Heróis de Boreatia: a Perfídia de Macker escrita por Goldfield


Capítulo 9
Capítulo II: Aqueles que vão a Feritia




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Capítulo II

 

“Aqueles que vão a Feritia”

 

          Corria o mês de Northar, o primeiro do ano 22 DCD.

         O inverno cobria com neve as regiões temperadas do planeta, tanto no hemisfério norte quanto no sul. Os animais hibernavam em suas tocas, as plantas recorriam à sua reserva nutricional até que os raios solares retornassem à sua plenitude. Parte do mundo, congelada, aguardava a chegada da primavera e o canto dos primeiros pássaros anunciando o desabrochar das flores...

        Em Glacis, porém, a mais rigorosa estação do ano mal era sentida. Afinal, no continente gélido dos anões, era praticamente sempre inverno.

         Por baixo das altas e intermináveis cordilheiras, que se estendiam pela superfície em paredões que mais se assemelhavam a imponentes e intransponíveis muralhas naturais, e salvaguardadas do clima extremamente frio e inóspito graças a camadas e mais camadas de terra e pedras, as cidades subterrâneas anãs prosperavam em ambientes ricos em vida e atividade. Nas profundezas do solo, sob as bênçãos de Bragondir e Shakrut, esse valoroso povo, habitando suas imensas galerias e laborando nas ricas minas, compunha mais uma das admiráveis raças encontradas no mundo de Boreatia.

         E, se o clima de eternas temperaturas baixas e nevascas do continente não contribuía muito para demonstrar o infindável ciclo das coisas, este se desdobrava de outras maneiras, como através do ventre expandido da anã Keylia, sentada confortavelmente numa cadeira de sua aconchegante casa. As residências dos anões possuíam dimensões e cômodos bem menores que as de raças como humanos e elfos, e eram quase todas esculpidas dentro de rochas, com lamparinas e velas nos tetos e paredes de pedra iluminando cada ambiente e determinando a localização dos diminutos móveis e pertences. O aspecto da morada poderia parecer apertado e rude a forasteiros, porém os anões muito se apegavam a lares como aquele. Ainda mais um guerreiro cuja esposa estava grávida.

         De fato, desde que a barriga de Keylia começara a crescer, seu esposo, Kal Sul, cobria a companheira de mimos sempre que podia. A presença do anão era freqüentemente requisitada na capital Tbrisk – tanto que o casal havia se mudado recentemente para a vila de Derix, bem próxima à cidade, para que tais chamados fossem mais facilmente atendidos – porém sempre conseguia separar algum tempo para a amada e o vindouro filho, ou filha. Kal Sul era um homem de crescente importância dentro do reino de Glacis: veterano de guerra, fora, há poucos anos, nomeado membro da recém-reorganizada Liga dos Diplomatas. Após a ocupação do continente pela Liga do Norte e o Crepúsculo dos Deuses, os anões haviam se isolado enormemente das demais raças e nações, visando a proteção de sua cultura, costumes, riquezas e, acima de tudo, fidelidade aos deuses. Agora que a situação no mundo se tranqüilizara, cabia ao bravo povo de Glacis restituir relações amigáveis com o exterior. E Kal Sul desejava tomar parte nessa empreitada.

         O problema era que os anões possuíam inclinação natural para o combate, o forjamento de armas e a ourivesaria, porém não para a diplomacia. Não haviam sido agraciados de carisma pelos deuses, apesar de leais e honrados em seus assuntos. Com seu jeito belicoso, truculento e de fala grossa, muitas vezes atacando com seus precisos e poderosos machados antes de tentarem qualquer diálogo, os habitantes das montanhas de Glacis jamais haviam cultivado entre si a arte diplomática. Diziam inclusive ser ela prática estranha aos seus costumes, uma ciência “das planícies, de ilhas e terras longínquas”. Mas, visando romper o isolamento dos anões nos últimos séculos, o atual rei, Burunir II, decidira ter chegado o momento de sua nação se tornar mais dialogável, mais disponível a ouvir. Todos, em sua visão, ganhariam com isso: tanto seus súditos quanto os estrangeiros.

         Evitar guerras era, afinal, melhor do que as privações muitas vezes necessárias para se vencê-las. Era difícil para um anão assimilar tal pensamento, mas aos poucos se fazia progresso.

         Kal Sul, sorrindo, adentrava naquele momento o quarto em que repousava a esposa. Beirando os cento e cinqüenta anos de idade, o anão via surgir os primeiros fios esbranquiçados em suas longas cabeleira e barba. Possuía corpo forte e bem-constituído, característico dos bem-treinados guerreiros de seu povo. Mesmo em casa, raramente retirava sua detalhada e resistente armadura de combate – obra-prima que herdara dos ancestrais de sua família – e os três machados sempre presos estrategicamente a ela. O maior e mais afiado, com uma lâmina quase das dimensões de seu tórax e corte afiadíssimo, sem contar o rubi incrustado junto ao cabo, ficava-lhe fixo às costas, através de um suporte de couro. Sua arma principal. Outro machado, de haste mais comprida e lâmina menor, também era carregado em suas costas, em posição cruzada com o primeiro. Arma secundária. O último, menor, bem mais leve e facilmente arremessável, era trazido por Kal Sul numa tira de couro colada ao lado direito da armadura, junto ao abdômen. Arma emergencial. Além deles, havia, é claro, seu arco longo. Esse, porém, costumava portar somente no campo de batalha. Ele não era como seus fiéis machados...

         Terno e feliz, o anão da Liga dos Diplomatas abaixou-se junto a Keylia. A anã rechonchuda de cabelos castanhos riu, o marido então erguendo uma das mãos e massageando com carinho seu ventre. Como ansiava pelo nascimento daquela criança! A herdeira de sua corajosa linhagem!

         - Minha irmã disse que perecem ser gêmeos... – falou a mulher.

         - Que a bondosa Shakrut a escute, meu amor! – exclamou Kal Sul, sempre com um jeito irreverente em sua voz. – Assim esta casa ficará bem mais feliz! E, como o pai, esses pestinhas saberão empunhar muito bem um machado e beberão tanto hidromel a ponto de nossas reservas se esgotarem!

         - E se forem meninas?

         - Então terão a mesma incrível vocação para o lar que a mãe!

         O casal trocou breve beijo, ao término do qual Kal Sul levantou-se, fitou a amada nos olhos durante alguns instantes, e então retirou algo de dentro de sua armadura. Um envelope, um tanto amassado, possuindo um selo vermelho com o emblema de uma coroa. Estendeu-o a Keyla, que o apanhou, abriu-o e, conforme lia o conteúdo do papel em seu interior, ouviu a explicação do esposo referente ao mesmo:

         - Recebi essa correspondência pela manhã, vinda do palácio. O rei requisita minha presença o quanto antes. Creio que vossa majestade tenha algum trabalho para mim.

        - Vá então, Kal Sul! – falou a anã, olhos brilhando. – Estarei aqui aguardando seu retorno, o qual, espero, trará boas notícias. Muito me orgulho de você, meu marido!

         - E você é minha maior jóia!

         Os dois se beijaram novamente e, despedindo-se num aceno, o anão deixou a casa.

 

         A cidade de Tbrisk – “A Invencível”, em língua anã – era uma verdadeira gema preciosa cravada no seio das cordilheiras de Glacis. Semi-subterrânea, fora entalhada junto à encosta de uma grande montanha, o Monte Grushk, local associado tradicionalmente ao nascimento do deus Bragondir. Assim, para o mundo exterior pendiam diversas torres imponentes e estátuas gigantescas, representando diversos heróis anões do passado e reis célebres, sem contar as altas e grossas muralhas circundando a área exposta de um lado a outro do monte – tudo erguido em mais puro mármore. Já dentro da montanha, onde a porção central da cidade se situava, palácios inteiros haviam sido erigidos em meio a imensas cavernas e galerias. Paredões de rocha adentro, iluminação provida por lampiões e tochas, encontravam-se túneis que serviam de becos e grutas correspondendo a pátios, com múltiplos caminhos levando aos mais diversos destinos. Tudo um verdadeiro labirinto, dentro do qual, todavia, os nativos jamais se perdiam.

         As edificações no subsolo abrigavam os mais variados tipos de atividades. Em amplas oficinas e ferrarias, as belas e mortais armas anãs eram diariamente confeccionadas em meio a batidas incessantes de ferramentas e a uma chuva quase interminável de faíscas. Invocando Tradir, Senhor da Forja, os artífices lapidavam perfeitas obras-primas, utilizadas tanto pelos guerreiros anões quanto exportadas para ricos compradores de toda Boreatia. Além dos armamentos, resistentes armaduras eram moldadas a partir do mais puro metal, suas dimensões sendo adaptadas a diversas criaturas e suas superfícies adornadas com impecáveis contornos e desenhos. Também existiam os ourives, que, trabalhando com os valiosos minérios e jóias encontrados nas abundantes minas do continente, produziam colares, pulseiras, tiaras, braceletes, brincos e todo tipo de adereços que, fora de Glacis, valeriam uma fortuna. Como dizia o velho ditado: “Reis já abriram mão de seus domínios e comerciantes de suas companhias apenas para terem uma jóia anã”.

         Havia também, é claro, as tavernas. Em quase toda curva de túnel podia-se encontrar alguma, com seus interiores bem-iluminados e letreiros portando nomes criativos. Dentro, o comportamento típico do povo anão que às vezes incomodava as outras raças era simplesmente potencializado: embriagando-se com barris e mais barris de hidromel ou cerveja anã – e cabe salientar a resistência bem mais elevada dos habitantes de Glacis à bebida, em comparação aos demais – os alegres fregueses logo entoavam bravos e alegres hinos em coro ou faziam das mesas e cadeiras elementos de um boêmio campo de batalha. As bebedeiras faziam parte da cultura e cotidiano anãos, e estes se espelhavam no próprio Bragondir, que jamais abria mão de uma caneca de cerveja durante os concílios divinos, em sua conduta.

         Era através de tais ambientes, passando por diversos de seus camaradas e cumprimentando alguns com sinceras reverências, que Kal Sul dirigia-se com contida pressa até o palácio real de Glacis. Aos poucos, acima das casas e lojas existentes no interior das colossais cavernas interligadas, iam se desenhando os contornos da imponente construção de planta oval, com seus quatro andares de pedra e o telhado coberto por uma abóbada de puro ouro.

         Kal Sul apresentou-se aos guardas diante do portão de entrada – conhecidos seus – e cruzou-o sem problemas. Adentrando o vasto e suntuoso hall do lugar, decorado com séries de rubis e safiras e inúmeros detalhes em ouro, prata e bronze, o anão passou a vencer os degraus de mármore da escada que subia até o coração do palácio. Viu pelo caminho secretários, ministros e outros integrantes daquela corte tão nobre e tão amada por si. Por fim deteve-se diante das duas portas metálicas que cerravam o acesso à sala do trono. Era vigiada por dois soldados, armados com machados tão grandes e afiados quanto o principal de Kal Sul. Este, apresentando o envelope que recebera pela manhã à dupla, informou-os:

         - Sou Kal Sul, da Liga dos Diplomatas. O sábio e bondoso rei requisitou minha presença via carta, e aqui estou.

         - Sua presença é aguardada, honrado Kal Sul – respondeu um dos guardas. – Pode entrar, vossa majestade o receberá de imediato.

         Com isso as portas foram abertas, e o recém-chegado, caminhando lentamente, ganhou a sala do trono. Seus pés passaram a pisar um comprido tapete vermelho de bordas amarelas, composto do mais fino tecido, que se estendia da entrada até o trono real. Este, dourado e brilhante, refletindo a luz dos lustres distribuídos pelo teto, parecia oriundo dos próprios Campos da Glória, contendo jóias incrustadas por toda sua superfície, principalmente nos braços. Atrás do assento, presos à parede, havia um machado e uma espada entrecruzados: representavam as armas do reino e o poder militar do monarca. E ele, por sua vez, sentado em seu rico trono, tinha à cabeça uma coroa também de ouro, com mais pedras preciosas inseridas nos entalhes. Vestia uma túnica azulada e uma capa também anil, mas em outro tom, contendo símbolos do reino e outros adereços. Na mão direita segurava um cetro de prata maciça, na extremidade superior havendo a pequena representação de uma cabeça de cabelos compridos e barba espessa: emblema físico do povo anão, representando sua unidade na figura do rei.

         Burunir II tornara-se rei logo após o Crepúsculo dos Deuses com a morte de seu pai, Burunir I. Cabelos castanhos lisos, barba comprida e emaranhada, semblante sereno, vinha se mostrando um grande e piedoso governante, extremamente preocupado com seu povo e visando sempre o melhor para ele. Rompendo com a tradição, era um rei pacifista, evitando ao máximo confrontos com nações estrangeiras e zelando por uma harmoniosa coesão interna. Isso não significava, entretanto, deixar de velar pelos interesses anões, principalmente no tocante à exploração de suas minas e o escoamento da produção mineradora.

         Como mandava o protocolo, Kal Sul percorreu o tapete diante do trono até ficar a seis metros deste. Então, observado pelos guardas e cortesãos espalhados pela sala, curvou-se, flexionando um dos joelhos e encostando-o ao chão, enquanto batia um dos punhos contra o peito, dizendo, em tom profundamente respeitoso:

         - Aqui estou, meu rei. A que lhe devo vosso precioso chamado?

         - Kal Sul, meu fiel guerreiro – sorriu o governante, mãos apoiadas nos braços do assento, após ter fixado o cetro num suporte ao seu lado. – Muito me felicita sua rápida resposta à minha correspondência. Desejo saber se posso contar mais uma vez com seus serviços.

         - Certamente que sim, meu rei – replicou o diplomata, mantendo ainda a posição de reverência.

         Burunir II efetuou uma pequena pausa e em seguida explicou:

         - Como sabe, honrado Kal Sul, nosso reino muito se isolou nos últimos séculos. Após o assédio dos boreais por meio da Liga do Norte, a perseguição religiosa e o castigo que os deuses nos enviaram, o temor em relação às demais nações dominou nosso povo. É preciso que isso mude. Nosso isolamento no mundo tem começado a prejudicar inclusive nossa economia, pois se tornam raros os tratados com outros povos para a exportação de nossas riquezas, após meu amado pai ter rompido todos os acordos existentes. Além disso, possuímos poucas terras cultiváveis e dependemos da importação de alimentos de nações como Barbety e Behatar. É preciso, para a glória de Glacis, que relações de mútua confiança e cooperação com outros estados sejam imediatamente firmadas, meu caro Kal Sul. Esse é o principal motivo pelo qual re-estabeleci a Liga dos Diplomatas, há alguns anos.

         - Liga da qual tenho imenso orgulho em tomar parte, meu rei.

         - E muito me felicita ouvir isso, Kal Sul, pois uma oportunidade incomparável surgiu para que a Liga cumpra seu propósito. Como sabe, o mundo vive um momento de esperança. Dentro de poucos meses, Jetro I será coroado rei de Behatar, o primeiro depois do Crepúsculo dos Deuses. Como este se deu devido à desobediência e heresia do próprio povo de Behatar, a ascensão do novo governante, pertencente a uma linhagem nobre e sem ligações com a antiga Liga do Norte, é uma promessa de paz duradoura e fidelidade ao divino. Representantes de várias nações, como Etressia e Astar, estarão presentes à coroação, para reconhecerem o novo monarca e darem a ele o apoio de seus povos. Não podemos estar ausentes, meu nobre amigo. Por isso, neste momento, eu o nomeio embaixador oficial de Glacis nas terras de Behatar!

         - E-eu nem sei como agradecer tamanha honra, majestade, e muito me alegra que um rei tão sapiente e digno venha a me chamar de “amigo” – afirmou Kal Sul, contendo sua emoção.

         - Ora, ora, não há o que agradecer, nobre Kal Sul. Você já demonstrou seu valor inúmeras vezes, através de seus atos. Como embaixador, será meu representante direto nas terras de Behatar, e por isso o encarregarei de uma missão. Partirá o quanto antes até esse continente, os dois meses de viagem pelo mar consumindo o tempo restante até a coroação do novo rei, e participará da cerimônia em nome de Glacis. Irá se apresentar a Jetro I como meu enviado e reconhecerá de forma plena sua subida ao trono, disponibilizando-se a auxiliá-lo no que for necessário, contando inclusive com os recursos de nossa nação. Depois apresentará a ele duas propostas de tratados comerciais, um se referindo à exportação de nossos minérios para os boreais e outro tratando da nossa compra de seus produtos, visando obter a assinatura de Jetro, se ele estiver de acordo. Quero que também observe o cotidiano de Behatar, analisando seus problemas, pois é sabido que boa parte da população ainda se encontra em situação miserável devido ao Crepúsculo dos Deuses e, quando regressar a Glacis, me reporte o que viu. Aí farei o que estiver ao meu alcance para auxiliar na solução de tais questões, demonstrando minha sincera amizade ao novo governante.

         - Fico muito lisonjeado em receber tais incumbências, que demandam imensa responsabilidade – disse o marido de Keylia. – Agradeço a confiança, meu rei.

         - Aqui estão os textos dos dois tratados – informou o governante, estendendo ao diplomata dois pergaminhos enrolados. – Eles já contêm minha assinatura e a de meus ministros. Há algo mais que quero que leve também em sua missão, Kal Sul...

         - O que seria, vossa majestade?

         Com um estalar de dedos do rei, dois soldados aproximaram-se do trono carregando algo. Tratava-se de um baú semi-aberto, que foi depositado pelos guardas sobre o tapete, entre Kal Sul e Burunir. Com o impacto do chão, a tampa do recipiente deslizou para trás, revelando o interior repleto de moedas de ouro, jóias e outros objetos de valor inestimável. Coube ao monarca explicar:

         - Esse é um presente pessoal ao novo rei. Creio que não terá problemas em carregá-lo até a capital de Behatar, e ele servirá de respaldo às nossas propostas diplomáticas. Peça perdão a Jetro por eu não estar presente em pessoa à coroação. É que como os assuntos internos de Glacis me consomem, resolvi então enviar alguém de minha plena confiança para me representar.

         - Compreendi perfeitamente, e mais uma vez agradeço – assentiu Kal Sul. – Algo mais, meu sábio rei?

         - Chegou ao meu conhecimento que sua esposa Keylia está grávida, correto?

         - Sim, majestade.

         - Sei que você desejaria acompanhar a gravidez e dar seu total apoio, mas ela está no quinto mês, correto? Ainda há sete meses antes do nascimento da criança, e creio que será tempo suficiente para seu regresso de Behatar. Com a missão cumprida, poderá acompanhar o término da gestação e eu mesmo irei à sua casa dar boas-vindas ao meu novo súdito, ou súdita!

         - Ou súditos! – sorriu Kal Sul. – Existe a chance de serem gêmeos.

         - Esplêndido! – Burunir bateu palmas. – Os deuses os abençoaram, meu amigo. Tire alguns dias de folga, e enquanto isso cuidarei dos preparativos para a viagem. Você está habituado a navegar com aquele seu companheiro da Marinha, chamado Kraivin, certo?

         Kraivin. Tal nome significava muito a Kal Sul. Um camarada valoroso, uma verdadeira fera em combate. Juntos já haviam vivido muitas venturas e desventuras. Meses antes, sobreviveram por pouco ao cativeiro dos “Piratas do Gelo”, um grupo de corsários estrangeiros que vinham assolando os poucos portos de Glacis. Dentro em breve estariam juntos novamente, agora na mais nobre das missões, representando todos os anseios do povo anão, de seu rei.

         Por Glacis, eles obteriam sucesso.

         - Está dispensado, nobre Kal Sul.

         - Não falharei com vossa pessoa, meu rei.

         Dizendo isso, o diplomata finalmente levantou-se, efetuou um último gesto de reverência perante o governante e, acompanhado pela mesma dupla de soldados de antes, que voltavam a carregar o baú de riquezas, deixou a sala do trono.

 

 

         Principiava o mês de Swordanimus e, com ele, a primavera.

         A neve se dissipava, os animais deixavam seus abrigos e as plantas retomavam suas cores vivas e desabrochantes. No céu tornava a predominar o tom azul, e o aumento da temperatura permitia que os mortais reassumissem suas costumeiras atividades. No continente de Behatar, as estradas pavimentadas – herança dos áureos tempos do Império Boreal, cuja sede fora aquele continente – voltavam a ser utilizadas por viajantes e mercadores, depois de praticamente três meses vazias. O tráfego de pessoas, mesmo assim, não chegava a ser tão grande: desde o Crepúsculo dos Deuses, monstros e salteadores assediavam os usuários de tais caminhos, fazendo com que não fossem utilizados pelos mais receosos. Apesar dos vários fortes militares distribuídos pelo território de Behatar, a segurança daqueles que viajavam ainda não podia ser totalmente garantida.

         Ainda assim, muitos insistam em se deslocar de um lugar a outro, movidos pelos mais diversos interesses e motivos. Enquanto alguns possuíam destino fixo, outros simplesmente iam de cidade em cidade, vila em vila e lugarejo em lugarejo, procurando viver novas experiências, conhecer pessoas mais sábias e adquirir conhecimento. Os que adotavam tal caráter nômade geralmente procuravam aprimorar algum tipo de arte ou habilidade, fosse relativa a combate, devoção, magia...

         O jovem Beli Eddas se enquadrava nesse último caso.

         Aos vinte e dois anos de idade, o humano de cabelos pretos lisos que lhe caíam até pouco abaixo dos ombros tinha o corpo magro de pele alva coberto por um manto negro, a cabeça inserida num capuz da mesma cor, que lhe ocultava parcialmente o semblante sempre sério. Sandálias nos pés, bolsa pendurada por uma alça a um dos ombros, o rapaz caminhava ereto, olhos fixos na linha do horizonte, alheios à estrada e tudo mais que a cercava.

         Se Beli encontrava-se pensativo em relação a algo, sem dúvidas não se tratava de seu passado. O mesmo era tão envolto em névoa e mistério que ele praticamente já desistira de procurar respostas a respeito. A julgar por sua idade, nascera em data quase simultânea ao Crepúsculo dos Deuses, seus pais possivelmente tendo perecido na tragédia. Não se lembrava de nada relativo a eles. A memória mais remota que sua mente conseguia visualizar era a de si mesmo, ainda bem pequeno, vivendo num local vago em que existia grande número de mulheres jovens. Um santuário? Um prostíbulo? Era difícil determinar qualquer coisa, pois as recordações da primeira infância sempre se desvanecem mais e mais conforme adentramos a idade adulta. A verdade quanto a esse breve período de sua vida talvez jamais fosse desvendada... Sabia somente que daí se originava seu nome. Era como as moças o chamavam...

         Depois disso, Beli se recordava claramente de, aos seis ou sete anos de idade, já ter se tornado um andarilho pelas estradas de Behatar, praticamente um mendigo. Vivia de esmolas, encontrava abrigo por pouco tempo aqui e ali. Apenas o prenúncio do que se tornaria o resto de sua jornada pelo mundo até então. Mas, desde cedo, algo diferente se manifestou nele...

         Começou a partir de pequenos truques. Canalizando a energia de sua mente e concentrando-se, ele conseguia realizar números de mágica simples para angariar moedas dos transeuntes nas cidades por onde passava. Aos poucos as apresentações se tornaram sua fonte de sustento, e um homem mais velho, alegando desejar se tornar “empresário” do menino, inclusive quis tirar proveito disso. Beli aprendera em seu cotidiano difícil, porém, que pessoas assim não eram nem um pouco confiáveis. Conseguiu se livrar do usurpador e seguiu explorando seu misterioso talento. Até que, durante a adolescência, alguém lhe dissera ter ele uma aptidão natural para a magia, e por isso conseguia fazer tais coisas. “Aptidão arcana”, fora esse o termo? Não importava. A questão era que, a partir daquele dia, Beli Eddas tomara conhecimento de que estava destinado a algo maior.

         Ele se tornaria um mestre nas artes da magia, um especialista nas habilidades arcanas. Durante toda sua vida dependera de outros para sobreviver, mas, através de seu dom, alcançaria a tão visada independência. Ele teria poder, teria fama, teria glória.

         Ele se tornaria um mago.

         Há anos Beli se deslocava pelo continente buscando aprimorar suas práticas mágicas. Encontrara alguns professores e inimigos, embarcara em aventuras envolvendo itens incógnitos e até encantados, ganhara enorme experiência. Sua jornada, todavia, ainda estava muito distante do fim: ele tinha muito que aprender. E era por isso que, com os pés desgastados andando pelo calçamento de pedras da estrada, não podia parar. Jamais.

         Em meio à tarde de sol, o rapaz se encontrava nos arredores da capital do reino, Borenar. Rumava para sudoeste: ouvira um rumor sobre uma relíquia mágica presente há séculos no interior da tumba de um famoso mago – do qual, porém, Beli nunca ouvira falar. No final das contas não devia ser tão conhecido assim, porém o item poderia valer a pena, ainda mais para aprimorar suas habilidades em constante treinamento...

         Foi quando ouviu um barulho na estrada, aproximando-se a cada segundo. Parou, forçando seus ouvidos a o identificarem melhor. Cascos batendo sobre o pavimento da via, em alta velocidade. Alguém a cavalo.

         Olhou para trás, sobrancelhas franzidas. Cerrou os olhos, a claridade atrapalhando sua visão. Era sim uma pessoa montada, um homem. Quando chegou mais perto, o jovem mago pôde identificar ser um garoto de dezesseis ou dezessete anos, trajando uma espécie de uniforme na cor cáqui. Esbaforido, não conseguia controlar bem o animal, mas por sorte este seguia de modo satisfatório pela estrada. Estaria vindo de longe? Caso sim, então a viagem deveria ter sido extremamente penosa para aquele inexperiente cavaleiro!

         Ofegando, o rapaz puxou as rédeas e, após dois solavancos da montaria, que por pouco não o derrubaram sobre a estrada, indagou a Beli, que continuava a fitá-lo calado:

         - Boa tarde, viajante!

         - Boa tarde – a réplica veio de modo frio e aparentemente desinteressado. – Por que tanta pressa?

         - Eu venho de Feritia, na costa oeste! – com tal afirmação, revelava ter feito realmente longa viagem. – Trago uma mensagem do armazém local, requisitando a presença de uma certa pessoa. Procuro-a há dias por esta região, mas como ela parece sempre estar indo de um local a outro, é bem difícil encontrá-la!

         - Qual o nome dessa pessoa? – inquiriu o aprendiz das artes mágicas, tomado por súbito pressentimento.

         - Eddas, Beli Eddas.

         O mago estremeceu. Seria apenas uma feliz coincidência? Não, por certo não era. Aquilo demonstrava que Mager estava consigo. Não podia titubear diante daquela clara manifestação da fortuna:

         - Sou eu – respondeu prontamente.

         - Está falando sério? – perguntou o mensageiro enquanto enxugava o suor da testa, incerto sobre estar diante de um espertinho ou de uma miragem causada por insolação. – E como pode provar isso? Sabe como é, as pessoas nas estradas atualmente não são muito dignas de confiança...

         - Se você galopar até Krisman, ao norte, e perguntar por um rapaz de cabelos pretos e manto escuro, eles terão me visto. Indo em seguida até as proximidades das antigas ruínas de Emeson procurar informações sobre um jovem com a mesma descrição física que por ali divertiu as crianças com truques de mágica, também obterá confirmação. E, se ainda quiser rumar para as margens do Lago Comaey em busca de relatos a respeito de um forasteiro com as mesmas características que por ali indagou a respeito de Magos Brancos, então terá total certeza de que sou o homem que procura.

         De fato, o viajante a cavalo passara por Comaey dias antes e ouvira a respeito de um mago de manto negro procurando informações sobre a Ordem do Unicórnio na região. E, pela firmeza na fala, devia ser ele mesmo. Aliviado e feliz, o mensageiro saltou de cima do animal e retirou algo de dentro do uniforme: um envelope sujo e surrado. Entregou-o a Beli e este o abriu. A carta em seu interior permanecera imaculada. Desdobrando-a, leu atentamente o conteúdo:

 

         Ao prezado Sr. Beli Eddas,

 

         Requisito por meio deste comunicado vossa presença no Armazém Público da cidade de Feritia, em Behatar, para entrega de herança deixada conosco por seu tio por parte de pai, Palas Eddas, em ocasião de sua recente morte em 15 de Mager do corrente ano de 22 DCD. Caso os bens legados à sua pessoa não sejam por ela averiguados num período de dois meses (sessenta dias), serão doados a ordens religiosas e outras organizações vinculadas.

 

         Grato pela atenção,

 

         Trinx vor Harix, Administrador-Chefe do Armazém Público de Feritia.

 

         Tio? Palas Eddas? Que história era aquela? Intrigado, Beli via despontar em sua mente abundantes perguntas, que rebatiam sem resposta nos obstáculos impostos pela falta de mais informações. Esta, todavia, seria apenas provisória. Ele com certeza viajaria até Feritia para saber do que aquilo se tratava, descobrindo tudo. Até então jamais imaginara ter um tio, e ainda por cima acabara de receber dele uma herança. As incertezas eram muitas, porém ao menos a névoa sobre seu passado parecia lentamente começar a se dissipar... ainda que de um modo totalmente inesperado.

         - Muito obrigado pela correspondência – agradeceu Beli, guardando a carta embaixo de seu manto após colocá-la de volta no envelope. – Eu me dirigirei até Feritia o quanto antes.

         - Eu é quem deveria agradecer por tê-lo finalmente encontrado... Estou exausto. Creio que irei descansar um pouco antes de regressar.

         - Tome cuidado com as estradas, meu rapaz. Elas andam bem traiçoeiras!

         O mensageiro sorriu, ao mesmo tempo em que puxava seu cavalo até a reconfortante sombra de uma árvore ao lado do caminho. O mago, por sua vez, deu uma discreta risada e continuou caminhando no mesmo sentido que antes. Seu destino agora, no entanto, era outro, e sentia uma determinação muito maior em atingi-lo. As artes arcanas seriam seu trunfo, e Mager guiaria seus passos.

 

 

         O jovem elfo caminhava pela estrada. O calor da tarde o incomodava um pouco – a primavera chegara com intensidade e, após três meses de clima gélido, adaptar-se de novo aos dias de maiores temperaturas sempre levava algum tempo. Trajava roupas leves e curtas, um pequeno colete marrom cobrindo-lhe a camisa esverdeada e calções escuros revestindo suas pernas até os joelhos, pés calçando botas novas. O rapaz deu um suspiro, esfregando as costas de um dos braços na testa. Se continuasse viajando ininterruptamente, logo sua pele alva ganharia tom bronzeado, seus cabelos loiros se escureceriam e seus olhos castanho-claros seriam engolidos pelas sombras... ou não. Afinal, era um elfo, e aprendera que os elfos possuíam características únicas em relação às demais raças, além de sua conhecida longevidade. Mas a verdade era que ele ainda tinha muito que aprender, sobre si e sobre tudo. Era ainda novo e pouco experiente. Entretanto, fora justamente por esse motivo que seus pais haviam feito com que saísse de casa dias antes. Ele se lembrava nitidamente dos fatos...

        

Um dia especial. Seu aniversário de setenta anos. Septuagésima primavera. E quem diria: honrando o ditado, ele havia nascido bem numa primavera!

         A residência se encheu de festa. O ambiente sempre repleto de livros jogados por todo lugar e pergaminhos abertos aqui e ali, cada um aguardando incertas adições pela pena de seu pai – era costume dele deixar muitos trabalhos inacabados por toda casa e ir completando-os aos poucos conforme conseguia – cedia lugar agora a cômodos inesperadamente arrumados e alguns pratos deliciosos cozinhados de última hora por sua mãe. Ela não era boa nisso, passava boa parte de seus dias estudando assim como o marido, porém havia aprendido algo com sua mãe e avó de seu filho, muito tempo atrás, e isso bastaria. Mesmo tendo colocado mel de abelhas verdes ao invés de mel de abelhas amarelas no pudim de frutas...

         Sua família, que se mudara para o norte de Behatar desde antes que nascesse, se dedicava quase em plenitude à busca de conhecimento. Seu pai era filho de um viajante que vivera décadas aprendendo sobre alquimia e invenções entre os gnomos de Equitis. Sua mãe era uma fanática por literatura antiga e epopéias perdidas – principalmente aquelas das quais haviam sobrado apenas meros fragmentos depois do Crepúsculo dos Deuses e os séculos de guerras que o precederam. Um casal perfeito. Amava-se muito e, unido, procurava desbravar ainda mais saberes e campos. Da união desses dois elfos, Arthenis – nome de um conhecido filósofo do Império Boreal – e Lidahra – a musa inspiradora lendária do poeta élfico Gaahr Jerenih – nascera Trent Dante. O nome fora uma homenagem a um sábio pensador humano das planícies da Península de Grador, que vivera aproximadamente dois mil anos antes. Não era um nome comum a um elfo, porém seu portador dele se orgulhava.

         Desde pequeno, Trent tomara conhecimento pelos pais, em meio aos inúmeros ensinamentos e milhares de livros que já lera ao longo de sua vida, de que seria enviado por eles a uma viagem através do mundo quando completasse setenta anos de idade, o momento em que os elfos, tradicionalmente, abandonavam os últimos traços da infância e adentravam a juventude. Uma viagem em busca de descobertas, de habilidades, de experiência. E ela possuía, inclusive, um objetivo mais específico. Mesmo sendo representantes de uma raça com aptidão natural à magia, os pais de Dante jamais haviam conseguido exercê-la. Leram incontáveis obras sobre as práticas mágicas, biografias de grandes magos, porém não conseguiam colocar em prática o conhecimento que delas absorviam. O filho, todavia, manifestava a esperança de conseguir dominar algo em que não obtinham sucesso. Desde cedo Trent apresentara inclinação à realização de pequenos truques e passes de mágica. Se aquela habilidade fosse explorada, em breve o jovem elfo poderia convertê-los em poderosas magias. Seria um feiticeiro. Um grande feiticeiro.

         Eufórico, Dante, aquele dia, pudera abandonar os livros e estudos ao menos momentaneamente para saborear os pratos preparados por Lidahra. Sentado à mesa agora livre de volumes e papéis, o garoto comia uma fatia de torta de maçã com cerejas, quando a mãe, de cabelo preso e óculos no rosto, e o pai, com sua túnica repleta de bolsos contendo penas, tinteiros e pequenos pergaminhos, surgiram à entrada da sala, rostos sérios. Trent sabia que chegava o momento da despedida, das recomendações. Sentia-se preparado.

         Terminando de degustar a refeição, afastou o prato com as mãos e fitou as figuras paternas. Arthenis aproximou-se, braços cruzados, e sentou-se numa cadeira ao lado do filho. Então, erguendo uma das mãos, pousou-a sobre o ombro direito do garoto, num gesto marcante. Ele não era bom naquilo, porém ao menos tentaria fazer com que suas palavras não fossem esquecidas:

         - Trent, chegou o momento...

         - Eu sei, pai – o jovem o cortou sorrindo, fitando seus olhos. – Não se preocupe, eu muito me preparei para esta ocasião. Além do mais, você e a mamãe me falam dele desde que eu era bem novo. Só ficaria assustado se me pegassem de surpresa!

         O pai também sorriu. Dante, com seu ar engraçado, conseguia sempre dizer algo divertido para suavizar algumas situações que insistiam em se revestir de um peso sério.

         - Você se lembra do que lhe ensinamos, filho... – retomou Arthenis, ainda com uma mão sobre o ombro de Trent. – Existem três tipos de magia. A divina, utilizada pelos sacerdotes e guerreiros da religião, provém diretamente dos deuses e se baseia nos domínios de cada um deles. A segunda é a da natureza, oriunda da fauna e da flora e usada por aqueles chamados druidas. A terceira é a arcana, que não se enquadra em nenhuma das outras duas e é a mais maleável, passível de estudos e manipulações. A mais completa, perfeita para os mortais. Desde o início dos tempos, estes se apropriaram dela de diferentes maneiras. Os magos, agrupando-se em ordens e seguindo rígidos preceitos e regras, acabam se perdendo em meio a tais limitações e prejudicam seu próprio estudo da magia. Metódicos, também necessitam de um grimório para memorizar e escolher quais magias usarão. Como estudiosos das artes arcanas, eu e sua mãe sempre nos interessamos pela feitiçaria, o uso mais livre e irrestrito da magia, ainda que, a princípio, menos poderoso. No entanto, nunca conseguimos pô-la em prática. Esse é o destino que almejamos para você, filho, e pelo qual tanto se dedica. Tornar-se um grande feiticeiro. Conhecer e dominar completamente as práticas mágicas.

         - Eu viajarei o tempo que for necessário para adquirir experiência e ensinamentos – assentiu o garoto. – Sei que Feger estará comigo.

         - Vá, meu filho, ande pelo mundo e torne-se sábio. Faça o que eu e sua mãe não temos mais disposição para fazer. Não será fácil. As coisas fora desta casa não são tão simples, e muitas pessoas pelo caminho podem não compreender suas intenções ou até prejudicá-lo. Porém, sempre podemos errar para, aprendendo, não voltarmos a cometer os mesmos equívocos. Vá, meu filho. E procure algum mestre que possa introduzi-lo melhor na prática da feitiçaria. Espero que, daqui a um bom tempo, quando a dominar, você possa regressar para nos mostrar o que estudou. Será a realização de um sonho.

         - Muito obrigado, meu pai.

        Nisso, Lidahra depositou algo sobre a mesa, junto aos pratos que continham ainda comida. Era uma bolsa, nela guardado o equipamento para a viagem. Cantil, isqueiro, pederneira, algum dinheiro, um mapa do continente de Behatar, com as principais povoações e estradas... Além, é claro, de um estojo de madeira contendo uma série de materiais de variada procedência. Componentes materiais para magia arcana. Sem eles, várias conjurações não poderiam ser realizadas.

         - Siga rumo ao sul, para a capital – recomendou Arthenis. – Lá existe um maior fluxo de pessoas e você poderá encontrar mais facilmente alguém para auxiliá-lo em sua jornada.

 

         E era isso que Trent Dante agora fazia, rumando pela estrada que levava a Borenar.

         Já eram dias de caminhada, o elfo sempre parando para acampar à noite. Começava a se habituar a dormir em meio à mata, apesar de ainda pouco acostumado. Ansiava por chegar logo: começavam a lhe irritar os vilarejos quase desabitados e pessoas desconfiadas pelo trajeto. Seu pai estava mesmo certo. A capital era seu melhor destino.

         Ou talvez não...

         Seguindo sua marcha, sol quase se pondo, o aprendiz de feiticeiro visualizou algo mais à frente, ou melhor, alguém. Sob a generosa sombra de uma árvore à beira da via pavimentada, um homem descansava com cabeça e tórax apoiados no tronco da planta, enquanto, a poucos metros de si, um cavalo amarrado ao mesmo local também aproveitava a pausa na provável viagem. Aproximando-se, Trent constatou que o cavaleiro era bem jovem, dotado de um físico comparável ao seu, apesar das idades diferentes em anos. De fato, entre um humano de dezessete anos e um elfo de setenta, poucas eram as disparidades na aparência.

         - Olá, viajante! – saudou Dante de súbito conforme chegava perto do rapaz, acreditando que falar com ele poderia ser útil de alguma forma.

         - Oh, boa tarde, elfo... – suspirou aquele que repousava, vestindo uniforme cáqui, ao notar as orelhas pontudas do recém-chegado. – O que faz perdido nesta região?

         - Na verdade não estou longe de casa, eu moro ao norte, perto de Krisman. Mas estou agora em viagem.

         - Para onde? – questionou o humano, apanhando um cantil que trazia até então preso à cintura e abrindo-o para beber água. – Capital?

         - Sim.

         - Hum, talvez eu passe por lá no caminho de volta até Feritia, será uma extensa jornada... – murmurou depois de um gole. – Precisarei de suprimentos e descanso.

         - Feritia? É mesmo bem distante. Litoral oeste, não? Mas por que veio até aqui?

         - Trabalho para o Armazém Público de lá. Vim entregar um comunicado a um mendigo, avisando-o sobre uma herança que ele precisa reaver por lá.

         - Um mendigo? Bem, ele deve ter ficado feliz então por estar finalmente mudando de vida... Não é todo dia que se herda algo.

         - Não sei bem se é um mendigo, é que o julguei pelas roupas... Talvez um andarilho, então. Chama-se Beli Eddas. Pelo que li da correspondência, ele receberá a herança de um tio falecido de nome Palas Eddas. Há rumores em Feritia de que o sujeito era um mago, dos mais poderosos!

         Mago? Dos mais poderosos? A conversa começava a ficar interessante. Tinha de saber mais a respeito. Só podia mesmo ter sido Feger quem colocara aquele mensageiro no caminho de Trent! E as características zombeteiras e enganosas do deus fizeram-se claras quando o elfo notou o absurdo do que acabara de ouvir:

         - Espere aí, você abriu a correspondência e a leu? Foi isso?

         - Bem, sim... – admitiu o cavaleiro, olhando para cima num gesto travesso. – É que meu chefe é um gnomo ranzinza que não me promove de cargo no armazém de forma alguma. É minha maneira de tomar parte maior nos negócios e tentar saber de algo que seja útil para mim. Mas, pelo brilho que vejo em seu olhar, essa história do tal Eddas parece interessar a você, na verdade. Estou errado?

         - Não, não está... – Dante sorriu de leve. – Gostaria de saber algo mais a respeito, confesso.

         - Bem, você pode se dirigir até Feritia e procurar por alguém que saiba desse Palas Eddas. Não deve ser muito difícil descobrir. Só não vá dar com a língua nos dentes a respeito de eu ter lido a carta. O Trinx me mataria...

         - Não se preocupe, amigo – riu o elfo. – Eu manterei segredo. Afinal, sou grato a você pela informação!

         Logo depois, sem mais nada dizer ao mensageiro, Dante continuou pela estrada andando mais depressa que antes. Só não pediu para seguir viagem a cavalo com o rapaz por temer depender de estranhos. Com sorte, conseguiria mesmo a pé vencer a vantagem que o destinatário do comunicado já havia lhe imposto. Feritia. Então poderia aprender mais sobre magia arcana lá! Existia um destino melhor do que a capital... e o jovem Trent não tinha tempo a perder.

 

 

         A estrada para o oeste, cortando a Floresta Negra, aos poucos voltava a ser utilizada pelos viajantes. Com a cabeça baixa, capuz envolvendo-lhe a cabeça, a mulher não ousava erguer as feições para fitar quem quer que passasse, porém. Deveria manter-se no anonimato, ainda mais depois dos inesperados acontecimentos de seis meses antes...

         Mas a verdade era que, após tanto tempo se escondendo – exílio prolongado devido ao inverno – o mundo exterior tornava a ter a presença de Freya, ainda que ele não se desse conta disso. Por sorte ela não tivera de deixar o continente, e nem podia. Um apertado e escuro quarto nos fundos do mercado da capital Borenar bastou para que ninguém suspeitasse de sua pessoa... ao menos ainda.

         Receava voltar às claras tão cedo. Para uma mercenária que já assassinara tanta gente e cometera outros diversos crimes, seis meses não costumava ser tempo bastante para que fosse esquecida por quem a caçasse. Mas a questão era que, para manter-se viva, via-se obrigada a colocar-se novamente em movimento. E, mesmo com todas as suspeitas relativas a seu novo contratante, talvez ele lhe pagasse melhor que Grantz...

         Era se recordava como se houvesse sido no dia anterior. Um encontro bizarro, marcante... e, por que não, promissor...

 

         Sua cabeça zunia. Recobrou a consciência, no entanto preferiu manter os olhos fechados, temendo o que veria se cedesse à curiosidade. Por alguns instantes, permitiu que seu cérebro efetuasse um reconhecimento de seu corpo: tudo estava aparentemente em ordem, a única dor que sentia provindo de sua nuca. Aliás, a última coisa da qual se lembrava era justamente ter sido atingida por um golpe naquela região enquanto fugia de Tyrnan após ter matado Just Lerminan. Alguém mais habilidoso e sorrateiro do que ela a superara. E agora teria de estar pronta para encarar as conseqüências...

         Abriu os olhos... e nada. Estavam cobertos por uma venda. Típico.

         Assim que sua capacidade de efetuar movimentos retornou, sentidos voltando ao lugar, tentou mexer os braços e pernas. Como previra, encontrava-se com mãos e pés atados e, a julgar pelos estalidos de metal, eram correntes. Ótimo. Sentada sobre o que aparentava se tratar de uma cadeira, arrastou os pés de leve pelo que parecia ser um chão de madeira, constatando que a ação fora prejudicada por algum tipo de peso a eles atrelado. Provavelmente uma bola de ferro. É, quem a capturara queria mesmo se certificar que não escaparia. Devia ser alguém que a conhecia a um nível ao menos razoável.

         Ausência de vento ou brisa. Certamente aquele era um lugar fechado, com janelas igualmente fechadas – se é que existiam. Talvez estivesse situado no subsolo. Quase certo, aliás, tratando-se de um cativeiro. Freya só não conseguia determinar quantos indivíduos havia ali, já que nenhum indício de qualquer um fora captado por si até aquele momento. Existia também a possibilidade de não haver ninguém, porém não achava crível. Se seu inimigo a conhecia minimamente, então sabia bem que não podia deixá-la sozinha.

         - Oh, então você acordou...

         A voz a se manifestar era masculina, madura e sarcástica, e a prisioneira tinha quase certeza de que pertencia a um humano. Não possuía o tom cantado dos elfos, o timbre grave dos anões ou agudo dos gnomos e halflings. Os vários anos de sua vida que passara como mercenária lhe garantiram viagens por toda Boreatia e contato com as mais diversas raças. Algo muito útil em situações como aquela. Ao menos agora tinha uma vaga idéia da pessoa com a qual lidava, mas ainda não bastava. Mesmo.

         - Quem é você e o que quer? – Freya foi direta, feliz por sua boca não ter sido tampada.

         - Perdoe-me pelos meus métodos pouco ortodoxos de introdução – o personagem misterioso disse enquanto caminhava ao redor da guerreira. – É que como deve saber, desde quando os deuses nos puniram há pouco mais de vinte anos, estes não são tempos muito civilizados...

         - Se queria ganhar minha simpatia, poderia ter pensado em se apresentar de outra forma, não é mesmo? – a ironia passava a dominar também as falas da mulher. – Afinal, quem é você?

         - Sabe, muitos já tomaram conhecimento de meu nome... Muitos mesmo. E a maioria deles jaz agora a sete palmos abaixo da terra, nos cemitérios dedicados aos “bravos e heróicos”. Como pode perceber, minha cara, não sou um grande admirador da ordem, leis, poder e religião instituídos, e por isso acabo sendo uma pessoa bastante visada. Por enquanto, como ainda não posso confiar totalmente em você, me chamará apenas de “M”.

 

         CROA, CROA!

 

         Assim que terminou a sentença, o grasnar de um corvo foi ouvido no local, bem perto da cadeira e do interlocutor. Considerando a direção do som, era provável inclusive que a ave negra estivesse num dos ombros do tal “M”. Um animal de estimação, por certo. Deveria combinar muito bem com o dono.

         - Certo, “M” – ponderou Freya, irritada. – O que você quer que eu faça? Este seqüestro visa a proposta para algum trabalho, não?

         - Perspicaz, assim como suspeitei. Sim, de fato gostaria de requisitar seus serviços. No entanto não posso revelar ainda do que se trata. Quero apenas saber se posso contar com você ou não.

         - Assim a situação se torna difícil, sem que eu saiba quem é meu contratante ou até mesmo o que ele quer que eu faça. Não poderia me dar mais respostas?

         - Bem, será bem recompensada, pode ter certeza disso. Não só com dinheiro, mas prestígio e posição. Se o que planejo alcançar sucesso, o que é quase certo, você estará garantida durante o resto de sua vida. Além do mais, deve saber que, caso não aceite colaborar comigo, será morta sem hesitação. Já tive a oportunidade em Tyrnan...

         - Eu sei disso – Freya replicou friamente, cortando-o. – O que devo fazer então para colaborar com sua pessoa? Posso saber ao menos isso?

        - Permaneça nas sombras durante os próximos meses, até que o inverno passe. Não deixe o continente, não comente sobre mim ou esta conversa com ninguém, não importando as circunstâncias. Assim que a primavera chegar, dirija-se ao porto de Feritia, na costa oeste, durante os primeiros dias do mês de Swordanimus. Lá saberá o que fazer a seguir. Caso não cumpra essas instruções, eu a encontrarei e eliminarei, esteja onde estiver.

         O corvo grasnou novamente, endossando as palavras de seu mestre. Freya sentiu calafrios, e isso a assustou: nunca sentiria calafrios numa situação assim, dado seu temperamento. A voz de “M”, associada à presença da ave, parecia compor uma mistura amedrontadora, munida de inexplicável poder. Algo perverso, revestido de classe e inteligência nas palavras bem-escolhidas e rebuscadas do contratante. Ele devia mesmo estar tramando algo grande...

         - Compreendi – assentiu a mercenária.

         - Ótimo. Podemos nos despedir momentaneamente, então. Até mais ver, senhorita!

         E, antes que Freya conseguisse esboçar qualquer reação, foi vítima de nova e forte pancada no crânio, a consciência lhe dizendo adeus de forma ainda mais rápida do que quando junto aos muros de Tyrnan. A última coisa que pôde ouvir foi uma risada seca, baixa, por certo oriunda de “M”, e mais um grasnado do pássaro atroz...

 

         Acordara depois em campo aberto, sol nascendo, com seu equipamento intacto e nenhum outro ferimento no corpo a não ser aqueles provocados pelos dois golpes que a haviam desmaiado. Constatara surpresa não se encontrar muito longe da capital, Borenar. Além de ser uma pista de que o encontro às cegas poderia ter ocorrido na cidade, talvez seu novo contratante ordenasse a ela que o lugar lhe servisse de esconderijo. Afinal, quanto mais pessoas num só local, mais fácil não deixar rastros. E, depois de quase ter sido presa em Tyrnan e então seqüestrada por um patife com sonhos de grandeza que só se identificava usando uma letra do alfabeto, deixar rastros era o que Freya justamente menos desejava.

         Decidira aceitar o trabalho, porém. Nem era tanto devido ao medo de ser morta ou denunciada, apesar de ele também ter seu peso na questão. Pensava ser proveitoso prestar serviços a uma pessoa diferente em Behatar, além de Grantz. E a promessa de ser devidamente recompensada era sempre tentadora. Segundo “M”, em Feritia ela receberia apenas novas instruções, sendo redirecionada a outro lugar. Caso nesse momento percebesse que a missão não valeria a pena, poderia muito bem abandoná-la e dar um jeito de sumir por um bom tempo. Tentar não seria tão mal, enfim.

         A julgar pela velocidade de sua marcha – não muito apressada – chegaria ao seu destino em no máximo mais três dias. Com o capuz sempre levantado e agindo naturalmente, estava certa de que continuaria incógnita pelo período que fosse necessário. Talvez estivesse abraçando a maior oportunidade de sua vida... ou sua completa desgraça.

         Só saberia indo até Feritia.

 

 

         Ele esfregava as cerdas da vassoura pelas tábuas do chão, livrando-o do pó acumulado. Era incrível como aquela sala da hospedaria, em particular, agregava poeira, sendo que era limpa todos os dias, pela manhã. Tal fato até o desencorajava a varrê-la com tanta freqüência, sendo que daria no mesmo e requereria menos esforço fazer isso de dois em dois dias ou até mais. No entanto, Tucker era rígido: tudo nas dependências do estabelecimento deveria ser mantido sempre na mais perfeita ordem. A “Manhã Amarela” era a única hospedaria de Feritia e, dado o enorme fluxo de indivíduos de diversas procedências e raças que por ela passavam diariamente, devido a ser uma cidade costeira e porto importante, o lugar deveria causar sempre em seus hóspedes a mais sublime impressão.

         O jovem Fëanor, em seus quase dezoito anos de existência, vivera sempre naquele local. Tucker e sua falecida esposa, Merry, contaram cedo ao garoto que ele havia sido deixado ali quando recém-nascido por um casal em desespero, sem condições de criar a criança e não vendo nenhuma outra opção a não ser entregá-la aos cuidados de outra pessoa. Seus pais teriam então partido num navio rumo a Barbety como clandestinos, prometendo voltar um dia em condições melhores para reencontrarem o filho. Dezessete anos completos se passaram... e nada.

         A verdade era que, tendo ouvido essa história tantas vezes, Fëanor, com suas mãos repletas de calos devido ao árduo trabalho na hospedaria, já não tinha mais qualquer esperança de ainda conhecer seus progenitores. E, mesmo se viessem a retornar, não desejaria nem ao menos vê-los. Em sua concepção, fazer o que eles fizeram era inadmissível e deplorável, ainda que se encontrassem nas mais paupérrimas condições materiais. Mesmo nunca tendo uma família de verdade, o rapaz aprendera que o mais importante em qualquer uma delas era que cada membro possuísse um ao outro, e isso bastava. Seus pais deveriam ter pensado nisso antes de abandoná-lo...

         Suspirando, olhou ao redor, sua visão examinando com minúcia os móveis e a decoração da sala de refeições. Estava limpa. Com suor a lhe escorrer através da pele clara, Fëanor admirou brevemente os raios solares da manhã através das janelas do recinto, garantindo-lhe uma aura amarelada, suas pupilas pousando então sobre o balde de madeira com água que deixara junto à porta. Sua próxima tarefa seria lavar as latrinas. E como a odiava!

         Apanhando o recipiente pelo cabo, seguiu por um dos corredores do primeiro andar até seu destino. A hospedaria não era lá muito grande: dois pisos numa construção em forma de “L”, junto à muralha sul de Feritia. No primeiro se situavam a recepção, sala de refeições, escritório e dispensa. No segundo, apenas quartos. Tudo erguido em madeira – o que já quase destruíra o estabelecimento por completo anos antes, quando um hóspede descuidado causou um incêndio a partir de uma vela. Por sorte o fogo fora contido sem demora, com a ajuda de Fëanor, e Tucker conseguira arcar facilmente com os reparos. Seu negócio era, sem dúvida, lucrativo, e esse sucesso era diretamente proporcional aos incríveis zelo e carinho que nutria pelo lugar. Ainda que seu capital fosse suficiente para ser investido em empreendimentos mais rentáveis, certamente jamais abriria mão da Manhã Amarela. Seus vínculos sentimentais com aquela hospedaria eram enormes, e também tinham a ver com a esposa que já partira.

         Pensativo, Fëanor cruzou a porta dos fundos, passando a atravessar o pequeno pátio atrás da edificação, rumo às latrinas. Ao ar livre, podia ouvir os sons provenientes das ruas, apesar de ser muito cedo. Odiava despertar com o céu ainda escuro, porém Tucker queria tudo limpo antes que os hóspedes acordassem para o café. Aproximou-se das pequenas e bambas estruturas de madeira, semelhantes a casebres, que ocultavam as fossas: emitiam um odor terrível. Tampando o nariz com uma mão, o garoto usou a outra para arremessar o líquido dentro do balde na direção delas. Feito. Logo voltariam a cheirar mal, de qualquer modo...

         Retornando ao interior da hospedaria, Fëanor passou uma das mãos pelos cabelos brancos. Sim, brancos; um tom que pendia minimamente para o cinza, mas com clara predominância alva. O fato de ostentar fios de tal cor àquela tenra idade era um mistério, que se tornava ainda mais intrigante se considerado que o rapaz se lembrava de tê-los desde a primeira vez em sua vida em que se olhara num espelho – o que ocorrera com quatro ou cinco anos de idade. Ou seja, era bem provável que, se não adquirira tal característica no próprio nascimento, então fora muito pouco tempo depois. Sua cabeleira pálida sempre despertara curiosidade e espanto em todos ao seu redor. Enquanto seus colegas de brincadeiras na infância o chamavam de velho, os freqüentadores da hospedaria elaboravam as mais diferentes teorias na tentativa de explicar algo que lhes parecia tão antinatural. A preferida de Fëanor era a de um velho almirante de Etressia que, tendo pernoitado no estabelecimento, insistia que os cabelos do garoto constituíam um sinal dos deuses, que proclamavam-no assim “o escolhido”. A mera idéia provocava risos no rapaz. Escolhido para o quê? Limpar latrinas? Mas ao menos se recordar disso o divertia...

         Percorrendo novamente o corredor de antes, um lampejo de ambição brilhou na mente do jovem. Tais lampejos vinham se tornando mais e mais freqüentes, como os relâmpagos em meio às nuvens escuras antes de uma tempestade. Todavia, no seu caso, desejava que o tempo abrisse ao invés de se fechar. Logo completaria dezoito anos – em poucos dias, na verdade – e vinha alimentando a esperança de finalmente sair dali. Chegar a tal idade era um marco na vida de um homem: simbolizava a chegada da etapa adulta, de novas responsabilidades e inúmeras oportunidades. Vivendo numa cidade portuária, Fëanor crescera observando os navios de várias nacionalidades baixando as velas, erguendo as âncoras e ganhando a imensidão do mar, rumo a terras exóticas, fantásticas, todas por ele desconhecidas. Desapareciam no horizonte, além do qual o garoto acreditava existir aventuras, perigos e conquistas ilimitados. Há tempos Fëanor ansiava por abandonar sua vida sem brilho como faxineiro naquela hospedaria e singrar seus próprios caminhos, desbravar as fronteiras além do pôr-do-sol. Ele ouvia histórias incríveis sobre reis, piratas, ninfas, fadas, dríades, monstros, magia, tesouros... Desejava ao menos ter um vislumbre de tudo isso em sua vida, poder se orgulhar de algum de seus feitos...

         Tudo dependia de Tucker. O garoto não poderia simplesmente fugir. Existia grande incerteza em seu sonhador coração a respeito de como o dono do estabelecimento procederia, entretanto a proximidade de seu décimo oitavo aniversário mantinha acesa em si a chama da mudança. Ele tinha de conseguir. O mundo e tudo que ele oferecia foram a Fëanor, desde que nascera, somente uma promessa incerta. Queria agora que essa promessa fosse finalmente cumprida.

 

 

         Dias depois.

A vastidão dos Mares Boreais era de se encher os olhos. Por todos os lados a extensão de água salgada parecia infinita, como se o tapete líquido de Serinius cobrisse todo o mundo. Tal impressão, todavia, era causada apenas devido à limitada visão dos mortais, incapazes de enxergar além da esfericidade do globo. De fato, desde os tempos das primeiras navegações o formato esférico de Boreatia já havia sido comprovado por diversos filósofos e pensadores, viabilizando viagens de circunavegação e o estabelecimento de diversas rotas de comunicação entre os continentes. Aquela utilizada pelo navio anão Barestia, naquela ocasião, era chamada de “Rota do Gelo”, interligando Glacis à costa oeste de Behatar. A denominação se dava justamente devido às baixas temperaturas das águas próximas ao pólo e pelo fato de as embarcações percorrerem-na quase sempre no inverno. Como as tripulações geralmente eram compostas apenas de anões, estes conseguiam resistir sem incômodo às condições adversas e assim, nesse período, chegavam a monopolizar o trajeto.

         O Barestia zarpara de Glacis no princípio do mês de Tradir, ainda durante o inverno. Apesar de não ser o primeiro filho de Northar e Rimya, os povos de Boreatia haviam dedicado o segundo mês do ano ao Senhor da Forja, logo após o de seu pai, devido à baixa-estima da divindade. E, por ser um deus muito venerado pelos ourives e ferreiros, os anões contavam com sua proteção sempre que se lançavam ao oceano. Com o capitão Kal Sul no comando do navio, seus subordinados haviam vencido com bravura as águas gélidas da estação penosa e agora, depois de quase dois meses completos de viagem, aproximavam-se de seu destino no litoral do Reino Boreal.

         A embarcação, mesmo sendo um pouco antiga, continuava sólida como uma gema.  Seu revestimento de madeira era tão bem trabalhado e reforçado que a tripulação costumava dizer que o Barestia era feito na verdade de mármore. Um navio de guerra curto e atarracado, como característico da Marinha de Glacis, com velas grandes, esporão metálico comprido e uma carranca em bronze na proa, representando, no caso, o deus Bragondir com uma caneca de hidromel numa das mãos. As naus anãs possuíam quase sempre considerável peso em metais, utilizados como reforço na estrutura e em outros diversos aspectos da mesma, porém o deslocamento e a capacidade de se manter acima d’água não eram seriamente prejudicados, graças às formas contidas e curvadas que o casco assumia, favorecendo também a ação dos ventos.

         De pé em meio ao convés, Kal Sul, satisfeito com o progresso da jornada, zelava por cada minúcia do navio. Apesar da atividade absorver sua atenção quase por completo, ele não conseguia parar de pensar na esposa. Fora difícil ter de pedir a ela que aguardasse seu retorno e convencê-la de que este ocorreria antes do nascimento da criança ou, como vinha se tornando certo, crianças. Mas Keylia, sempre fiel e compreensiva, acabara por entender. Além do mais, a missão na qual o marido tomava parte era nobre e importantíssima para o reino. Depois de cumprida, os filhos de Kal Sul teriam ainda mais motivos para se orgulharem do pai, e traçariam caminhos inspirados nos dele.

         Sorrindo, o diplomata imaginou seus herdeiros, homens, realizando tarefas arriscadas e gloriosas para os vindouros reis de Glacis. Talvez um de seus descendentes pudesse até assumir um cargo como ministro, ou, caso tivesse uma filha, esta optasse pela vida religiosa e se tornasse sacerdotisa-mor de algum santuário dedicado a Shakrut ou Bragondir. As possibilidades eram infinitas, e Kal Sul vinha adorando sonhar com elas...

         - Capitão! – o chamado súbito e firme tirou-o de seus devaneios.

         Virando-se, deparou-se com Kraivin, seu imediato. Anão forte, bem-constituído, com o corpo vestindo uma armadura em tons de bronze e dourado, composta por placas metálicas que, unindo-se umas às outras com os movimentos das articulações de quem a trajava, não deixava brechas para qualquer investida de lâmina ou flecha. Quase da mesma idade que Kal Sul, possuía, num tom loiro-escuro, cabelos compridos e barba longa e lisa, dividida em duas tranças, os primeiros caindo-lhe até pouco abaixo dos ombros e a segunda até seu peito. Vinha munido de um letal machado de batalha às costas, uma espada longa e afiada numa bainha presa ao seu tórax, e uma adaga, discreta e belíssima, oculta junto à sua cintura. Um especialista em combate, bruto e indomável quando em conflito. Mais que um guerreiro, Kraivin era uma muralha, uma máquina de guerra. Um bárbaro. E o capitão nutria grande consideração por aquele companheiro, junto ao qual lutara antes em várias ocasiões. Discutiam com freqüência, devido às suas visões de mundo divergentes e opiniões contrárias em diversos assuntos, no entanto eram quase inseparáveis.

         - Diga! – replicou Kal Sul, sério.

         - Reurx avistou terra poucas léguas adiante. Creio que aportaremos ainda hoje na cidade de Feritia.

         Sem nada mais responder, o capitão, num de seus conhecidos impulsos, apenas dirigiu-se até a presença do dito Reurx, um dos navegadores-chefe. Este desceu do alto do mastro onde até então se encontrava e, obedecendo a um gesto do comandante, entregou a ele sua potente e adornada luneta anã. Tendo em mãos o tubo dourado contendo arrojado jogo de lentes, Kal Sul posicionou-o junto a um de seus olhos e apontou-o para o horizonte a leste. Um sorriso brotou em sua face barbada ao vislumbrar montes ondulados, árvores frondosas, praias tranqüilas e, mais diminuto, um conjunto cinzento que aparentava se tratar de um núcleo urbano, próximo ao qual uma construção fina e alta remetia a um farol. Contente, o capitão baixou o instrumento, ao mesmo tempo em que ouvia, logo acima do navio, o inconfundível som de gaivotas. Haviam chegado, na companhia da primavera, ao continente de Behatar.

         Sua missão estava apenas no início...

 

 

“A esfericidade do mundo é tão certa

e irrefutável quanto a inquietação do homem

apegado à sua terra que, não importa para onde

viaje, sempre retorna com alívio ao porto do qual partiu”

– Hert de Gaehl, aprox. 3450 ACD.


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