Tempos Modernos escrita por scararmst


Capítulo 6
VI




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Era uma noite particularmente fria, nada novo para aquela época do ano, mas um tanto incômodo para Miguel e os outros integrantes do grupo de teatro uma vez que, estando ali para encenarem uma adaptação do Auto da Compadecida, estavam vestidos como se morassem debaixo do sol do sertão do nordeste. Miguel usava uma camisa de linho surrado, calças na altura do tornozelo — deixando um ventinho incômodo correr sobre seus pés — sandálias de couro e um chapéu pendurado atrás das costas. Era a roupa de Chicó mais precisa que se poderia ter para aquela peça, mas algo muito pouco adequado para a ocasião.

E levando em conta como Miguel quase não sentia frio, se ele estava com um arrepiozinho na pele, sentiu pena de Letícia, outra garota da companhia sentada ao seu lado em um vestido de chita para fazer a mulher do padeiro.

Estavam agora na bagunça dos bastidores atrás do palco montado para eles. O festival acontecia em um dos parques da cidade, ao ar livre, cercados de árvores por todos os lados. Teria sido ótimo em um dia quente, tinha certeza disso, mas hoje… Ele suspirou, sentado na cadeira de frente pro espelho, girando devagar nela. O camarote improvisado ali continha duas baias de cortina pros atores trocarem de roupa, dois espelhos grandes com suporte apoiado no chão e algumas cadeiras. A apresentação deles era a última da noite, para desespero de Miguel, que agora estava passando por um dos maiores pânicos das últimas semanas.

Isso porque a companhia de balé de Clara estava no palco. Sabia disso mesmo sem ver por reconhecer a mistura de clássico com Cabrobró, do Tianastácia, estourando nas caixas de som. Parte dele queria muito estar assistindo aquilo, mas receava colocar a cara para fora do camarote e ser reconhecido por Lucas e Pedro, estes certamente sentados na platéia assistindo-a. E não era como se isso fizesse muita diferença agora. A menos que eles fossem embora logo depois da apresentação de Clara, algo com o que Miguel estava contando, veriam-no subir no palco em seguida.

Tudo bem, talvez eles fossem embora. Podia ter esperança, não podia? Havia chance de não ser visto ali naquele dia. Já tinha lhe bastado usar a mesma desculpa da tia inexistente para justificar porque não estaria assistindo a apresentação de Clara, não precisava ser pego na mentira justamente no palco.

Miguel se agarrava nessa esperança como se fosse uma bóia no meio de um naufrágio, mas devia ter imaginado dessa bóia ser mais falsificada que os óculos escuros de seu pai comprados no Oiapoque. Quando daria uma sorte desse tamanho? Nunca. Certamente não agora.

A apresentação do balé acabou, e Marisa tinha acabado de chegar no camarote, com o braço passado pelos ombros de um garoto, guiando-o para o local e chamando a atenção de todos com palmas. E quando Miguel se virou para olhar, sentiu o sangue fugir de seu rosto na mesma hora. Era Lucas

Ali estava, parado ao lado dela, segurando uma maletinha prateada de maquiagem e parecendo muito orgulhoso de si mesmo. Miguel teve apenas um milissegundo para pensar, e sua reação imediata foi virar a cadeira de costas e colocar o chapéu. Ajeitou o acessório às pressas, inclinando-o para a frente o máximo possível sem ficar estranho, tentando esconder seu rosto com aquele gesto.

A tentativa era patética, sabia disso, mas não pôde se impedir. Ele girou a cadeira de volta para Marisa, pois ela estava esperando a atenção de todos para falar, e cruzou os braços, tentando disfarçar sua identidade o máximo possível. Lucas devia estar ali para fazer maquiagem nas meninas, e pronto. Não tinha com o que se preocupar. Podia sumir até a hora de subir ao palco e problema resolvido.

— Gente, um minutinho da atenção. Esse aqui é o Lucas Assis, ele fez maquiagem na companhia de balé que tava no palco agorinha mesmo. Eu acertei um precinho com ele e ele vai fazer uma maquiagem de palco pra nós também.

Oh não. Oh não. Maquiagem de palco não era só batom nas meninas, era pó na cara para espantar reflexo de refletor também. O tipo de coisa da qual não havia chance de Miguel escapar, estando ali para fazer um dos personagens principais da peça. Ele olhou para a máscara de Diabo em cima da mesa e se iludiu por um instante em colocá-la na hora e fingir que ia estar de máscara o tempo todo e portanto não precisaria de maquiagem, mas já estava vestido como Chicó. Fim de jogo, não ia dar para escapar.

Miguel suspirou. Ouviu as comemorações dos outros atores ao seu redor, mas ele mesmo só queria enfiar a cabeça no chão como um avestruz e sumir. Bem, tinha sido bom enquanto durou. Ele viu Lucas se aproximar da cadeira mais próxima onde o ator do cangaceiro, Bernardo, estava sentado, e começou por ele. Seguindo a fila de cadeiras, Miguel ia ser o quarto.

Ele virou de costas de novo, tirando o chapéu, já não ia adiantar de nada tentar se esconder debaixo dele mesmo.

Tinha se conformado agora, mas não conseguia entender como podia ter dado tanto azar. De todas as pessoas para Marisa encontrar pra fazer maquiagem tinha de ser logo ele? Tudo bem, ele já estava ali, e tudo bem, era provável ela ter conversado com a coreógrafa da companhia de balé e ter recebido a recomendação mais cedo. Não era uma sequência de eventos tão improvável assim. O que tinha pensado, também? Que ia conseguir se apresentar no mesmo dia que Clara e não encontrar nenhum dos amigos da escola? Que idiota. Já tinha sido mais esperto em sua vida.

Ele esperou, em silêncio, remoendo o que julgava serem seus últimos minutos de paz na escola a qual frequentava, até sentir de repente um toque suave em seu ombro.

— Sua vez — Lucas chamou. Miguel respirou fundo e se virou.

A primeira reação de Lucas foi arregalar os olhos. Ele se atrapalhou com a maleta semi aberta, no susto, e algumas das maquiagens começaram a cair no chão. Miguel sentiu uma onda de culpa, podia não entender muito de maquiagem, mas algumas das caixinhas pareciam frágeis demais para ficarem inteiras se caíssem no chão, e já tinha percebido como Lucas gostava de sua coleção. Felizmente, o chão do parque era de grama, e não pareceu haver nenhum dano nos produtos.

Miguel se abaixou para ajudar Lucas a recolher tudo, e o garoto não disse nada. Parte de Miguel queria que ele continuasse calado, mas a outra parte desejava ouvir alguma coisa, qualquer uma, saindo da boca dele. Miguel sentiu o sangue correr para o rosto, e abaixou a cabeça, envergonhado, terminando de devolver as caixinhas que tinha recolhido para a maleta de Lucas e se sentando em sua cadeira de novo.

O garoto fechou sua maleta, puxou um banco para perto,sentando-se nele, e colocou a maleta no colo. Miguel ainda não conseguia olhar para ele. Não sabia o motivo de se sentir tão envergonhado com Lucas, de todas as pessoas. Se pudesse entregar esse segredo com segurança para alguém certamente seria ele, não é? Lucas não o exporia, tinha certeza. Ele entendia, não é? Sim, tinha de entender. Por favor, que entendesse…

Lucas suspirou, tamborilando os dedos na tampa da maletinha por alguns segundos antes de abri-la, começando a procurar alguma coisa lá dentro. Ele tirou um algodão e um vidro de alguma coisa transparente parecendo óleo e Miguel decidiu nem perguntar o que era. Não conseguia se importar com isso agora. Lucas colocou um pouco do produto no algodão e puxou o banco para frente, ficando ao alcance de Miguel, e sem dizer nada, começou a passar o negócio no rosto dele.

Era oleoso. Miguel franziu a testa, sentindo algo se contorcer no estômago e entendendo, devagar, do que se tratava: culpa. Tinha mentido. Literalmente mentido, quando Clara o chamou para o festival e disse que não poderia ir por causa de sua tia. Esperava escapar deles a noite inteira, esperava que eles jamais descobrissem que tinha estado ali. Na hora, a mentira pareceu uma boa ideia. Agora…

— Desculpe… — Miguel sussurrou, pensando o quão puto Lucas estaria agora. 

O garoto terminou com o algodão, jogando-o em uma sacolinha de lixo e pegando um borrifador de água. Lucas borrifou a água na cara de Miguel com alguma grosseria, e tudo bem, era só água, não ia machucar, mas a mensagem emocional estava muito clara.

— Não ligo pro que faz ou deixa de fazer — Lucas comentou, pegando outro algodão e voltando a esfregar sabe-se o que na cara de Miguel. — Mas mentir pra gente falando que sua tia estava doente foi baixo, Miguel. Muito baixo.

É. Sabia. Ele sentiu os lábios tremerem um pouco, uma reação de nervosismo e arrependimento conhecida sua. Sabia que cedo ou tarde esse castelo de areia de amizades que tinha construído ia desmoronar, mas não tinha esperado ser tão cedo, e nem ser por sua culpa.

Mas o era, não era? Tinha tentado tanto forjar um cenário artificial no qual, de acordo com o próprio julgamento, pudesse manter as amizades construídas, mas relacionamentos sinceros não podiam se apoiar em mentiras. Tinha traído a confiança deles, Lucas estava irritado e, como resultado, tudo estava prestes a ir por água abaixo.

— Eu sei… — ele respondeu, apertando o assento da cadeira e sentindo a garganta apertar e os olhos lacrimejarem. — Por favor, me desculpe…

Por favor, por favor que o desculpasse, que não tentasse retaliar de alguma forma… Mesmo acreditando da bússola moral de Lucas jamais permitir algo do tipo, ele não parecia o tipo de pessoa a expor os outros de qualquer forma, não conseguia deixar de sentir medo. Sim, era medo mesmo. Quase terror. Não conseguia e não queria se imaginar passando por outra exposição em sua vida, por outra humilhação, não tão cedo assim.

— Meu Deus, calma… Não precisa chorar — Lucas comentou, agora parecendo um pouco triste. Culpado? Não sabia dizer. — Você teve seus motivos, eu imagino. Não consigo entender quais, mas deve ter tido. Tá tudo bem, só não faz isso de novo, tá? 

Miguel não conseguiu responder. Lucas pegou uma toalha, começando a enxugar a água do rosto dele, e Miguel sentiu o garoto passando a toalha com alguma delicadeza sob os olhos dele, recolhendo as lágrimas. Lucas tinha um toque suave enquanto fazia isso, certamente tinha muita experiência e cuidado no que fazia. Por algum motivo, aquilo começou a fazer Miguel se sentir relaxado, aos poucos. Bem aos poucos.

— Tudo bem — comentou, ao sentir os olhos secarem. — Estou melhor.

Lucas assentiu, recolhendo a toalha e tirando mais embalagens de cremes e outras coisas as quais Miguel desconhecia para começar a passar no rosto dele. Usualmente, teria perguntado e resistido à maioria das coisas, já tinha passado por outros momentos de “maquiagem de palco” e sempre se sentia muito vulnerável quando isso acontecia. Quer dizer, maquiagem era coisa de menina. Ou gay. Tinha custado a se acostumar com isso, e quando tinha acostumado foi por se convencer de se tratar de uma ferramenta profissional. Nunca em sua vida tinha imaginado conhecer Lucas, simplesmente andando por aí com a cara brilhante em um dia comum. Pessoas como ele pareciam muito distantes de sua realidade, antes.

— Então… Vai me dizer por quê? — Lucas perguntou, espalhando algum gelzinho no rosto de Miguel.

Ele fechou os olhos, aproveitando a quase massagem no rosto enquanto o gel era espalhado. Depois de um tempo a massagem parou, e Miguel abriu os olhos a tempo de ver Lucas começar a tirar alguns vidros de base — essa Miguel sabia o que era — e começar a comparar as cores com o tom de pele dele.

Iria dizer a Lucas por quê? Poderia, é claro, mas mesmo a verdade não sendo sua culpa,deixava-o envergonhado. Muito. Ele sentiu o rosto corar e se preocupou nisso atrapalhar Lucas de encontrar a cor certa da maquiagem, mas ele parecia saber o que estava fazendo. Nem piscou ao selecionar enfim um dos vidros de base e começar a espalhar o produto nas costas da mão, pegando um pincel em seguida.

Não, não podia dizer porque. Mas podia chegar perto.

— Eu só não queria que ninguém soubesse. E com Clara estando aqui, se apresentando hoje, sabia que vocês iam vir também, então… Eu ia tentar escapar de vocês a noite inteira. Foi idiota, eu sei. Desculpe.

Lucas não disse nada a princípio, Miguel não sabia se por estar pensando na resposta ou apenas por estar se concentrando muito em espalhar a base no rosto dele. Quaisquer das opções passou logo que a base estava espalhada, e Lucas segurou o queixo de Miguel com delicadeza, virando o rosto dele de um lado a outro para conferir como estava indo o serviço.

— Idiota, realmente. Achou que podia subir num palco e que a gente não ia ver? — perguntou, pegando agora um vidrinho de pó e um outro pincel, mais fofo que o anterior.

— Esperei que não fossem ver nada depois da apresentação dela…

— Muito, muito idiota. Clara ama Auto da Compadecida, ela tá o dia inteiro falando que tem que ficar pra assistir, e a gente vai ter que esperar. Miguel, honestamente, não sei nem o que te dizer agora. Não entendo porque não queria a gente sabendo, nada disso faz sentido.

Não devia fazer mesmo, para ele. Não com Miguel escondendo metade da informação. Mas com o restante da informação ou não, Lucas não parecia ter desistido do assunto com tanta facilidade. Não sabia se era o garoto que era muito perceptivo, ou se era ele mesmo quem era muito previsível, mas qualquer fosse o cenário, levou Lucas a uma conclusão assustadoramente precisa de suas razões.

— Ou você tem vergonha? — Perguntou, ainda espalhando o pó, com uma precisão minuciosa o suficiente para fazer Miguel se perguntar se Lucas estaria atrasando a tarefa para conversarem mais. — De ser visto no palco por um conhecido? Ou… Só de estar no palco, mesmo.

E como era exatamente essa a verdade, sentia vergonha, mesmo com Lucas perdendo uma ou outra minúcia da coisa, o garoto abaixou o rosto, sentindo as bochechas esquentarem e não sabendo o que dizer em resposta. Sentia-se ridículo.

— Só não conte para ninguém. Por favor — pediu, enfim.

E se Lucas estava sendo um poço de paciência até ali, esse foi o momento no qual ela terminou. Ele fechou a caixinha de pó com um clec alto, e se levantou de uma vez, segurando a maleta. Estava irritado. Miguel nunca tinha visto Lucas irritado antes, e achou surpreendente o quanto a expressão chegava a ser amedrontadora no rosto dele.

— Que tipo de pessoa você acha que eu sou? Você não queria nem que seus amigos soubessem, se é que podemos nos chamar assim, e você acha que eu vou sair por aí contando pra todo mundo como se fosse da minha conta?

Miguel se arrependeu do pedido na mesma hora. É claro que Lucas não iria dizer para ninguém, mas não era bem esse o seu receio. Se Pedro ia estar ali, temia ele comentando sem querer em uma conversa a qual Arthur pudesse ouvir, e daí pra frente tudo ia desandar.

— Não quis dizer você… São os meninos… Desculpe, eu…

— É a terceira vez que você pede desculpa hoje, Miguel. Eu cansei de ouvir.

Lucas pegou sua maleta e deu as costas, seguindo para o próximo ator para continuar seu trabalho. Excelente, tinha conseguido magoá-lo e inevitavelmente Lucas ia contar a situação para Pedro e Clara e então eles estariam magoados também. Para quem não queria fazer amigos, já tinha conseguido os decepcionar.

Miguel não se levantou de sua cadeira até chegar a hora da peça e serem chamados para ir ao palco. Parte do trabalho como ator era de ser capaz de emular qualquer emoção por cima do que estivesse de fato sentindo, mas isso sempre era mais difícil quando se sentia um lixo. Para piorar, ao subir no palco, logo viu Clara, Pedro e Lucas sentados na primeira fila.

Por muito pouco, não gelou. Cruzou os olhos com os deles por um instante, e havia um enorme sorriso no rosto de Clara, e um um pouco mais sacana no de Pedro. Lucas ainda parecia um pouco inexpressivo. Talvez isso quisesse dizer que os dois não se importavam, e só teria de conseguir o perdão de um deles. Miguel abriu um sorriso pequeno, imaginando se teria dado esse tipo de sorte, e começou com suas falas.

Tinha imaginado a presença de Lucas ali como um enorme agravante, vinha se distraindo muito pensando nele de formas aleatórias e inexplicáveis — não fazia sentido algum porque o garoto estava martelando em sua cabeça — sem ele estar por perto, estando então seria uma situação ainda mais louca.

Mas não foi. Não sabia se era o sorriso encorajador de Clara, o interesse aparente de Pedro ou simplesmente sua paixão por atuar, mas tudo transcorreu melhor que nos ensaios. Foi suave como uma brisa de fim de tarde, e a cada cena, a cada fala, Miguel se sentia ainda mais confiante em sua interpretação.

— Eu pensei que você tinha morrido, João!

— E o que é que tem isso, homem?

— Tem que eu, pensando que não tinha mais jeito, fiz uma promessa a Nossa Senhora para dar todo o dinheiro a ela, se você escapasse!

Na mosca. Sem titubear. Ele não sorriu, pois era suposto seu personagem estar um tanto frustrado agora, mas por dentro se sentia mais realizado que em muito tempo de sua vida. A peça terminou com um agradecimento dos atores no palco, e Miguel se sentindo bem mais leve que antes de subir. Desceu, caminhando até o “camarim” deles, mas não chegou lá. Clara apareceu em sua frente, quase pulando de empolgação e puxando Pedro pela mão junto com ela.

— Minha nossa, eu não acredito! Miguel, você é muito bom! Aaaaah obrigada pela surpresa, obrigada!

Ela pulou nele, abraçando-o apertado, e Miguel olhou confuso em volta. Seu olhar se cruzou com Lucas, quem ainda parecia um tanto irritado, e Miguel percebeu: o garoto tinha mentido para salvar a pele dele.

A garganta de Miguel apertou. Clara o soltou de repente, e ele viu Marisa reunindo o elenco para uma última conversa antes de serem dispensados. Ótimo. Precisava do respiro.

— Já volto gente — ele disse, acenando um pouco tímido e apressando os passos até Marisa e seus colegas de cena.

Ela tinha pouco a dizer. Uma congratulação ao elenco pelo bom trabalho em cena e um agradecimento pela presença de todos. Miguel e seus colegas tinham combinado de dar um buquê de rosas para a mulher depois da apresentação, e ela lacrimejou ao receber o presente. Um pouco sem graça, Miguel se juntou ao resto do elenco em um abraço em grupo, e então, estavam todos liberados — com obrigação de aparecer para ensaios na semana seguinte, é claro.

O sorriso besta no rosto de Miguel se desmanchou um pouco ao deixar os colegas de cena para caminhar até Lucas. Já tinha errado o bastante com eles por um dia, não podia sumir de novo. Lucas tinha livrado sua barra uma vez e Miguel tinha a forte impressão de que não o faria de novo.

Ele encontrou o amigo parado de braços cruzados no meio da grama do parque, sozinho. Não conseguiu ver Pedro e Clara nas redondezas de longe, e imaginou se eles teriam sumido juntos para namorar e deixado Lucas sozinho ali, mas não parecia o tipo de coisa que a garota faria. De qualquer forma, era melhor assim. Queria mesmo falar com Lucas a sós.

— Me desculpe — ele murmurou, ao se aproximar do garoto, devagar. — E eu juro, é a última vez. Sem mais mentiras. Obrigado por ter quebrado esse galho para mim.

A resposta de Lucas foi suspirar. Ele olhou para Miguel com uma expressão entediada e pouquíssimo interesse nos olhos. Não era um bom sinal. Miguel tentou não demonstrar seu desconforto, só queria poder seguir em frente como se nunca tivesse dado uma mancada daquelas. Mas, é claro, não seria simples assim. Confiança era algo fácil de quebrar e difícil de colar de volta, e a de Lucas estava no mínimo rachada agora.

— Não fiz isso por você — Lucas respondeu, levantando o queixo para indicar algum lugar mais a frente. Seguindo os olhos, Miguel enfim encontrou Pedro e Clara, na fila da pipoca e do cachorro-quente. — Ela já está passando por coisa o suficiente sem achar que você ia mentir pra ela desse jeito.

Miguel franziu a testa, a última fala de Lucas não passando nada despercebida por seus ouvidos. Ela parecia bem. Feliz, como sempre estava. Clara era como um raio-de-Sol por onde passava, mas agora que Miguel parava para pensar sobre isso, ninguém podia estar tão feliz assim o tempo todo, não é? De certo ela era muito boa em disfarçar.

— O que aconteceu? — perguntou, ainda a observando conversar animada com Pedro na fila e trocando um selinho com ele.

— Os pais dela descobriram o namoro. Não gostaram nadinha da escolha dela. “Meio escurinho demais”, disseram. Idiotas.

Naquele momento, Miguel sentiu como se tivesse levado um tapa na cara. Devia ter percebido antes, quando Pedro mencionou seus receios de sair com Clara, que não seriam apenas relacionados ao interesse dela. Havia mais coisas além disso, como a família e os malditos padrões estéticos da sociedade.

— Deixa só descobrirem que o Pedro é rico — Lucas continuou. — Sinceramente não sei o que vence essa guerra na cabeça deles, se é a cor dele ou a carteira. De qualquer forma, um porre.

“Porre” nem começava a definir. Pedro e Clara enfim conseguiram seus lanches — pipoca para ela, cachorro-quente para ele — e voltaram até onde os amigos estavam. Miguel achou de bom tom fingir não saber de nada. Eles não tinham comentado, então não seria ele a falar.

— O podrão tá bom — Pedro comentou, mordendo um tamanho surpreendente do cachorro-quente de uma vez. — A mussarela derreteu direitinho.

Miguel percebeu naquele instante que estava com fome, mas estava sem trocados para comer, e não ia pedir para ninguém emprestado depois de contar uma mentira daquelas. Era capaz de Lucas o matar com os olhos.

— Ah, Lucas! — Pedro exclamou, de repente, já tendo comido metade do lanche. — Cara, a gente tem jogo sexta. A gente precisa de você.

Lucas suspirou, e Miguel franziu a testa, sentindo um embrulho de ansiedade no estômago. Não era justo isso, Pedro não tinha mesmo noção do quão incômodo isso era pro garoto?

— Pedro, cara, a gente se vira — Miguel comentou. — Chama o Zé Bica de volta. Ou paga o Juca. Ele aceita pagamento?

— Ah cara, Zé Bica de novo, sério? Ô Lucas, quebra essa pra gente, vai, por favor…

— Cara, ele não quer. E tem motivo, ficar perto do Arthur já é chato pra gente às vezes, imagina pra ele? Você acha justo…

— Miguel — Lucas cortou. — Eu tenho boca e posso responder por mim.

Ótimo. Tinha conseguido chatear ele. De novo.

— Eu só queria ajudar. 

E por muito pouco ele não soltou um “me desculpe” depois, mas Lucas já tinha deixado claro seu cansaço com o uso da expressão naquela noite.

— Eu posso até jogar — Lucas comentou, de repente. — Mas eu quero carta branca pra mandar o Arthur calar a boca. E apoio se eu fizer isso, porque eu não vou brigar com ele sozinho enquanto vocês assistem.

Ah, isso era bem fácil de conseguir, ao menos para Miguel. A vontade de comprar briga com Arthur já vinha se acumulando há algum tempo.

— Apoio meu você tem — Miguel comentou. — Pode ter certeza disso.

— Meu também — Pedro completou. — Zé Dois é mais na dele, mas se for o caso eu tenho certeza que ele engrossa o caldo. É um cara muito legal.

— Hm — Lucas respondeu, olhando meio desconfiado para os dois, e depois para Clara, que comia sua pipoca em silêncio, mas olhava para Lucas daquele jeito único que dois amigos se olhavam quando estavam tendo uma conversa silenciosa. Enfim, Lucas respondeu. — Tá certo então. Próxima sexta, pra testar.

— Isso! Valeu cara, melhor cunhado emprestado do mundo!

E Pedro, que já tinha terminado o cachorro-quente em tempo assustador, abraçou Lucas apertado o suficiente para Miguel ouvir alguns ossos estalarem.

Miguel sorriu, trocando um olhar com Lucas por trás do abraço. O garoto ainda estava um pouco irritado, conseguia ver, mas não ia ser algo que duraria muito. Ele já não tinha mais tanta raiva expressada no rosto.

— Beleza, vamos andando então. Eu vou pegar outro cachorro-quente, ainda tô com fome. Vocês querem alguma coisa?

Miguel até ia dizer que não, mas seu estômago roncou na hora. Pedro sorriu, passando o braço pelos ombros dele e outro na cintura de Clara, e os quatro seguiram de volta para a barraquinha de lanche do parque.


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Notas finais do capítulo

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