo intervalo. Entre as cobaias, foi considerado um sucesso imediato, justamente por não ter perdido a sanidade quando se livrou do controle mental soviético (enquanto muitos outros que passaram pelo mesmo cederam à loucura). Ele se vê numa corda bamba, onde um passo em falso pode custar-lhe a própria vida.

 

Não interessa como, ele só pode obedecer calado, e deve agradecer por ter tido a oportunidade de estar vivo, mesmo que isso signifique matar seus semelhantes de maneira egoísta e hipócrita.

 

Só cansou de tentar pensar sobre, e cedeu ao desejo dos soviéticos de tê-lo como uma arma. É melhor que estar morto não é?a

 

Nail saiu de seu apartamento, parte de um grande edifício de propriedade governamental. Se engana, entretanto, quem pensa que por causa disso ele tem uma vida de luxo. Existem diversas propriedades estatais, as direcionadas aos políticos possuem o triplo do tamanho, diversos quartos, piscina, luxos...

 

Já Nail tem uma cama, uma pia, um vaso e uma única janela que não fecha – e justamente por viver numa região urbana em plena era do diesel, tem que dormir com a fumaça ocupando toda sua "casa".

 

O vampiro vestiu um longo manto negro, fino, mas um improviso pro frio e possíveis raios solares, que causam-lhe uma irritação grande na pele. Os olhos semicerrados circularam pelas escadarias, e podia sentir os olhares sendo respondidos logo atrás dele. Não conhecia aquelas pessoas, mas tinha a sensação de que sabiam demais, e sempre que o vêem, o olham torto, com desprezo.

 

Quando sai de casa, Nail tem que se virar para lidar com a luz solar, no puro improviso. Felizmente o tempo está nublado, e as nuvens mais escuras estão cobrindo o sol e anunciando a chuva. Menos mal.

 

Ah, é claro que não pode faltar a beleza soviética em seu mais puro resplendor: inúmeras chaminés ocupam a capital, com dirigíveis tomando os céus e automóveis as ruas. A era do diesel trouxe inúmeras tecnologias consigo, mas ninguém o avisou que tanta fumaça viria junto.

 

Indústrias trabalhando a céu aberto e o fascínio da população por veículos descreve perfeitamente as condições das ruas da cidade. Lar doce lar. 

 

Nail chegou atrasado no Quartel General da Associação de Pesquisa, correndo rumo à reunião que vinha com o intuito de iniciar sua primeira grande operação – e também apresentá-lo aos colegas de esquadrão. 

 

As portas se abriram, e Nail surgiu à vista de todos. Pelo menos dois esquadrões inteiros se reuniram no grande salão, com os blindados e comboios já preparados para iniciar o ataque. Não precisa ser um grande observador para saber que o vampiro está atrasado, e os olhares de reprovação e indignação logo se direcionaram à ele.

 

Liderando o décimo terceiro esquadrão, Aaron olhou de canto para Nail. Ele está uniformizado com aquela grande roupagem negra que o exército disponibiliza à Unidade de Extermínio, exibindo o brasão de três estrelas vermelhas numa braçadeira posicionada no lado direito de seu corpo. Nail, por sua vez, usa uma braçadeira com uma cruz amarela embutida no interior de uma estrela vermelha, junto a uma roupa muito similar a de Aaron, também preta. A braçadeira é o que difere a hierarquia entre os membros da unidade, quanto mais estrelas, maior o cargo. O motivo de Nail ter uma cruz na sua é simplesmente por ser um vampiro, um trunfo, uma arma de suporte que deve ser usada pelos soldados mais experientes.  

 

Aaron tem muitas virtudes, e uma das maiores delas é de sentir o cheiro de merda à distância. Desde antes de Nail chegar ele parece abatido, nervoso com alguma coisa. Ele pareceu ter resmungado algo inaudível ao vampiro, deslizando os olhos para o compatriota ao seu lado. 

 

O homem ao lado de Aaron tem uma braçadeira de uma única estrela comunista, com um olhar de ódio que não desgruda de Nail de jeito algum. Seu nome é Ulrich, o prodígio da equipe e uma das aquisições mais úteis da unidade nos últimos anos. Ele tem olhos castanhos-mel, um cabelo curto e levemente cacheado, exibindo um rosto fino que herdou da família alemã. Ele foi pego desprevenido quando Aaron bateu ligeiramente em seu ombro, como se chamasse sua atenção.

 

— Abaixa a bola, Ulrich. Abaixa a bola. — Como mentor, Aaron reconhece sabiamente as melhores e as piores características de cada um dos seus homens. Ulrich é o mais talentoso entre eles, mas com um complexo complicado e uma raiva indescritível aos vampiros. Não que Aaron não compartilhe do mesmo pensamento, mas Ulrich tem uma mentalidade digna de preocupação. Não gosta de falar isso em voz alta, mas já cogitou que ele talvez tenha um pouco do pensamento fascista herdado de sua terra natal, a Alemanha.

 

Ulrich não ouve ninguém, mas com Aaron as coisas são um pouco diferentes. Ele pode ter mil e um problemas, mas sabe como se impor. Como soldado e caçador de vampiros, com certeza Adamik é um dos mais respeitados entre os homens, mesmo que algumas atitudes do passado complique o modo como os mais velhos o vêem.

 

Assumindo o centro da roda, um homem com cerca de vinte e poucos anos, mas que já tem tantas estrelas na braçadeira quanto Aaron. Seu nome é Joseph Makarov, um verdadeiro prodígio no ramo, que atua tanto na Unidade de Extermínio quanto na Inteligência da APS (Associação de Pesquisa Soviética). Tudo bem que parte do mérito não é só dele – já que veio de uma família com muitas associações políticas –, mas seus feitos são inegáveis.

 

O homem possui cerca de um e setenta e dois de altura, cabelo liso e curto num tom castanho. A fisionomia magra poderia deixá-lo facilmente com a aparência de um adolescente, isso se não usasse um óculos de grau que o deixa ligeiramente mais maduro. Tem olhos negros que beiram o cinza, muito similar a um tom ônix. 

 

— ...Continuando, — E ele certamente não vai fazer questão de recomeçar a explicação porque Nail chegou. Se o vampiro quiser entender alguma coisa, terá que se virar no caminho. — o exército soviético vai cobrir as áreas C e D num cerco em circunferência. Os inimigos ficarão presos dentro dessa área enquanto os dois esquadrões se dispersam lá dentro. Todos entenderam até aqui? 

 

Os membros dos dois esquadrões parecem concordar com as ideias apresentadas pelo Makarov, mas um único se mantém inquieto, suando frio. Como dito, Aaron tem um ótimo faro para localizar os problemas com antecedência, e sua intuição entrega que algo muito ruim pode acabar acontecendo.

 

O motivo é mais que simples: os vampiros que localizaram e que tentarão invadir numa rápida missão de assalto fica no coração da cidade, numa das regiões mais pobres e populosas da República Soviética. Em outras palavras, isso significa que há uma grande concentração de moradias e especialmente civis, assim como sem-tetos. E se um vampiro fosse exposto nas ruas? E se a informação vazasse? São tantos jeitos de dar errado que Aaron simplesmente não consegue ficar sem preocupações.  

 

— Makarov. — Aaron chamou Joseph pelo sobrenome, uma mania que quase todos do alto escalão compartilham e que o irrita profundamente. No entanto, desta vez, apenas ajeitou os óculos e deu todos ouvidos para o Adamik. — Eu espero ter uma noite tranquila de sono hoje. 

 

Aaron é um homem humilde, se puder dormir sabendo que não matou ninguém e que não fez nenhuma burrada, então tudo estará bem. Mesmo com um projeto criado por um Makarov e revisado por toda Inteligência, inevitavelmente Aaron tem um pé atrás. O medo de uma troca de tiros é grande, e se isso acontecer, então há a possibilidade dos civis se meterem no fogo cruzado.

 

Ele não poderia se perdoar sabendo que matou um homem. Sua única exceção, fora os vampiros, são os nazistas (e com certa razão). 

 

Se preparando para uma operação invasiva de larga escala, vários blindados e comboios saíram do Quartel General, se reunindo nas ruas como se tivessem indo para uma verdadeira guerra no coração da cidade. 

 

 


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