Tempos Modernos escrita por scararmst


Capítulo 16
XVI




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Miguel aguardou sentado do lado de fora da sala por toda a duração do intervalo. Andava impaciente de um lado a outro, ciente dos amigos o olhando enquanto o fazia, mas incapaz de se impedir. Sua cabeça estava a mil, mas de todos os pensamentos, o mais incômodo, sem sombra de dúvidas, era aquela sombra de ironia e culpa cutucando o fundo de sua mente. Quando a foto saiu, tinha ficado com tanto medo de ser vista por seus antigos amigos, e do que isso significaria, que nem por um segundo parou para pensar se isso seria um problema para Lucas. E no fim das contas, os seus antigos “amigos” tinham sido afastados de vez de sua vida em questão de minutos, graças aos seus novos amigos, que não tinham evitado em pular em sua defesa naquele dia na lanchonete.

Mas com Lucas a situação era muito distinta. O problema não era um bando de adolescentes os quais ele podia nunca mais ver se assim quisesse. O problema era seu pai. Responsável por ele, pagava sua escola, moravam sob o mesmo teto… Como podia ter negligenciado isso? Tinha ficado tão acostumado a ver Lucas confortável em sua própria pele que acabou esquecendo como isso era limitado apenas à escola e outros locais onde os pais dele não iriam estar. Devia ter pensado nisso. Devia tê-lo oferecido apoio e conforto como ele ofereceu, em vez de se preocupar tanto com si mesmo a ponto de não parar para pensar em um detalhe desses.

Ele apoiou a cabeça nas mãos, tentando alinhar os pensamentos um pouco que fosse. Precisava falar com ele, ou ao menos tentar. Tinha estado em dúvida sobre isso, mas agora tinha certeza, assim como em alguns momentos Lucas era o único a entendê-lo de verdade, agora ele seria o único a entender de fato o que Lucas estava passando. Não podia deixá-lo sozinho.

A primeira coisa que decidiu fazer foi esperar Arthur voltar, mas isso não aconteceu antes do fim do intervalo. O sinal soou, e com um suspiro frustrado Miguel caminhou de volta para a sala. Arthur ainda estava sentado na cadeira à frente de Lucas, e os dois conversavam, então ao menos isso teria de ser uma boa notícia. A professora do horário seguinte entrou na sala e Arthur se levantou, ainda dizendo alguma coisa, e então se encaminhou para sua mesa na frente de Miguel.

— O que vocês falaram? — o garoto perguntou, antes mesmo de Arthur ter tempo de se sentar.

Arthur coçou a nuca. Parecia um pouco desconcertado, e Miguel tinha alguma ideia do motivo. Ainda estava surpreso com como o amigo tinha falado sério sobre mudar seu comportamento para não ofendê-los mais, embora é claro não fosse reclamar da mudança. Isso, é claro, não queria dizer que da noite pro dia ele não se incomodava mais com as coisas, embora estivesse tentando. Para Miguel, era o suficiente.

— Eu perguntei a ele o que aconteceu. Ele não queria falar muito primeiro, mas… Ao que parece, o pai dele é muito igual o meu. Nunca imaginei uma coisa dessas. Se já é ruim para mim, imagine para ele… Ele disse que o pai dele não quer mais saber dele perto de você, ou até da Clara, e do Pedro que é namorado dela. Mas não me conhece e nem o Zé Dois então Lucas achou que podia falar comigo.

Miguel engoliu em seco. Tinha visto o pai de Arthur uma vez. O homem parecia ter tendências violentas.

— Ele… bateu no Lucas? — perguntou, sentindo um bolo de nervosismo se alojar em seu estômago. A mera ideia disso acontecendo o fazia querer socar o homem, mas isso não ia ajudar em nada agora.

— Não. Mas ameaçou. O problema com esse tipo de gente é que você nunca sabe quando a ameaça vai se concretizar, sabe? Pode ser nunca. Pode ser amanhã. É muito assustador.

Assustador o suficiente para convencer Lucas a não falar mais com seus amigos mesmo longe dos olhos de seu pai. Sim. Miguel reconhecia esse medo.

Ainda queria perguntar mais coisas. Queria saber como ele estava, se parecia mais triste ou assustado. O que poderiam fazer por ele agora. Mas no momento, a professora decidiu começar a aula, e Miguel se viu obrigado a deixar o assunto de lado.

Não tentou mandar mensagens para Lucas. Sentia que o garoto não ia responder e não sabia se o pai dele seria do tipo a mexer no telefone dele. Não queria causar mais problemas. Em vez disso, passou o resto da manhã girando o lápis na mão, tentando prestar atenção na aula um pouco que fosse. O vestibular estava muito perto, devia estar tentando espremer o máximo possível de conhecimento em sua cabeça… Mas não conseguia prestar atenção.

O resto da manhã veio e se foi em uma mistura de dúvidas, receios e ansiedades. Miguel não tinha certeza de nada a essa altura, a não ser que queria falar com Lucas, um pouquinho que fosse. Sabia o que ele precisava ouvir.

Quando o dia acabou, Lucas se levantou muito rápido para deixar a sala, e Miguel precisou correr para alcançá-lo no corredor, jogando a mochila nas costas de qualquer jeito e o encontrando quase perto da saída da escola. Ele tocou o ombro de Lucas, e o garoto pareceu disposto a ignorar, então acabou dando um puxão um pouco mais incisivo.

Lucas se virou, e Miguel reconheceu toda a tormenta nos olhos dele. Solidão, tristeza, e acima de tudo, medo.

— Eu quero falar…

— Não posso — Lucas cortou. — Vá embora, por favor, e me deixe em paz…

— Dois minutos. Por favor. Estamos do lado de dentro da escola, seu pai não vai ver a gente aqui.

Lucas olhou para o final do corredor, e parecia ansioso, mas acabou se deixando ser conduzido mais alguns passos para trás. No fundo do corredor daquela forma, e atrás de todo o fluxo de alunos seguindo para a saída, era certo não serem notados ali.

— Rápido — Lucas pediu, olhando para os próprios sapatos e apertando a alça da mochila com a mão direita. — Vai que ele decide entrar me procurando. Disse que ia estar aqui antes do sino bater.

Tudo bem, não teria muito tempo então. Havia muito o que queria dizer, mas não poderia ser agora, já tinha percebido. Teria de se ater ao mais importante.

— Como você está? — perguntou, apenas, pois afinal isso era de fato a única parte que importava.

Lucas deu de ombros, ainda encarando os próprios sapatos, e Miguel reconheceu o gesto de forma assustadora como algo que costumava fazer. Lucas estava péssimo, mas não achava poder fazer algo a respeito. Ou ao menos era assim que Miguel se sentia quando costumava responder dessa forma.

— Independente do que acontecer — Miguel comentou, estendendo a mão devagar na direção da de Lucas, caída ao lado de seu corpo. — Você tem a gente, ok? A qualquer momento, pra qualquer coisa…

Perto o suficiente para quase sentir os dedos de Lucas nos seus, o garoto recolheu a mão e ajeitou a postura, afastando-se da parede. Ainda não o olhava nos olhos, e nem precisava. Miguel já sabia o que veria neles caso olhasse.

— Eu tenho que ir — comentou, apenas, já caminhando para a saída. — Tchau, Miguel. Se cuida.

E não haveria nada o que pudesse fazer agora para fazê-lo ficar, Miguel sabia, e nem mesmo se atreveria a tentar. Poderia de fato ser perigoso. Ele esperou alguns instantes antes de sair do corredor seguindo o fluxo de alunos, e esticou o pescoço para a saída a tempo de ver Lucas entrando no carro do pai para ir embora. Era sexta-feira, e muito obviamente, Lucas não ia mais jogar futebol com eles. Miguel não achava que algum dos garotos quisesse jogar, de qualquer forma. Ele mesmo não sentia vontade nenhuma. Não iam ganhar com um jogador a menos e não seria a mesma coisa jogar sem Lucas.

Com isso, o grupo acabou sentado no jardim da escola, como costumavam fazer às vezes, mas agora em silêncio, sentindo o peso da ausência de Lucas na roda de amigos. Clara não falava nada, encarando a grama com uma expressão mista de fúria e tristeza e encolhida dentro de um meio-abraço de Pedro. Zé Dois estava escorado em uma árvore, de olhos fechados, poderia estar dormindo e ninguém iria saber. Arthur parecia muito irritado, arrancando graminhas do chão aos poucos.

— Isso não é justo — ele resmungou enfim, sendo, como de costume, o primeiro a quebrar qualquer tipo de silêncio.

— A vida não é justa, Arthur — Miguel respondeu, sentindo um misto muito estranho de satisfação e nervosismo com essa fala de Arthur.

Não, não era justo, e a raiva de Arthur, por mais bem-vinda que fosse, não deixava de trazer um gosto amargo de atraso em sua manifestação. Sabia de Arthur estar tentando, e por mais grato que fosse a isso, havia um parte vingativa dentro de si que ainda sentia vontade de balançá-lo pelos ombros e dizer “isso também é sua culpa. Preconceito se alimenta. Você acha que não estava ajudando a criar esses monstros?”, mas isso não seria nada justo. Primeiro porque não era, de verdade, culpa de Arthur. Participar de ideais preconceituosos ajudava sim a alimentar a ideia, mas uma andorinha sozinha não fazia verão e, em segundo lugar, Arthur tinha se mostrado um aliado e tanto com o passar do tempo.

A verdade, Miguel percebeu, era que podia simplesmente culpar alguém em quem pudesse descontar o que sentia. Ele se deitou sobre a grama, fechando os olhos e sentindo o sol quente de novembro queimando sobre sua pele. Seria fácil culpar Arthur e poder brigar com ele, ou o fotógrafo que tinha tirado a foto, ou até a mãe de Pedro por tê-la postado. Mas a verdade era do único culpado, o pai de Lucas, estava inteiramente fora do alcance de qualquer um ali, pois se tentassem alguma coisa — qualquer uma — poderiam acabar piorando tudo para o amigo.

Mais uma vez, sentia-se impotente, mas dessa vez em relação a outra pessoa. Já era ruim o suficiente não ter conseguido se ajudar quando precisou, mas era ainda mais doloroso e cruel não poder fazer isso por alguém com quem se importava.

E então, o que restava a eles, além de assistir Lucas ser afastado deles daquela forma, sem poder fazer nada a respeito?

— Arthur tem razão — Zé Dois disse, de repente, abrindo os olhos devagar para a surpresa de Miguel, quem nunca tinha imaginado ver Zé Dois concordar com algum rompante de Arthur. — A gente tem que poder fazer alguma coisa. Lucas pode estar com problemas sérios. Clara, ele tem algum outro familiar de confiança?

A garota levantou o rosto, um pouco marcado de lágrimas, olhando dos garotos de um para o outro. Então deu de ombros, um pouco tímida. Não sabia responder.

— Não faço ideia da opinião do resto da família dele sobre o assunto. Mas mesmo se for positiva, pelo que Lucas me conta, ninguém gosta de contrariar o pai dele. Nem se for pra ajudar ele, não parece provável isso acontecer. E… Mesmo se fosse, eu não saberia a quem pedir ajuda…

— Mas talvez ele mesmo saiba — Zé Dois continuou. — Talvez ele só precisa ser lembrado desse tipo de coisa, e pode pensar em algum outro parente que possa ajudar. Ao menos até ele ter independência o suficiente para ficar sozinho.

— Se ele passar em uma faculdade pública e não precisar mais dos pais pra pagar ele pode vir até morar comigo — Pedro comentou. — A casa é grande e eu tenho certeza que mamãe não ia se importar se eu explicasse pra ela…

Miguel suspirou. Era muito admirável estarem todos pensando em uma forma de tirar Lucas de perto do pai, mas o cenário era mais complicado que esse, e não sabia se eles conseguiam perceber.

— Por mais que isso tudo possa ajudar se por algum milagre for mesmo possível fazer isso — Miguel respondeu. — Ainda é o pai do Lucas. Nós não vamos conseguir tirar ele de casa se ele não quiser sair. Vocês lembram o quanto eu tentei me conformar em um modelo para agradar meus antigos amigos, e eles nem eram minha família. É provável que Lucas esteja disposto a se submeter a muita coisa para não magoar a família. E isso vai corroer ele por dentro com tempo.

Clara, Pedro e Zé Dois não gostaram de ouvir isso, mas abaixaram a cabeça, em silêncio. Já Arthur bufou, parecendo irritado.

— Mas então a gente faz o que? Nada?

Miguel se lembrou de quando tinha chegado ali, de como tinha estado tão determinado a continuar sozinho, aguentar tudo calado e passar o ano em paz. E como seus agora amigos tinham conseguido desfazer todas essas suas expectativas apenas por estarem ali com ele.

— Sejam amigos dele. Aos poucos. Mesmo que ele não queira — Miguel explicou. — Foi o que vocês fizeram comigo, e é do que ele precisa agora. Não podemos deixar ele sozinho.

A resposta era muito menos proativa que seus amigos gostariam, ele soube, mas era a única possível agora. Miguel sentiu um aperto no peito, mas não disse mais nada. Não conseguia pensar em nada para dizer que pudesse ajudar. Poucas sensações em sua vida tinham sido tão desagradáveis quanto aquele momento, aquela empatia na qual sabia exatamente o que Lucas estava sentindo e sabia haver tão pouco que pudesse fazer para ajudar. Mas iria pensar e algo. Lucas e os outros tinham o tirado de um buraco de dor e solidão. Ia fazer tudo ao seu alcance para impedir Lucas de cair em um desses.


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