Heróis de Boreatia: a Perfídia de Macker escrita por Goldfield


Capítulo 13
Capítulo IV: A comitiva de Kal Sul - Parte II




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(Continuação...)

- Hidromel! Hidromel! Hidromel!

         A turba de anões que, aos berros, dirigia-se em fila desorganizada pelas ruas de Feritia até a taverna Eterna Bruma causava espanto e até pavor nos moradores da cidade portuária. Tendo partido do cais, o grupo estrangeiro, bradando sem cessar seu grito de guerra ansioso por álcool e estendendo os braços e armas para cima num frenesi belicoso assemelhava-se ao mais terrível pelotão bárbaro de qualquer guerra que já tivesse se presenciado. Pessoas ocultavam-se dentro da segurança de suas casas, trancando portas e janelas, cerrando cortinas. Lojas fechavam mais cedo, transeuntes sumiam em becos. E o embaixador Kal Sul, por sua vez, tinha a certeza de que aquele comportamento em nada contribuiria para melhorar a imagem do povo de Glacis naquele reino. Engolido pela euforia dos companheiros, todavia, resignou-se. Demais reflexões sobre o assunto poderiam vir após uma boa bebedeira...

         Alguém mais oriundo de fora da urbe assistia à animada procissão dos anões. Um sujeito que, caso fosse foco das atenções, coisa que não ocorria devido ao barulho que os marinheiros do Barestia causavam, também provocaria certa sensação entre os citadinos. Elfos, afinal, também eram raros nas terras de Behatar, ainda que não tanto quanto visitantes de Glacis. Se soubesse que a algazarra provocada por estes evitava olhares intrigados em sua direção, Trent Dante com certeza teria providenciado um agradecimento aos camaradas de menor estatura.

         O feiticeiro chegara a Feritia há poucos minutos, dirigindo-se agora até o Armazém Público. Viajara dias depositando suas esperanças na pista que o mensageiro dele originário lhe fornecera sobre uma possível oportunidade de melhorar suas habilidades mágicas. A herança do tal Palas Eddas não era sua, isso era certo, mas talvez ela lhe pudesse proporcionar algum fruto. Ainda que indireto.

         Chegando ao galpão, surpreendeu-se com seu tamanho e com o intenso fluxo de pessoas que dele provinha. Humanos, gnomos e halflings carregavam mercadorias para lá e para cá num interminável labor. Divertindo-se com todo aquele movimento, Trent atravessou o portão de entrada, ganhando o amplo interior do local. As imensas pilhas de caixas e sacas fizeram com que até seus acurados olhos élficos se perdessem em meio ao panorama. Precisava apenas, agora, encontrar alguém que lhe pudesse informar sobre a tal herança e o suposto mago que a deixara. Viu mais halflings transportando carga, humanos fazendo reparos num improvisado mecanismo de empilhamento de recipientes... E acabou descobrindo uma figura miúda, parcialmente careca e vestindo roupas proporcionais ao seu tamanho – a mais chamativa sendo um pequeno colete vermelho que se ajeitava de forma engraçada às suas costas – distribuindo ordens aos berros àqueles que aparentemente eram seus subordinados. A reduzida estatura e a voz muito aguda não deixavam dúvidas sobre se tratar de um gnomo, e por certo ocupava um alto cargo administrativo ou qualquer coisa parecida naquele armazém. Em seus estudos, Dante aprendera que representantes daquela raça, devido à sua competência e organização, geralmente eram delegados a tais funções. Bem, não custaria nada perguntar...

         - Com licença...

         - Andem logo, andem logo! – o baixinho, gritando, nem sequer ouviu o chamado do visitante atrás de si. – Esse carregamento já está atrasado o suficiente, não queremos perder mais honorários!

         - Hã, senhor... – insistiu Trent, sempre bastante educado.

         - Corram, quero os dois navios cheios antes do pôr-do-sol!

         - Senhor! – o elfo foi obrigado a aumentar o tom de voz para se fazer escutar.

         O gnomo, perceptivelmente assustado, deu um ligeiro pulo para frente. Só então se voltou para trás e, vendo o recém-chegado que gritara, cruzou os braços e afirmou numa careta, a expressão ganhando aspecto hilário em seu rosto rechonchudo:

         - Se queria me chamar, bastava tê-lo feito de forma polida, sem precisar me matar do coração!

         - Perdoe-me, é que vejo ser difícil ter a atenção de um sábio senhor dos negócios... – usando de seu carisma e das palavras certas, o feiticeiro procurava consertar o mal-entendido conquistando a simpatia do indivíduo. – Meu nome é Dante. Trent Dante.

         - Que nome esquisito é esse? – estranhou o gnomo, um tanto grosso. – Você é algum artista, é?

         - Digamos que sim. Sou um artista das artes arcanas. E venho até aqui esperando que o senhor possa me ajudar.

         - Pois fale!

         - Fiquei sabendo que um grande mago veio a falecer, um verdadeiro mestre dos encantamentos. Atendia pelo nome de Palas Eddas. E ele deixou uma herança, ou estou enganado?

         - E que interesse você, elfo, poderia ter nesse legado? – o administrador questionou, enrijecendo sua careta.

         No caminho até Feritia, Trent chegara a pensar em se passar por Beli Eddas, sobrinho do morto, porém imaginou a quantidade de problemas que tal mentira poderia lhe acarretar, principalmente se o verdadeiro herdeiro já houvesse reivindicado o que lhe pertencia – coisa que não tinha como saber. Assim, pouco antes de adentrar o galpão, decidira tentar ludibriar o responsável pelo inventário da melhor forma que conseguisse. Diante da indagação do gnomo, ele sorriu, passou uma das mãos pelos cabelos e respondeu:

         - Sou um dedicado estudante de magia, como já mencionei, e assim gostaria de saber do que se trata a herança...

         - Bem, então você deve ser muito ingênuo também, garoto! – replicou Trinx, ríspido. – Somos zelosos por aqueles que requisitam nossos serviços. Jamais entregaríamos ou revelaríamos qualquer coisa tratando da herança de Palas Eddas a uma pessoa que não fosse seu sobrinho. Além do mais, o próprio Beli Eddas aqui passou há pouco e já requisitou o que era seu. Portanto desista de tentar me enganar! Já suspeito do meio como você descobriu sobre a herança... Aquele maldito Rupert! Pelo visto continua abrindo e lendo correspondências dos outros!

         Dante indiretamente acabara prejudicando o mensageiro que odiava seu chefe. Mas, apesar de ter prometido não contar ao gnomo sobre o péssimo hábito de seu funcionário, nem se importava muito com isso... A questão era que seu estratagema fora por água abaixo. Chegara tarde demais, e também não optara pela melhor forma de abordagem. Teria agora de apelar para a bondade do administrador. Tornando sua face séria e deixando livre a frustração que de fato sentia por imaginar ter viajado até ali para nada obter, Trent falou:

         - Escute-me, senhor Trinx. É isso, não é? Eu percorri metade do continente para chegar aqui. Enfrentei diversos perigos nas estradas e gastei todas as minhas economias. O senhor, que pelo visto trabalha neste armazém já há algum tempo e sempre está em contato com pessoas oriundas de Boreatia inteira, não saberia de nada relacionado a magia que pudesse me servir para aprender mais? Um conjurador, uma guilda, algum grimório ou pergaminho perdido ou à venda?

         O gnomo fitou o elfo por alguns instantes, abrindo então um sorriso e dizendo, aparentemente tocado pelo drama do viajante:

         - Na verdade eu possuo alguns praticantes de magia em minha família. Meu tio-bisavô, Durix Kazin, é o maior mago de Equitis. Empregando as artes arcanas, ele é um mestre em auxiliar as atividades alquímicas e inventivas de nosso povo. Aliás, alquimia e invenção se complementam, conseguindo até suplantar a própria magia arcana. Um arranjo de cordas, polias e pesos consegue quase sempre um efeito idêntico, senão mais efetivo, em relação a uma conjuração mágica. Um primo meu já construiu um elevador que se equipara muito bem àquela magia de vôo, e um cunhado dele é um dos responsáveis pelos tubos metálicos utilizados para disparo de projéteis balísticos bélicos que, usando como combustível nosso pó negro e volátil para reações explosivas de diversos fins, supera em potência, com tranqüilidade, até mesmo cem bolas de fogo, e...

         Conforme se empolgava e se aprofundava no assunto, a voz do gnomo tornava-se mais rápida e atropelada, a ponto de logo ficar quase incompreensível. Isso também era típico daquele povo, razão pela qual muitos representantes das demais raças não o suportavam. Certo de que não obteria nada de útil por parte do administrador, Dante decidiu deixá-lo a falar sozinho, com a língua não conseguindo acompanhar a velocidade de seus pensamentos, e virou-se de costas, retornando até a saída. Após já ter se distanciado alguns metros foi que ouviu o inesperado chamado de Trinx, que encerrara a ladainha:

         - Espere! Não queria ouvir sobre magia?

         - Seu tio-bisavô está em Equitis, vou procurar alguém mais perto que possa me auxiliar... – explicou Trent, voltando a cabeça de leve. – Mas obrigado pela ajuda, amiguinho.

         O gnomo deu de ombros e, como que tendo um estalo mental, arregalou os olhos, lembrando-se de algo que tinha de fazer. Com sua voz de timbre estridente, passou a gritar por Rupert; o mensageiro, animado, abandonando o que fazia e se dirigindo até o chefe. Acabou por passar pelo elfo no trajeto deste rumo ao portão, sem percebê-lo, e também ainda sem suspeitar da terrível represália que o aguardava...

         Trent riu. Honrar Feger acabava por significar sempre estar sujeito a se tornar instrumento de suas travessuras...

         A porta de entrada da Eterna Bruma foi aberta de supetão, e o pelotão de anões do Barestia ganhou o estabelecimento enquanto entoava o ápice de seus gritos pré-bebedeira. Juntando várias mesas umas às outras, os recém-chegados praticamente fecharam a taverna apenas para si próprios, ainda mais se levando em conta o fato de que os fregueses que ali se encontravam quando da chegada do grupo, com exceção de um ou dois, deixaram o recinto rapidamente, quase todos murmurando xingamentos e alguns até os proferindo em voz alta. O dono do lugar, no entanto, sabia que não levaria prejuízo: muito pelo contrário. Possuindo ciência do quanto aqueles estrangeiros bebiam, e que contavam mais de quinze indivíduos, obteria em somente uma noite o lucro de uma semana inteira. Assim, de pé atrás do balcão, tinha no rosto um sorriso de orelha a orelha enquanto aguardava os pedidos dos marinheiros.

         Sentado ao lado do imediato Kraivin, o capitão Kal Sul socou a mesa com ambos os punhos e exclamou, alegre:

         - Hoje a bebida é toda por minha conta!

         Os comandados urraram em resposta, erguendo os braços em intensa celebração. O barulho pôde ser ouvido a vários quarteirões de distância. Os representantes do povo de Glacis deixavam claro se encontrar naquelas terras, e que aquela noite a boemia seria a única lei!

         Um dos indivíduos não-anões que haviam permanecido na taverna quando da chegada dos forasteiros era um tipo misterioso de capa e capuz negros, debruçado sobre sua mesa de costas para os beberrões... Beli Eddas não apreciava em nada mortais que se entregavam ao frenesi do álcool, mas, ainda que até aquele momento não houvesse visto ninguém capaz de lhe informar algo sobre Palas Eddas, decidiu permanecer no estabelecimento ao menos mais alguns instantes na esperança de a fortuna o favorecer. Perto dali o proprietário do local, junto a barris de madeira com torneiras dispostos em fileira, enchia várias canecas de hidromel ao mesmo tempo, lançando-as em seguida sobre o balcão até a esposa garçonete, que por sua vez as colocava sobre uma bandeja e se apressava em servi-las aos anões. Estes brindavam, berravam e riam, e logo metade do contingente começou a cantar, desafinadamente, melodias tradicionais de seu povo. Um coro inebriado que feria quaisquer ouvidos. Reconhecendo isso como o auge, o mago humano bufou e preparou-se para se levantar da mesa, quando acabou escutando, por parte de Kal Sul:

         - Esta, certamente, é apenas a prévia da comemoração que faremos no meu regresso, depois de minha presença na coroação do novo rei!

         Então o comandante daquele destacamento também se dirigiria a Borenar? Interessante... Não que a companhia de um anão tivesse em si atrativos ao rapaz, porém viajar em grupo pelas estradas do interior, naquele período, era sempre mais recomendado. Perigos espreitavam tais caminhos o tempo todo e, apesar de ser um usuário de magia, Beli ainda se encontrava no início de seu treinamento. Defender-se sozinho, sem um bom vigor físico, era algo um tanto complicado. Um guerreiro de Glacis, por sua vez, podia ser considerado quase uma fortaleza ambulante, e o mago por certo não teria maiores problemas até a capital se caminhasse ao lado de um. Levava tempo para confiar nas pessoas, e de forma geral não gostava muito de se apegar a elas, já que isso levava à dependência da qual sempre fugira, porém naquele caso era uma necessidade. No trajeto de ida até Feritia, escapara por pouco de uma emboscada de goblins e tivera de apressar o passo para despistar dois homens que aparentemente o seguiam, nos arredores de Tyrnan. Uma viagem tranqüila poderia compensar o incômodo que a companhia de alguém costumava lhe causar. Além do mais, talvez fosse o momento de voltar a dar uma chance a possíveis aliados. Sua anterior associação a pessoas como a feiticeira Elizabeth e o cavaleiro Baltasar mostraram-se ao final desastrosas – mas, afinal de contas, nem todos eram iguais.

         Com esse pensamento, ergueu-se da cadeira e caminhou calmo até o grupo de anões, sem ser por eles notado. Aproximou-se mais precisamente do líder e, tocando-lhe de leve num dos ombros da armadura, disse-lhe em tom pausado e tranqüilo, porém firme:

         - Você pretende seguir até a capital nos próximos dias, nobre anão?

         - Sim, amanhã de manhã! – respondeu Kal Sul, animado. – Marcharei de forma um tanto rápida, porém, pois participarei da cerimônia de coroação de Jetro I e assim lá preciso estar dentro de cinco dias!

         - Não há problema nisso, já que também tenho pressa...

         - Então pretende me acompanhar?

         - Se não houver incômodo nisso...

         - Acredite, não há! Será bom viajar na companhia de alguém diferente, após meses apenas vendo outros anões. Além disso, desejo aprender mais sobre a cultura e costumes aqui de Behatar...

         - Não me julgo a pessoa mais recomendada para isso, mas... se isso não o deixar insatisfeito...

         - Será bem-vindo, senhor...

         - Beli. Beli Eddas.

         - Certo, “Belehder”! – riu o embaixador, pronunciando o nome do recém-conhecido de forma errada. – Sou Kal Sul, diplomata a serviço do nobre rei de Glacis nestas terras amenas. Deseja se juntar a mim e meus camaradas na comemoração de nossa chegada? Aportamos aqui em Feritia há poucas horas!

         Ignorando o lapso do anão relativo a seu nome, o mago simplesmente recusou a oferta com um gesto de sua mão direita, indo sentar-se numa outra mesa próxima da tripulação do Barestia. Não pudera saber mais sobre o suposto tio, mas ao menos aturar um pouco a embriaguez daqueles beberrões servira para garantir uma jornada segura até a capital. A fortuna agia por vias estranhas, muitas vezes...

         Um outro sujeito, além de Beli Eddas, encontrava-se na taverna dominada pelos anões, a diferença sendo que chegara um pouco depois deles. Sentado numa mesa isolada num dos cantos, matando a sede com um jarro de água pelo qual pagara, o elfo Trent Dante ouvira com atenção toda a conversa entre o mago – sobrinho do famigerado Palas Eddas – e o capitão Kal Sul. O maldito humano já devia estar com a herança do tio que fora reivindicar no armazém. O que seria? Algum item mágico como um cajado ou anel? Um livro ou grimório tratando das práticas arcanas? Um familiar? Um homúnculo? O jovem feiticeiro mal conseguia se conter de tanta curiosidade e ânsia por algo que pudesse ajudá-lo em seu aprendizado. E ainda ouvira falar que o mago, junto com o diplomata de Glacis, viajaria para a capital... Dentro de poucos dias ocorreria a coroação do novo rei boreal, Jetro I, e nessa ocasião pessoas de todo o continente e fora dele confluiriam para a cidade com o objetivo de participar das celebrações. Seria uma grande oportunidade para Trent procurar algum feiticeiro mais experiente que aceitasse servir-lhe como mestre, sem contar conjuradores de outros tipos que o garoto poderia encontrar pelas ruas e com eles igualmente aprender coisas novas. Se viajasse na companhia de Beli, seria capaz, além disso, de sondá-lo e obter eventualmente mais algum tipo de conhecimento nos dias que se passassem antes da chegada a Borenar. Perfeito. Era tudo do que precisava!

         Decidido, o elfo deixou sua mesa e aproximou-se discretamente dos anões em festejo e, conseqüentemente, do mago humano. Este até então não havia percebido a presença do outro e, só de atentar para seus trejeitos e indumentária, suspeitou se tratar de um feiticeiro. Já vira inúmeros praticantes de magia desse tipo e sabia reconhecer um rapidamente – ainda mais pelo fato de simplesmente não os suportar. Fazendo uma careta e temendo que o estranho quisesse se unir a eles, ouviu-o perguntar a Kal Sul:

         - Posso interrompê-los por um momento, nobre anão?

         - Diga, orelhudo! – o embaixador exclamou num sorriso, barba pingando hidromel.

         - Acabei escutando a conversa de vocês, e soube que pretendem seguir até a capital. Haveria problema se eu também me unisse ao bando?

         - O diplomata Kal Sul já pode contar com um praticante de magia arcana! – Beli Eddas respondeu de maneira grossa, só então Dante notando sua presença.

         - Ora, meu amigo, não seja tão rude para com ele – falou o capitão, voltando-se para o mago e em seguida para o feiticeiro. – Nesses caminhos perigosos deste reino, quanto maiores os grupos viajando, mais seguros estarão. Parece-me um rapaz bastante honrado. É bem-vindo a nosso grupo!

         - Você não devia aceitar qualquer pessoa que aparece para falar com você, Kal Sul... – agourou Beli.

         - Se eu aceitei você, que mais parece um acólito dos deuses malignos com esse roupão negro, por que não aceitaria o amigo orelhudo aqui? – rebateu o embaixador, rindo. – Sente-se conosco, garoto!

         - Obrigado, obrigado – sorriu Trent puxando uma cadeira.

         E, descontraídos, comemoraram e beberam. Os anões contavam uns para os outros e para os que não eram de sua raça histórias de sua terra, desde lendas até casos pessoais – muitos deles soando à mentira. Falavam de ogros retalhados a machadadas às cegas, fugas heróicas do interior de minas soterradas à mercê de perigosos monstros subterrâneos, brigas de taverna devido a motivos fúteis que acabavam se tornando semi-epopéias... Num dado momento, por uma espirituosa intervenção do dono do lugar, o assunto foi mudado para a cidade de Feritia. Foram ouvidos relatos sobre navios que a imponente luz do farol salvara de iminentes naufrágios, boatos a respeito de visitantes misteriosos que teriam passado pelo porto, lendas tratando do longínquo passado da urbe... E, regadas a álcool e euforia, tais conversas marcaram o fim da tarde e o início da noite, a luz alaranjada que penetrava pelas janelas dando lugar a um azul escuro e ao mesmo tempo pálido, acompanhado de brisa um tanto fria. Nayx envolvia, com seus braços estrelados, os boêmios da taverna...

         Foi assim que, distraídos e alegres – incluindo no caso até aqueles que não haviam bebido, como Beli e Trent – os fregueses não notaram a porta de entrada, em dado instante, tornar a ser aberta, e uma figura encapuzada, de ligeiros contornos femininos, atravessar o recinto e se sentar diante do balcão. Seus passos discretos e movimentos sutis procuravam afastar de sua figura qualquer curiosidade, e surtiam efeito. Apenas o proprietário percebeu sua chegada, perguntando, com a voz abafada pela gritaria oriunda dos marinheiros e fitando o lampejo de rosto branco e cabelos loiros que ficavam à mostra sob a capa:

         - Deseja alguma coisa, senhorita?

         - Uma caneca de cerveja, por favor – ela respondeu em tom baixo, empurrando com os dedos algumas moedas de ouro sobre o balcão.

         O atendente apanhou o dinheiro e foi providenciar a bebida, caminhando até um barril. A moça, por sua vez, baixou a cabeça e tornou a pensar no que afinal viera fazer naquela maldita cidade. Freya atravessara o portão ao final da tarde, permanecendo algum tempo vagando pelas ruas na esperança que alguém viesse ao menos contatá-la acerca de quais seriam suas ordens e, vendo que ninguém apareceria, resolveu então, quando o sol se punha, espreitar a taverna. Permaneceu junto ao balcão por alguns minutos, a cerveja relaxando seus nervos, desejando do fundo de seu íntimo, simultaneamente, que o tal “M” não a estivesse enrolando. Ah, se a situação fosse outra... Ela faria picadinho do desgraçado! Talvez até conseguisse ainda fazê-lo, quando o jogo se invertesse. Podia considerar-se uma mestre nisso...

         - Desculpe fazê-la esperar tanto, minha querida...

         A voz feminina, cavernosa e rouca, atingindo os ouvidos da mercenária como um vento que trazia má sorte, viera de seu lado direito. Voltando-se nessa direção, a jovem viu um vulto de manto e capuz semelhantes ao seu, acomodado no assento ao seu lado. Quase nenhuma seção do corpo encontrava-se exposta, com exceção de parte da face, que revelava uma pele excessivamente branca, enrugada e disforme, o que supostamente compunha o contorno de um dos olhos se assemelhando a um inchaço de bizarro tom esverdeado. O que mais assustava na figura, que apesar do aspecto degenerado podia ser identificada como uma mulher idosa, e que fizera realmente o coração de Freya acelerar seus batimentos, era que, até poucos segundos antes, aquela estranha simplesmente não se encontrava ali. A guerreira, sempre atenta a emboscadas, observara bem os bancos diante do balcão e escolhera justamente um canto isolado para se posicionar. Tinha certeza de que a velha não estava ali quando chegara e, para agora já ser vista sentada ao seu lado, devia ter sido extremamente rápida e sorrateira para não ser percebida! Sentindo sua espinha gelar, a mercenária indagou, depois de engolir seco:

         - Você trabalha para ele?

         - Sim, eu trabalho – replicou a anciã, cuja presença despertava em Freya os temores mais profundos. – E pediu que lhe entregasse isto...

         Ela então colocou um dos braços sobre o balcão, a manga da capa acabando por deslizar para trás e assim revelando o aspecto do membro. Fitando-o, a moça achou que iria vomitar. Muito pálido, com enormes veias roxas saltando-lhe embaixo da pele pastosa, terminava numa mão raquítica, os dedos aparentando ser compostos de puro osso e com unhas compridas e enegrecidas sob camadas e mais camadas de sujeira. A mercenária até julgou ter visto, no polegar do sinistro conjunto, um pequeno verme dançando perdido, apressando-se em desaparecer em meio a uma cutícula quase podre. Recuando tão rápido quanto surgira, indo mais uma vez ocultar sua horripilante imagem no interior do manto, a mão deixou em cima da madeira um pequeno bilhete dobrado, papel ligeiramente amarelado. A intenção era que Freya pegasse a mensagem e a lesse, mas hesitou por vários instantes, temendo contrair a praga ou qualquer outra desgraça que deixara a velha daquele jeito ao tocar o material. Não tinha muita escolha, porém. Com uma cara de nojo, tomou a nota em suas mãos e leu-a o mais rápido que pôde:

         Esteja em Borenar para a coroação. Tomará parte em nosso plano.

         Fiz com que se deslocasse até Feritia para testar sua lealdade e eficiência.

         Não me desaponte.

“M”.

         O sujeito era mesmo ardiloso. Quisera testá-la então, fazendo-a viajar dias e ainda por cima deixar a capital, local em que antes se encontrava, e onde agora seu misterioso plano teria palco. Mais um motivo para Freya matá-lo quando a oportunidade surgisse. Discretamente rasgou o papel, picando-o em dezenas de pedaços. E quando tornou a virar-se para a direita com o intuito de falar com a macabra idosa... ela havia desaparecido sem deixar qualquer rastro! Sentindo novo calafrio, a mercenária, tentando disfarçar o leve tremor em seus dedos, ergueu a caneca e tomou mais um gole de cerveja. Felizmente o líquido continuava eficiente na tarefa de acalmá-la...

         - Eu opto por partirmos às oito da manhã! – um dos anões exclamou, sua voz se sobressaindo às dos companheiros. – Será cedo ainda, porém não tanto. Tempo suficiente para dormirmos muito bem esta noite, e a estrada nos encontrar descansados quando o sol estiver no céu.

         Tendo escutado com clareza a fala, a jovem guardou-a em sua mente e, assim que terminou a cerveja, levantou-se e caminhou para fora da taverna, sem ser notada até que a porta se fechasse. Quando isso se deu, alguns dos anões e Beli Eddas ergueram as cabeças e as voltaram para a entrada, deparando-se apenas com a mesma batendo, sem conseguirem ver quem a havia atravessado. Logo em seguida ignoraram o ocorrido e redirecionaram suas atenções para o assunto tratado – àquele momento, goblinóides – aguardando o passar das horas até que chegasse o momento de se recolherem...

         Caminhando pelas ruas do lado de fora, que aos poucos se esvaziavam, as luzes de velas no interior das moradas gradativamente se apagando, Freya começava a se questionar a respeito de em que realmente estava se metendo.

         O expediente terminava na hospedaria Manhã Amarela. Os funcionários rumavam para seus aposentos, as luzes dos quartos começavam a desvanecer. Fëanor Bladinor – ainda não acostumado ao recém-descoberto sobrenome – encontrava-se em seu leito habitual, no qual repousava desde bebê. Com uma vela ainda acesa sobre o criado-mudo ao lado da cama e a claridade do luar atravessando o vidro fosco da janela, o jovem aproveitava a maciez do colchão de penas e o conforto do travesseiro rasgado como nunca antes. Afinal, era bem provável que a partir da manhã seguinte jamais tornasse a descansar naquele ninho, ou ao menos não durante um considerável tempo...

         A expressão facial de Tucker quando o garoto retornou da floresta ao entardecer, carregando a espada e a armadura paternas, jamais deixaria a memória de Fëanor. Os olhos do pai adotivo haviam sido invadidos por um brilho que unia tristeza e alegria, pesar e júbilo, desespero e esperança, essa série de sentimentos contraditórios que acabam fundidos pela forja das despedidas prometendo destinos brilhantes. Ainda que a separação fosse dolorosa, o aspirante a Cavaleiro da Luz tinha agora um caminho de glória pela frente, e o proprietário da hospedaria sabia muito bem disso. Afirmou que não colocaria nenhum obstáculo em seu caminho, e que as portas da Manhã Amarela estariam sempre abertas ao garoto, não importando do que ele precisasse. Em seguida se abraçaram com força, e Fëanor notou que Tucker chorava. Nunca o vira verter lágrima alguma desde a morte da esposa...

         O rapaz decidira iniciar sua viagem rumo a Borenar na manhã seguinte, pois, na presente data, já teria de se deslocar de maneira acelerada para chegar a tempo da coroação. A ansiedade, todavia, como era de se esperar, impedia que o jovem pegasse no sono. Assim seguia virando para lá e para cá pela cama, ouvindo as vozes provenientes do balcão de registro da hospedaria – situado bem próximo de seu quarto, bastando apenas avançar através do corredor...

         Beli Eddas sentia-se satisfeito com o aspecto da pousada. Era limpa, aconchegante e, o melhor de tudo, barata. Oito peças de ouro a noite, dez se o hóspede desejasse tomar café na manhã seguinte. Compensava, e muito, pagar míseras duas moedas a mais pela refeição. Uma coisa boa que o Crepúsculo dos Deuses parecia ter trazido ao mundo era que, com a reformulação cambial, produtos e serviços pareciam muito mais acessíveis, até a quem mal possuía recursos. Com o fim da Liga do Norte e a moeda que ela impusera a todos os seus domínios, o “swuordo”, acabara sendo de comum acordo entre as nações que peças de ouro de qualquer procedência, cunhadas com quaisquer formas ou imagens e tendo em comum somente o peso no respectivo metal, serviriam de unidade monetária universal até que as situações econômicas dos países afetados pelos séculos de catástrofes pudessem melhorar. Em alguns locais como Etressia e Barbety tentou-se, por alguns anos, utilizar-se peças de prata e cobre, gradativamente menos valiosas, em complementação ao sistema das peças de ouro, porém o predominante era que estas últimas, sozinhas, servissem de dinheiro aos povos de Boreatia, e desse modo todos os preços a elas se adaptando.

         - Está então interessado num quarto, senhor Eddas? – inquiriu Tucker, disposto a servir o recém-chegado da melhor maneira possível.

         - Sim, mas apenas por esta noite. Amanhã de manhã partirei rumo à capital. E pode incluir o café.

         - Muito bem! – respondeu o atendente enquanto anotava o nome de Beli Eddas, previamente dito, no velho livro de hóspedes. – Você ficará com o quarto número seis. Espere um pouco, vou providenciar sua chave...

         Enquanto o dono do estabelecimento se virava para um pequeno armário atrás de si em busca da chave correspondente, o mago, olhando para a direita, notou um rapaz humano que não devia ter mais que dezoito anos, vestindo trajes de dormir na cor bege, caminhar em sua direção, olhos cansados e movimentos lentos. Chegou um pouco mais perto e disse, depois de rápido bocejo:

         - Acabei ouvindo a conversa de meu leito... Então você partirá em viagem até Borenar pela manhã?

         - Sim, na companhia do embaixador de Glacis em Behatar, o anão Kal Sul – replicou Beli, sério.

         - Será que haveria incômodo se eu os acompanhasse? Também preciso chegar à capital o quanto antes, mas as estradas estão perigosas demais e ainda não pude aprender a manusear uma espada... Posso servir-lhes em qualquer outra coisa que seja necessária, porém. Tucker é capaz de citar quais eram minhas inúmeras ocupações aqui na hospedaria, se achar preciso.

         - Sim, Fëanor é um jovem muito dedicado e prestativo, aposto que será de grande ajuda no caminho até Borenar, ainda mais considerando o risco existente hoje nessas vias que cruzam o continente... – emendou Tucker, auxiliando o rapaz.

         Beli Eddas coçou o queixo numa ligeira careta. A comitiva de Kal Sul estava aumentando. E não podia dizer que gostava disso...

         A noite provocava bonito efeito em Feritia. As ruas de calçamento de pedra ganhavam um brilho espectral sob o luar, os telhados das casas e suas paredes projetando sobre o solo sombras difusas que se encontravam, se confundiam e por fim se perdiam. Sem ser banhado pelos raios solares, o farol compunha vulto alto e enegrecido, como uma presença maciça e colossal que, hibernando, aguardava o raiar do dia para voltar a tomar parte no esplendor da urbe. Um mortal de menor conhecimento geográfico poderia afirmar que monumentos grandes como aquele eram um marco de todas as cidades de Behatar, pois Tyrnan possuía fora de seus muros a enorme estátua da deusa Wella, mas, exceto essas duas povoações, eram raros os locais no continente com tal tipo de construção ainda de pé, quase sempre resquício do Império Boreal. O fato de ambas estarem situadas a oeste parecia fazer parte de um estratagema prévio para gerar um sentimento de imponência do reino sobre aqueles que a ele chegassem desembarcando em Feritia e se dirigindo à capital pela estrada de Tyrnan, mas a verdade não passava de que essa característica constituía mera coincidência.

         A questão era que, desobedecendo ao toque de recolher que se iniciava às dez da noite – lei ainda em alguns pontos de Behatar após o Crepúsculo dos Deuses devido justamente aos saqueadores e criaturas perigosas que a assolavam – uma figura solitária vagava pelas ruas. Encapuzada, sorrateira, traços femininos. Freya. Dirigia-se rumo ao porto, ocultando-se nas sombras pelo trajeto. Esperava não encontrar nenhum guarda. Isso com certeza complicaria sua vida.

         Após ter deixado a taverna, espreitara seus arredores durante algum tempo. Os anões logo saíram, dirigindo-se animados – como se sua empolgação nunca acabasse e o álcool jamais lograsse derrubá-los – na direção do cais. Vários deles, de caneca na mão, ainda bebiam. A mercenária deduziu que pernoitariam no mesmo navio que os trouxera àquela costa. Caminhava agora lentamente na mesma direção, demorando mais de forma proposital para que os marinheiros não achassem que ela os seguira. Chegando ao tablado do píer, caminhou por ele para cima e para baixo por vários minutos, para só então, assoviando com as mãos nos bolsos, dirigir-se diretamente até a nau Barestia, a qual identificara devido à sua carranca logo que chegara ao local.

         Todos os guerreiros de Glacis já haviam se recolhido para o interior da embarcação, exceto por um sentinela que permanecera no convés: o imediato Kraivin. Foi com olhar intrigado que ele viu a escusa figura de capa se aproximar de forma suspeita, depois de claramente ter pedido algum tempo andando sem rumo pelas docas. O visitante misterioso, ou melhor, a visitante, pois o formato dos quadris parecia feminino, logo parou diante do barco anão e exclamou:

         - O capitão está a bordo?

         - A quem interessa? – replicou o bárbaro combatente, desconfiado, do alto da nau.

         Num gesto que visava acalmar o vigia e demonstrar que não vinha em má intenção, Freya retraiu o capuz, revelando sua cabeça. Os cabelos loiros unidos numa longa trança, agora desenrolada, passaram a lhe cair até as costas e o rosto alvo e cínico, com uma cicatriz em forma de fenda cortando na vertical o olho direito – este, porém, não estando vazado – ficou à mostra. Passou uma das mãos pela fronte para afastar uma mecha de fios dourados que insistira em despencar sobre a porção esquerda de sua face e então respondeu, voz irônica:

         - Freya, prazer.

         - Não a conheço! – Kraivin afirmou ríspido.

         - Sim, não conhece... ainda. Mas depois que seu capitão lhe contar, daqui algum tempo, sobre os serviços que a ele prestei, com certeza me verá como alguém de quem ele se orgulha e que realmente considera uma amiga. Para que esse futuro exista, no entanto, e ele não seja obrigado a passar por inúmeras dificuldades sem meu amparo, é preciso que você o chame para que possamos nos falar.

         - Não venha com conversa, mulher, ou serei obrigado a defender a mim e a meus companheiros! – ameaçou o imediato brandindo sua espada.

         - Acalme-se meu amigo, acalme-se! – pediu, adentrando o convés após subir por uma escada, o embaixador Kal Sul. – Ouvi a gritaria lá de baixo e tive de vir até aqui averiguar. Melhor resolvermos isto logo ou ninguém conseguirá dormir, nem aqui e nem nos outros navios. O que deseja, minha cara?

         - Que bom ter vindo falar comigo, capitão, pois seu agressivo subordinado estava a ponto de me atacar letalmente... – queixou-se a mercenária, olhando de soslaio para o imediato. – Chamo-me Freya e descobri, graças ao que se fala nas ruas desta cidade portuária, que planeja iniciar o trajeto até a capital Borenar amanhã cedo. Estou aqui para oferecer-lhe meus serviços, acompanhando-o nessa jornada através de uma terra desconhecida.

         - E de que maneiras pode me ajudar, cara Freya? – quis saber o diplomata, mãos na cintura.

         - Possuo invejável habilidade manuseando espadas, adagas e bestas. Também consigo utilizar outros tipos de armas brancas e de ataque à distância, apesar de não ter tanta experiência com elas. Sou versada nas línguas comum, boreal, de Astar, de Kartan...

         - Já é suficiente! Uma guerreira veterana será perfeita para integrar nosso grupo rumo a Borenar. Assim poderemos nos defender com facilidade de qualquer ataque que soframos na estrada. Cobra algo por seus serviços?

         - Apenas cem peças de ouro, as quais só precisa me pagar ao chegarmos à capital. Não cobro muito devido a também precisar viajar até esse destino e me desagradar a idéia de seguir sozinha com tantos riscos pelo caminho.

         - Certamente... Bem, planejamos partir amanhã às oito horas, na frente do portão principal. Esteja lá. Temos de chegar a Borenar o quanto antes.

         - Perfeito. Estarei lá. Tenha uma boa noite, nobre capitão.

         - Chame-me de Kal Sul.

         - Como quiser.

         A guerreira então se distanciou, os passos de suas botas ecoando pelo tablado. Enquanto retornava ao interior da embarcação, preparando-se para uma reconfortante noite de sono, o diplomata foi detido por Kraivin. Este, tendo no rosto uma expressão de desagrado, disse ao superior:

         - Não confio nada nessa mulher, Kal Sul... Não me parece boa pessoa. Talvez devesse ter pensado mais antes de aceitar a ajuda dela!

         - Meu imediato, não parou para prestar atenção, hoje mais cedo, na reação dos moradores da cidade ao nos verem? Tão cheios de preconceitos, tão hostis... Não acha que, agindo da mesma forma para com eles, nunca chegaremos a um acordo? É melhor tentar conhecer melhor os outros antes de julgá-los, ou cairemos no mesmo erro daqueles que acham que não passamos de beberrões desmiolados, ainda que muitas vezes pareçamos isso...

         E, deixando no convés um Kraivin sem palavras para contra-argumentar, o embaixador recolheu-se.

         Enquanto Freya constituíra há pouco uma figura humana sorrateira a vagar pelas ruas vazias de Feritia, um outro vulto, também humanóide, parecia igualmente ignorar o toque de recolher; mas do lado de fora da muralha. Caminhando a passos que não possuíam rumo definido, movendo-se por trajetos quase em círculos em torno dos troncos e raízes das árvores mais próximas do muro, pernas imersas até a altura dos tornozelos na grama, Trent Dante procurava um bom lugar para dormir. Ocupado na tarefa já há alguns minutos, dirigira-se para o exterior da cidade depois de ter decidido não gastar suas preciosas economias com um quarto na hospedaria: estava certo de que necessitaria e muito delas pelo caminho até a capital. Além do mais, era um elfo, e se cansara de ouvir seus pais dizerem que, abençoados por Mager e Wella, os representantes de sua raça possuíam empatia inata com a natureza. Desse modo via-se confiante em pernoitar em meio à mata, imaginando que nenhum animal ou planta o incomodariam. Talvez o tapete verde e fresco da floresta acabasse lhe sendo mais confortável do que qualquer cama de travesseiro e lençol. Para completar, acreditava que o contato direto com a fauna e a flora poderia acabar favorecendo suas habilidades mágicas de algum modo – ainda que seus encantamentos fossem arcanos.

         Encontrando um bom nicho aos pés de uma velha sequóia, numa área de vegetação pouco densa e com a urbe murada bem à vista, Trent retirou seus pertences, reuniu-os no chão sobre uma área coberta de folhagem e, após afastar alguns gravetos insistentes, deitou-se sonolento. O piar de uma coruja atingiu seus ouvidos, o pássaro provavelmente o observando. Deu então dois ou três bocejos antes da mente fatigada pelo dia cheio finalmente se apagar, um sorriso de orgulho permanecendo em seu rosto jovial devido a julgar ter procedido da melhor forma em sua jornada até o momento, e ansiando pelas muitas outras descobertas e triunfos que viriam adiante...

         As horas escuras transcorreram em seu ritmo habitual e o sol de Northar logo se ergueu do horizonte a leste, ordenando que a lua da esposa Rimya se afastasse – já que passara tempo suficiente podendo ter sua figura admirada pelos reles mortais – e fazendo Nayx recolher suas filhas estrelas, para só tornar a trazê-las para brincar quando a noite voltasse a cair. Banhadas pelos primeiros raios solares, as telhas no topo das construções ganharam contornos dourados e as águas do mar resplandeceram como que saudando o astro-rei. Arautos da alvorada, galos cantavam por toda a cidade, avisando aos moradores ter chegado o momento de deixarem suas camas e com elas o bálsamo do sono. Feritia aos poucos voltava à vida.

         Nem todos haviam deixado para despertar somente àquele momento, porém. Quando ainda não havia luz e a madrugada predominava no litoral, um obstinado jovem deixou a hospedaria Manhã Amarela pela porta da frente, terminando de se despedir de forma calorosa do dono do local. Fëanor saíra tão cedo por ter um lugar para visitar antes de se encontrar com o grupo de Kal Sul às oito horas: o Templo de Northar. Tinha de entregar seu destino ao Senhor dos Deuses. Era por ele, e em honra a ele, que sua vida estava mudando e a aurora de um futuro triunfante despontava em sua existência.

         Após percorrer as ruas que o separavam do santuário, o garoto deparou-se com sua grande e detalhada fachada. As colunas ricamente esculpidas retratavam episódios da criação do universo e do nascimento dos demais deuses a partir de seu pai. Deviam tamanho esplendor a algum artista anônimo de séculos atrás, aquelas estruturas tendo sido salvas da perseguição pelos adoradores de Swordanimus graças a um cuidadoso processo de remoção realizado pelos zelosos habitantes da cidade. Tendo escondido as colunas daqueles que desejavam destruí-las por tempo considerável – até que fossem plenamente aniquilados no Crepúsculo – foram então retransportadas de volta ao seu local de origem, servindo agora como emblema de um novo período em que os mortais prometiam jamais voltar a renegar as divindades que os haviam colocado sobre o mundo.

         A porta de entrada talhada em mogno encontrava-se aberta, os clérigos responsáveis pelo templo sempre o disponibilizando bem cedo para a visitação de fiéis. O devoto Fëanor venceu os poucos degraus da escada que o separava do interior da construção e, logo que a adentrou, sentiu-se perto do êxtase. Atrás de um altar de pedra nos fundos do local, uma alta e majestosa estátua de Northar, com sua espada desembainhada, armadura de guerra impecável e longa barba lisa, parecia contemplar a infinitude de sua criação com os olhos severos e ao mesmo tempo serenos. Foi diante dessa suprema figura que o rapaz colocou-se de joelhos, iniciando suas horas de prece ao deus. Tentando seguir os conselhos de Rabesdin, procurava entregar sua sorte nas benevolentes mãos daquele guia que a tudo e todos conhecia. Rogou-lhe pela mesma proteção antes concedida ao pai Göther, pela bravura sempre presente nos Cavaleiros da Luz e por sabedoria para conseguir lidar com a dor existente em seu passado, principalmente no tocante a Macker. Tinha certeza de que, sob a glória de Northar, conseguiria conter qualquer ímpeto de vingança e, simultaneamente, ganhar força e perseverança para defender todas as causas que fossem justas e benéficas.

         - Acta deos numquam mortalia fallunt, ad majorem Northaris gloriam, coram nobis, coram vobis, ad mortem...

         Fazendo suas orações em boreal antigo, a mesma língua dos imperadores que no passado haviam feito de Behatar centro de um domínio mundial próspero, coeso e fiel aos deuses, Fëanor, de olhos fechados, sentia-se conduzido pela pura vontade divina.

         E o caminho seria longo...

         Trent Dante custou a acordar. Virou para um lado, para o outro... seu corpo desacostumado ao chão duro latejando sobre as folhas secas. Uma cama macia contribuía bem mais para um bom sono, afinal de contas, principalmente se fosse a cama que ficara para trás em sua casa ao norte. Revirou-se mais uma vez, bocejou, coçou-se. Por fim, tomado por persistente preguiça, abriu os olhos, encarou o céu azul-alaranjado, as copas das árvores agitadas por um ligeiro vento... e, ao mesmo tempo, sentiu um estranho formigamento em sua mão direita. Ergueu o tronco num sobressalto, permanecendo sentado em cima da relva enquanto erguia o membro para constatar o que acontecera...

         - Essa não!

         A exclamação frustrada se deu assim que os inexperientes olhos do feiticeiro fitaram o punho extremamente vermelho e inchado, tendo alcançado quase o dobro de seu tamanho normal num terrível caroço. No centro da protuberância se observava dois pequenos pontinhos negros: uma clara marca de picada de inseto. Alguma aranha ou formiga monstruosa o atacara durante a noite e causara tal efeito ao morder sua mão. Estranhou-o, devido a saber que indivíduos de sua raça muito dificilmente eram acometidos de doenças ou afetados por substâncias como o veneno do animal em questão. Deduziu, no entanto, que essa qualidade já lhe valera pelo simples fato de apenas a área mordida ter sido prejudicada e não o corpo inteiro, sendo que um humano em sua situação possivelmente amanheceria morto. De qualquer modo, jamais pensara que uma noite na floresta lhe causaria tantas dores musculares e uma picada tão feia. Que belo elfo vinha se saindo...

         - Problemas, meu rapaz?

         A voz pegou Trent de surpresa, fazendo-o se levantar de súbito e girar desajeitado na direção de onde viera. Pertencia a um velho de cabelo e cavanhaque brancos, vestindo manto judiado e com sandálias lhe calçando os pés sujos. Olhava para o feiticeiro de modo fixo, como se o examinasse com atenção. Este ocultou a mão inchada atrás da cintura e respondeu, tentando agir naturalmente e devido a isso obtendo o resultado totalmente contrário:

         - N-nada... Apenas explorando a floresta!

         - Parece ter tido uma noite dura. Por que não faz as pazes com a natureza aproveitando o que ela tem a lhe oferecer?

         Dizendo isso, o ancião apontou para uma série de arbustos próxima do tronco da sequóia. Eram compostos de várias folhas verdes compridas das quais pendiam em abundância pequeninos frutos vermelhos, cada um não sendo maior que um grão de feijão. Dante ouviu então o idoso dizer:

         - Esta planta se chama “caramir”, e cresce muito perto do litoral. Os frutos que gera, quando esfregados sobre pele ou músculo, formam uma pasta ótima para tratar de inchaços, torções ou outras contusões. Talvez devesse levar um pouco consigo, elfo.

         - Certo... – murmurou o jovem em resposta, aproximando-se da moita. – Recomenda uma quantidade específica?

         Mas já era tarde: o velho acabara de desaparecer mata adentro. Por mais que seu aspecto fosse estranho, assim como sua repentina aparição, o conselho que lhe dera não deveria ser ignorado. Empregando a mão intacta, o feiticeiro passou a colher o máximo possível de frutinhos para sua viagem.

         Oito da manhã.

         Diante do portão principal de Feritia, fora da cidade, o embaixador anão Kal Sul aguardava pacientemente a chegada do resto de sua comitiva. Passara vários minutos se despedindo de cada um dos integrantes da tripulação do Barestia, agradecendo também pelo empenho durante a viagem marítima e frisando a promessa de uma nova comemoração regada a hidromel no futuro. Munido de todo o seu equipamento e recursos – sem precisar citar a fiel tríade de machados sempre consigo – o diplomata portava agora, em adição à carga, um bonito escudo redondo com detalhes em ouro e uma pouco saliente ponta afiada em seu centro, outro dos estimados tesouros de sua linhagem. Com o corpo descansado e determinação crescente, ansiava em partir o quanto antes rumo à capital daquele reino.

         Logo surgiu o mago Beli Eddas, sempre discreto e misterioso, andando de forma desapressada enquanto folheava o grimório de seu tio. Parecia carregar consigo pouca coisa, apesar de não se conhecer os segredos que devia trazer sob seu manto negro. Em silêncio, aproximou-se do anão e, voltando-se para o portão recém-cruzado, pôs-se a esperar com ele os demais aventureiros.

         O próximo a aparecer foi Fëanor, vestindo a loriga segmentada do pai, a qual ainda não se ajustava da melhor maneira ao seu corpo magro e destreinado, e transportando numa bainha às suas costas a bela espada que também de Göther herdara. Tinha pendurada ao pescoço uma correntinha com um pequeno pingente brilhante na forma de uma espada com a lâmina voltada para o céu, representação de seu deus e dos Cavaleiros da Luz que confeccionara na hospedaria durante as intermináveis horas da madrugada. Era fato que praticamente não dormira a noite toda, e agora sua sonolência poderia acabar reduzindo de forma drástica a distância a ser capaz de percorrer aquele dia.

         Depois veio o elfo Trent Dante, tendo uma das mãos envolta em ataduras por motivo de provável ferimento e também carregando poucos pertences, entre os quais se destacava um saco de estopa contendo grande quantidade de frutinhas vermelhas. Andando de forma rápida e zelosa, orelhas pontudas sempre atentas aos arredores, o feiticeiro continuava gerando antipatia em Beli Eddas, o qual esperava não ter problemas com o garoto pela estrada.

         Os quatro viajantes se agruparam sob a fresca sombra de uma árvore, observando o trânsito de mercadores e guardas que entravam e saíam pelo portão. Muitos instantes se passaram, e nada de Freya dar as caras. Kal Sul estava intrigado: justo aquela que cobrava por seus serviços era a mais atrasada?

         Foi quando ela surgiu, tranqüila e despojada, através da saída da cidade. Ainda usava sua capa escura, mas a cabeça loira, assim como na noite anterior, mantinha-se descoberta. O embaixador de Glacis, mais habituado à guerra, conseguiu notar o contorno de algumas armas embaixo do traje da moça, o que considerou plausível levando em conta as habilidades de combate que ela afirmara possuir. Chegando perto do grupo, olhou cada um dos integrantes com uma expressão facial vazia e então exclamou, numa animação que só gerou estranheza em seus novos companheiros:

         - E então, vão ficar aí parados esperando o sol subir mais pelo céu, nos deixando com sede sem que tenhamos andado légua alguma?

         Kal Sul pareceu impulsionado como nunca pelas palavras e, começando a caminhar atrás da mercenária, gritou:

         - Vamos!

         Os outros três se entreolharam e, lado a lado, também iniciaram o longo trajeto pela estrada que levava a leste...

“Um grupo de aventureiros que, ao acaso,

encontra-se numa taverna e decide seguir

rumo a um destino comum, pode ser

considerado peça vital do plano

dos deuses”

Galahüm, aprox. 102 ACD.


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