Fanficland e o Anjo da Inspiração escrita por Lady Brisa


Capítulo 1
1: Fanficland pode ser um pouco obscura às vezes




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Ela ignorou, ou ao menos tentou ignorar pela terceira vez o irritante zumbido em seus ouvidos que, além de atrapalhar a música em seu headphone, também insistia em desconcentrá-la de pensar em como resolveria seu atual dilema. Bem, ela realmente tentou, porque o ruído foi aumentando de intensidade até ficar insuportavelmente agudo. Com um bufar de pura raiva, ela tirou os fones do ouvido e os atirou na mesa, e virou-se de lado na cadeira à espera de algo.
—Ah, finalmente me deu atenção! — A voz de patricinha mimada de desenho animado de quinta categoria soou à sua frente e Lady suspirou pelo nariz, bastava estender a mão que conseguiria sentir a indesejada visitante de testura muito semelhante a uma teia de aranha, embora o material que a formava definitivamente não fosse teias de aranha e lhe conferisse um formato humanóide relativamente assustador para os não acostumados e medrosos. Não que LadyBrisa fosse a pessoa mais corajosa do mundo, ela apenas havia se acostumado com as visitas daquele ser (embora geralmente a materialização daquilo significasse que algo bizarro estivesse para acontecer.) Todavia, não adiantava ela protestar, afinal, a coisa simplesmente a acompanharia enquanto estivesse no mundo da escrita. Até porque, o ser não era nada mais, nada menos que a inspiração materializada que todo o escritor possuía. Uma espécie de anjo da inspiração, segundo havia explicado a uma assustada e confusa Lady Brisa da primeira vez em que se viram. Ela só não explicou, no entanto, o porquê de ter escolhido aquela aparência peculiar, mas isso nem era relevante no fim das contas.
—Tá, qual vai ser a bomba do dia? — Brisa perguntou, um tanto quanto sem paciência (okay, na verdade paciência era a última coisa que ela tinha naquele momento,) O anjo anômalo deu uma risada sarcástica antes de responder.
—Hmm, tá na TPM, fofa? — Brisa forçou um sorriso gigante, porém mais falso que nota de 1R$, algumas respostas à altura flutuando em sua mente. Contudo, por conhecer a criatura há bastante tempo, sabia que responder só levaria a mais discussão e, ao menos hoje, não estava com muita vontade de discutir com sua própria inspiração.
—Beleza. Vai ficar aí parada feito um 2 de pau* ou vai me falar o que veio fazer aqui? — Ainda assim ela retorquiu, com toda a classe do mundo, fazendo o anjo arregalar os olhos e dar um passo para trás.
—Eeiaaa! Sabia que comia milho, não que dava coice**. Mas okay, eu vou falar. — A outra respondeu com um tom sorridente que fez a humana contar mentalmente até dez em inglês. —Acontece que eu estou simplesmente cansada de ver você aí, se balançando feito retardada nessa cadeira enquanto ouve versões em funk de músicas gringas. Minha filha, cê num tem coisa pra escrever, não? — E agora, incrivelmente foi a vez de Brisa sorrir com a indignação de sua interlocutora. A fanfiqueira deu um sorriso mordaz antes de responder:
—Hmm... — Fingiu pensar. —Ter, ter, até tenho. E bastante... — Apesar de não enxergar, LadyBrisa podia perfeitamente perceber que aquilo estava irritando seu anjo da inspiração, afinal, sendo justamente isso, não havia nada mais enervante, frustrante, irritante, e muitos outros "antes" nesse sentido para uma criatura do tipo que um autor ocioso. —Mas, não tô com muita vontade, sabe... — E foi a gota d'água. O céu até então claro ficou escuro e um trovão ribombou ensurdecedoramente, Lady engoliu em seco. Felizmente, os anjos da inspiração não podiam prejudicar aqueles que acompanhavam.
—ISSO É UM ABSURDO! Eu não posso acreditar que, com tanta gente querendo escrever e com um anjo maravilhoso feito eu te dando ideias igualmente maravilhosas, VOCÊ SIMPLESMENTE NÃO ESTÁ COM VONTADE! — Embora estivesse se divertindo com o surto da criatura, Brisa começou a sentir pena ao perceber que ela estava chorando. —Francamente, não se fazem mais autores como antigamente, sabe? Eu sinto falta dos tempos em que a tecnologia não proporcionava tantas distrações e os escritores simplesmente se sentavam lá, com seus lápis e papel em mãos porque não tinham outras opções. — Fungou.
—Se é assim, então, por que você não me abandona e vai procurar um desses autores? Aposto que ainda tem caretas que pensam que nem você e adorariam ter sua companhia. — Brisa retrucou, rudemente e o choro da outra se intensificou.
—Você sabe muito bem que eu não posso! — E naquele momento, Lady se sentiu horrível. Era verdade, o anjo já lhe havia dito que era criado quando alguém começava a escrever porque realmente gostava da escrita, não podendo abandonar seu criador a menos que este desistisse de escrever. Diante disso, dominada por uma mistura de pena, tristeza e culpa, a mortal levantou-se e se aproximou da humanóide.
—Ei, desculpa. Eu fui uma idiota...
—Foi mesmo.
—Tá, tá! O que eu quero dizer é que todas as ideias que você me deu estão guardadas em arquivos em meu computador e...
—Sériooo! — O anjo literalmente pulou em contentamento, pois não havia maior satisfação para uma criatura com sua função do que quando o autor que acompanhava pegava suas ideias, pois isso mostrava que algum interesse elas haviam gerado e, bem, basicamente era isso o que um anjo da inspiração fazia. —Tipo, todas mesmo? E aí! Por onde vai começar? Quando vai começar! Ai, que legal... — Envolveu seus braços de teia de aranha em torno da humana e a girou.
—Meu Deus. — Esta sussurrou, fazendo uma careta. —Larga, desgraça! E me deixa falar, se não, não vou poder escrever nada. — O anjo a soltou imediatamente. —Olha só, apesar de eu ter guardado todas as ideias em meus arquivos, a verdade é que eu estou com dúvidas sobre qual ou o que escrever. Sabe, eu não sei se coloco o Fulaninho com a Ciclaninha ou com a Beltraninha, entende? Tem muita coisa que eu nem sei como começar e, aliás, tem coisas que eu...
—I, meu anjo! — A criatura a interrompeu, tornando a recuar. —Daí, é com você. Meu trabalho como anjo da inspiração é só te dar ideias, agora, o que você faz ou como você faz com as ideias que te dou é problema só seu. Sou seu anjo da inspiração, não sua organizadora particular de histórias.
—Eita, agora quem se pergunta se você come milho, pra dar tanto coice, sou eu. — Lady fez um muxoxo e foi a vez do anjo sorrir vitoriosamente.
—Mas... — Brisa engoliu em seco mais uma vez, pois aquela única palavra valeu por uma explicação completa ao soar num tom ladino. A criatura tinha alguma ideia supostamente infalível, mas que no fim falharia terrivelmente para o seu lado, naquela cabeça cujo Lady suspeitava ter alguns parafusos a menos. —Eu não posso ajudar você com isso, mas acho que sei onde e com quem você pode conseguir ajuda! — O ser começou a pular novamente, animado e a mortal arregalou os olhos.
—Opa, opa, opa! Nem pensar. Ou por um acaso se esqueceu que a senhorita me deixou quase totalmente na mão da última vez que tentamos isso? — O anjo colocou uma mão reconfortante no ombro de sua criadora.
—Ah, amore. — Começou de um jeito maternal. —Okay que você quase foi morta por um leão da última vez, mas eu te salvei! Não foi? — Brisa riu sarcasticamente.
—Sim, quando eu estava praticamente inconsciente porque o bafo de carniça daquele bicho tava na minha cara! Pourra, nem pra mascar uma hortelã, um funcho, ou algo assim... — O anjo riu.
—Mas foi você quem quis fazer com que eles se assemelhassem tanto quanto possível à realidade, amor, e leões da realidade não se preocupam com higiene bucal.
—Tá, que seja. Mas o que importa, é que eu não vou lá mais nem... — Uma mão de teia de aranha envolveu a mão da garota e, quando ela menos esperava, tudo simplesmente mudou ao seu redor.
Fanficland, apelido dado por Lady e pelo anjo de inspiração àquele local onde se podia vislumbrar perfeitamente tanto os universos ficcionais já feitos quanto os ainda incompletos, era um lugar certamente hostil, confuso e estranho. Uma dimensão no espaço tempo que definitivamente não obedecia a qualquer lei da física ou da lógica, podendo ser moldado e remoldado de acordo com as vontades e histórias do escritor. Cada autor, ao iniciar na escrita e começar a criar contos, histórias e fanfictions, por menores que fossem, dava origem a um destes locais, mesmo que só houvesse escrito um único texto em sua vida. O ambiente estaria lá, à espera de novas adições ou simplesmente a vagar pela imensidão vazia do cósmos.
LadyBrisa segurou firmemente a mão de sua acompanhante em busca de conforto e segurança, achava aquele lugar embora incrível, assustador, mesmo que soubesse que era originado por sua própria mente. Okay, talvez fosse esse um dos fatores que a faziam considerá-lo assustador, Brisa não se aventuraria sozinha por lá nem se lhe pagassem um milhão de dólares. Se lhe oferecessem um chocolate quente ou um ambúrguer talvez, mas, deixemos isso de lado.
As duas transeuntes foram percorrendo o vazio silencioso, volta e meia sorrindo ao depararem-se com universos criados a partir de histórias que a humana escrevera em sua infância tanto para a escola quanto por diversão. Engoliram em seco quando passaram por universos nunca concluídos por conta dos escritos que os originaram terem conteúdo demasiadamente pesado para a escritora continuar, porém permaneceram seguindo viajem por mais que Lady quisesse muito voltar para sua casa e continuar se mexendo em sua cadeira ao som de suas músicas gringas remixadas no ritmo do funk. Porém, como eram apenas os anjos da inspiração que sabiam como entrar e sair daquela dimensão e o seu, claramente, estava determinado a concluir seus objetivos, os quais Brisa suspeitava seriamente que eram apenas o de ferrar com sigo mais uma vez. Ela apenas respirou fundo e confiou, afinal não era como se tivesse muita escolha.
—Pronto, chegamos. — O anjo informou e ambas pararam abruptamente. Cautelosa e incerta, Lady estendeu e recuou a mão várias vezes, ela não sabia o que estava à sua frente e tanto tinha bom censo, quanto não tinha tanta confiança assim no ser ao seu lado para ir simplesmente tateando o desconhecido. Um suspiro de irritação soou do anjo, Brisa apenas deu de ombros e permaneceu imóvel.
—Estamos diante da área onde ficam os universos por fazer. — A escritora arregalou os olhos e escancarou a boca, a humanóide nunca havia lhe contado que algo assim era possível.
—Universos por... Fazer? — Questionou, lentamente, havia entendido porém não tinha ideia de como algo assim podia existir.
—Sim, são aquelas ideias que você tem, ou que eu te dou... — Enfatizou e Lady bufou. —Em fim. Aquelas que você já tem todo um enredo em sua mente, mas ainda não a colocou em prática. Os personagens, os cenários e até mesmo as coisas, neste local, ficam num estado latente, apenas aguardando serem despertos. Eles começam a agir de acordo com o enredo criado quando despertos, e despertam quando outra pessoa além do escritor conhece estes enredos bem a fundo. — Lady engoliu em seco, não tinha o costume de mostrar dessa maneira seus roteiros para mais alguém antes de postá-los. Ademais, atribuiu à Fanficland outra razão para considerá-la assustadora, quiçá até questionável.
—Meu Deus! Então... Cara, isso é terrível. Quer dizer, são praticamente seres vivos em  animação suspensa, isso é...
—Entendo sua indignação, mas não creio que precise tanto. Olha, para começar, eles foram criados por sua mente e estão aqui desde então...
—Opa, peraí! — Brisa se alterou. —Mas, a maioria dos personagens das minhas histórias já existia anteriormente, porque eu só escrevo fanfic! Então... — Começou a andar de um lado para o outro, sentindo-se um monstro por supostamente estar mantendo pessoas e animais em tal estado.
—Ei, calma aí! Antes de surtar, pensa uma coisinha aqui comigo. Quando você pensou, com minha ajuda, em suas fanfictions, você deu a estes personagens, mesmo que já existentes, novas vidas, novos destinos e até mesmo novos jeitos, características e personalidades. Não é? — Lady assentiu lentamente, ao mesmo tempo impaciente para a conclusão daquela explicação e curiosa com quais seriam os argumentos do anjo. —E ainda que você tente manter tudo isso tão fiel ao original quanto possível, algo sempre vai acabar ficando diferente porque a situação, a história exige. E são justamente essas diferenças que geram uma cópia congelada neste lugar, e não transportam o personagem de seu universo original para cá. E esta cópia só ganha vida quando é desperta. Olha, para ficar mais fácil, pense neste lugar como... O lugar onde as almas ficam antes de encarnar em seus corpos e nascer. — Brisa fez uma careta, não conseguia deixar de achar tudo aquilo bizarro.
—Okay, entendi. Tô um pouco zonza e chocada com tanta informação, mas entendi o mais relevante. — Suspirou, recuperando-se daquela sobrecarga de conhecimento e o anjo deu um pequeno sorriso. —Agora, o que eu não tô conseguindo entender, é por que desgraças a gente está aqui. Como isso vai me ajudar? Ou você só quis me ver em enrascadas, como sempre é quando me traz para cá? — O anjo fez uma expressão indignada.
—Escuta aqui, ô sua ingrata. Eu te trago para cá sempre com a melhor das intenções, você que é lerda e acaba fazendo com que tudo termine em merda pro teu lado!
—Eu? Ah, claro! A culpa é sempre minha, até porque você é uma santa que nunca me deixou na mão, nunca deixou de explicar coisas importantes sobre este lugar maluco só pra ver eu me dar mau pela falta delas. — Àquela altura, ambas já estavam de punhos cerrados e haviam esquecido-se completamente da razão principal de estarem ali.
—Em primeiro lugar, saiba que se este lugar é maluco, foi porque sua mente maluca o criou assim! E em segundo lugar, te salvar na última hora, só porque você é uma idiota que não consegue sair das situações mais óbvias, é diferente de te deixar na mão!
—Eu sou uma idiota?
—Sim! Uma idiota, burra que não tem raciocínio lógico! — O anjo respondeu, sem notar o efeito perigoso que suas palavras haviam causado. Ela nem mesmo percebeu que a humana parecia deveras pensativa, até ser tarde demais.
—Então, fui eu quem criou este lugar maluco. — O tom da mortal não era mais alegre, zombeteiro ou normal. Ela claramente planejava algo, e o anjo viu-se temendo-a verdadeiramente pela primeira vez, ao perceber um pequeno sorriso maligno nos lábios de sua acompanhante. —Fui eu quem criou esta merda... — Outra coisa que acontecia pela primeira vez, era uma admissão da criatura a respeito de Lady estar certa em algo sobre si. Ela não havia explicado algo de suma importância...
—La La Lady... N não faça isso! Pelo amor de Deus, criatura, deixe pelo menos eu nos levar de volt...
—Pois então, que tudo isso se exploda e acabe de vez! — Uma atmosfera insuportavelmente densa tomou o lugar, envolvendo tudo em escuridão e estrondos começaram a ser ouvidos. Os sons, muito semelhantes a trovões ininterruptos, estavam distantes, porém se aproximavam ameaçadoramente rápido. —Chega de universos incompletos, de que adianta se eles não estão acabados mesmo? — O tremor de explosões distantes chegou até elas. Estático, o anjo não conseguia pensar em nada que pudesse deter sua amiga...
Ou o personagem maligno que havia tomado o controle dela.
—Lady, amor! E essa não é você, você não quer isso de verdade! — Tentou persuadi-la a parar, sem sucesso.
—Você não sabe quem eu sou de verdade. Ninguém sabe como, quem eu sou de verdade! — Brisa gargalhou histericamente e ergueu os braços em meio à escuridão, intensificando o caos pela dimensão de Fanficland. —Chega de universos por fazer, eu posso criar outros quando bem entender. Ah, e chega de universos completos, afinal eu já os terminei e eles não servem para mais porra nenhuma. Rá! — Gritos de desespero e agonia foram ouvidos quando tudo à frente e ao redor, apesar de não ser possível visualizar, começou a desmoronar e a dissolver-se. O anjo começou a chorar ao ver tamanha destruição, desejando poder ter ao menos um pouco do controle mental que Brisa possuía sobre aquela dimensão para fazer aquilo, se não cessar totalmente, ao menos diminuir a intensidade para dar-lhe tempo para pensar em como resolver a situação. Ironicamente, ela era a única que podia fazer com que Lady entrasse e saísse daquela dimensão, porém seu domínio sobre aquele lugar se resumia a apenas isso.
Entretanto, antes que a autora possuída pudesse proferir os dizeres finais e fatais, uma ideia estalou na mente da criatura. O ser deu um sorrisinho vitorioso, conhecia Lady a tempo suficiente para saber que possessão alguma seria capaz de resistir à sua curiosidade quando ela lançasse sua carta.
—Ei, ô Demolidora reversa***! — De repente, os estrondos diminuíram de intensidade. Lady virou o rosto em sua direção e, apesar de estar tão cega quanto ela no momento, a criatura pôde perceber que aquele apelido ridículo havia despertado um início de curiosidade na atual destruidora de dimensões. —Você é mesmo uma burra, sabe porque? — O rosto da humana se contorceu de um jeito estranho e desconfortável, um sinal de que lady lutava contra a força que a dominava para poder agir em prol de sua curiosidade. —Porque você não vai conseguir acabar comigo. — Desafiou.
—Quer mesmo pagar para ver, sua estúpida insuportável? — Lady questionou com uma voz grossa, olhos verdes não pertencentes a si brilhando havidamente em meio ao escuro. —Por que está me desafiando deste jeito, tolinha? — O brilho esverdeado diminuiu e o anjo comemorou internamente, seu plano estava dando certo.
—O por que não interessa, idiota.  O que importa é que eu continuo achando que você não vai conseguir, aliás eu tenho certeza. Vam...
—Morra. — O anjo nada pôde fazer quando algo denso, escuro e frio o envolveu, apertando-o e o fazendo dissolver-se. Sentiu-se desmanchar por completo, apenas para se reconstituir novamente momentos depois.
—Boo! Tenta outra, porque essa foi fraca! Nem mesmo doeu... — A criatura desdenhou, satisfeita ao ouvir os estrondos cujo indicavam a destruição do lugar diminuírem cada vez mais, até pararem por completo. Aquela estratégia para ganhar tempo estava dando certo, o vilão de fanfiction que possuía a autora sequer imaginava que, enquanto permanecesse tentando eliminar o anjo e todas as suas tentativas fossem frustradas, Lady ficaria cada vez mais curiosa com o por quê disso e, ao menos a humanóide esperava, ela própria expulsaria o intruso de seu corpo para fazer pessoalmente milhões de perguntas.
E outra vez a matéria densa a envolveu, a desmanchou (ainda que agora bem mais dolorosamente) e ela se recompôs novamente. E outra, e outra, e outra, e a cada fracasso em tentar eliminar sua insuportável oponente, o ser maligno parecia perder sua força. E quando julgou que o inimigo estava fraco o suficiente, lançou seu trunfo final.
—Sabe qual é meu segredo, Lady? — Cantarolou a criatura. Àquela altura, o corpo inteiro de Lady contorcia-se e ela fazia algumas caretas que seriam muito cômicas, se a situação não fosse tão trágica e tensa. —Eu vou te contar, vem cá! Vem, vem, vem... — Começou a incitar cada vez mais, até que...
—AAAAAAAHHH!!! SAI DO MEU CORPO, FI DE QUENGA! Esse corpo já tem dona, carai! — E LadyBrisa caiu inerte. Ela respirava, apesar de lentamente, mas seus olhos não estavam mais verdes e ela apenas parecia descansar.
—Como... Tu... Fez isso? Que... Caralhos foi... Tudo... Isso? — E começou a enxurrada de perguntas. Em outros tempos, o humanóide acharia tanta curiosidade algo irritante, mas agora todos aqueles questionamentos a aliviavam.
—Calma. Respira, mulher, vamos voltar que eu te explico tudo. — Disse, ternamente enquanto ajudava a humana a levantar-se e tentava guiá-la de volta para casa. Contudo, com muita dificuldade devido o grande cansaço que sentia, Lady firmou seus pés no chão e se recusou a ir.
—Mas e... Este lugar? Eu preciso concertar a merda que eu fiz... — Sugou o ar.
—Hã... Lady, primeiro, me diga: Quanto é a metade de dois mais dois? — Brisa fez uma careta com aquela pergunta totalmente sem nexo.
—Quatro, dã! Por que da pergunta?
—Não, meu anjo. A metade de dois é um, e se somarmos a este um, que é a metade de dois, mais dois, fica três. — Esclareceu, lenta e cansadamente. —Agora, bora pra casa porque, pelo visto, tu não tá conseguindo nem pensar direito e pode acabar fazendo caca ao tentar arrumar este lugar com a mente deste jeito. Se bem que, tu não é lá muito boa em raciocínio lógico nem quando tá sã... — Sussurrou aquela última observação apenas para si antes de teletransportar a si e à humana novamente para o quarto onde toda aquela confusão havia começado.
—Oxe! — LadyBrisa exclamou dolorosamente quando o anjo a jogou de traseiro no chão. —Pra quê tanta ignorância, Anjo? — O anjo, por sua vez, apenas deu de ombros enquanto se sentava na cadeira do computador alheio e começava a girar desinteressadamente.
—Porque pode não parecer, mas as coisas materiais são pesadas para mim, que sou semi material. E como você, até onde eu saiba, é feita de matéria pura...
—Tu é uma fresca, isso sim! Todo mundo fala que eu sou muito magra, tá bom? — Brisa redarguiu enquanto ia em direção à porta.
—Só porque você é magra, daquele tipo que só não engorda de ruim porque come mais que uma baleia, não quer dizer que você não seja pesada. A propósito, tá indo comer, é? — Debochou, levantando-se e seguindo a mortal pelo caminho que, conforme imaginava, levava à cozinha.
—Tô, ser possuída por algo para destruir uma dimensão que eu mesma criei me deixou com fome.
—Você tá sempre com fome... — Ela parou, todavia, ao notar que Lady havia parado abruptamente. —Ah, não. — Sussurrou quando a humana simplesmente caiu em lágrimas.
—O que foi que eu fiz, caralho! O que... Como eu deixei outros fazer aquilo, eu destruí uma dimensão inteira! — Agora, a garota soluçava alto enquanto jazia em posição fetal. O anjo aproximou-se dela por trás baixando a mão até acertar com força um tapa na nuca alheia. —Ou, cacete!
—Primeiramente, chorar e espernear feito bebê não vai adiantar bosta nenhuma. Então, te endireita, engole esse choro e me escuta, porque eu vou te explicar tudo sobre aquilo. E sem piadinhas sobre eu não te explicar as coisas! — Confusa e ainda fungando levemente, Brisa encostou-se a uma parede e endireitou a postura, ficando à espera das próximas palavras do seu anjo da inspiração/amigo da onça.
—Bom, uma coisa essencial para você entender tudo o que aconteceu, é saber que as coisas, criadas pelas mentes dos autores não podem ser desfeitas. As pessoas, os autores podem até se esquecer, mas aquele universo ou dimensão fica lá, vagando no espaço tempo porque ele simplesmente existe a partir do momento em que o autor o cria. Isso explica o por quê de eu não ter sido aniquilada. Aliás, aquilo doeu! — E outro tapa voou e acertou o braço da humana.
—Mas não fui eu, eu inclusive tava tentando me livrar daquela coisa! — Lady choramingou. —Aliás, que porra foi aquela que tomou meu corpo? Aliás, de novo, como isso foi acontecer!
—Calma, uma coisa de cada vez. Como eu estava dizendo, os universos que criamos não podem ser desfeitos, inclusive os incompletos. Ou seja, por mais que você não dê um final àquela história, contanto que os personagens dela estejam despertos e vivenciando seus enredos, quando você simplesmente para de escrever numa determinada cena e vai demorando muito a continuar, os personagens vão ficando como que estátuas. Eles ficam paralisados, do mesmo jeito que estavam quando aquela cena terminou, e congelam totalmente quando você desiste. — Parou, pois Lady havia erguido a mão pedindo para falar.
—Com congelar, você quer dizer...
—Da mesma maneira que os personagens dos universos por fazer, mas com as diferenças de que eles já estão seguindo seus enredos e seu estado de latência não é tão intenso quanto o dos que estão para serem despertos. Um bom jeito de se exemplificar isso, é compará-los a pessoas que dormem, acordam, têm ciência de onde e como estão, mas essa ciência dura apenas breves segundos antes que eles voltem a dormir. — Lady fez uma careta, nada satisfeita com aquilo, mas ergueu a mão mais uma vez quando outra dúvida lhe surgiu.
—Eles sabem que são personagens? Sei que é algo ridículo, mas...
—Não exatamente. Na verdade, os dos universos por fazer e já feitos não sabem, assim como os daqueles cujas histórias estão em andamento e sendo constantemente continuadas. Eles simplesmente seguem o enredo, sem nem mesmo sonharem que estão apenas vivenciando uma história. — Outra engolida em seco por parte da humana, aquilo sim era algo assustador. —E os dos universos incompletos, mas descontinuados, também não, mas quando eles ficam naquele estado que eu expliquei, podem perceber ainda que geralmente não possam fazer muito a respeito, quando algo anormal acontece ao seu redor. E uma visita nossa àquele lugar é claramente algo anormal, já que, ao menos você, é um autor e não algo originado da mente de um autor. E quando coisas assim acontecem, alguns podem acabar se dando conta de mais coisas do que deveriam, e isso gera as mais diversas reações. — Respirou profundamente, fazer todo aquele discurso cansava. Definitivamente, ela precisava começar a explicar algumas coisas à Lady antes de adentrarem novamente naquele lugar, se bem que ela duvidava que a humana fosse querer pisar lá novamente depois do acontecido. E ela estava certa, Lady inclusive pensava em fazer modificações naquele sistema. Afinal, agora, nada de universos descontinuados ficarem latentes, o tempo naqueles lugares simplesmente pararia quando uma história fosse descontinuada e não passaria a partir da última cena. Não era ela quem podia moldar aquela dimensão? Então, estava na hora de um upgrade nesse quesito.
—Tá, mas o que isso tem a ver? — Brisa perguntou. Ela parecia mais calma, ambas inclusive haviam tornado a andar rumo à cozinha. Felizmente, a humana se encontrava sozinha em casa e assim ficaria por um bom tempo, o que diminuía para quase zero os riscos de alguém flagrar a peculiar visitante ali.
—Bom, uma dessas reações é a raiva. E se for um vilão que a estiver sentindo, por exemplo, ele pode muito bem usar dessa raiva para ganhar força para manipular e até mesmo tomar o corpo e a mente do autor para, por exemplo, destruir a tudo e a todos por vingança, talvez por ter raiva de não ter conseguido concretizar seus planos ou algo assim. Mas saiba que isso só acontece se o autor estiver num estado relativamente semelhante, ou seja. Como você estava com raiva quando estávamos discutindo... — Lady baixou a cabeça, envergonhada. No fim, aquilo não deixava de ser culpa sua.
—Mas, isso não faz sentido, já que as coisas criadas não podem ser destruídas. — Brisa observou, abrindo o armário e tirando de lá um pacote de bolacha (não é biscoito!) recheada e oferecendo uma ao anjo, que simplesmente tirou o pacote inteiro da mão dela a fazendo protestar.
—Bom, sim e não. — O anjo disse com a boca cheia, Lady revirou os olhos enquanto pegava outro pacote de bolachas e corria para o lado oposto do cômodo. —Lembra que quando você tentou me destruir, eu me desmanchei? — Lady assentiu. —Então, eu só demorei um pouco para me recompor. É assim com tudo criado pelos escritores nesse quesito, mas o tempo que as coisas demoram para se reconstruir é equivalente ao seu tamanho, nessa situação. Ou seja, quanto maior a coisa destruída, mais tempo levará para se recuperar e mais tempo dará para que o vilão, no corpo do autor, possa destruir absolutamente tudo o mais que estiver ao seu redor. E quando eu digo tudo, é tudo, inclusive a própria dimensão em si. Então, o que você acha que aconteceria se você simplesmente caísse no vazio? — Silêncio.
—Ah!... — Lady tentou gritar, mas se engasgou com o que tinha na boca. O anjo revirou os olhos com o quão atrapalhada sua criadora podia ser, indo até ela para caso precisasse prestar algum auxílio. —Ent... — Tossiu. —Algum vilão filho da puta tentou me matar por vingança!?
—Ora, ora, ora! Você não é tão lerda quanto eu pensava. — Lady bufou, irritada.
—Pois agora que eu não ponho meus pés naquele lugar louco nem ferrando gost...
—Tá, poupe-me! Até para palavras de baixo calão há limites.
—Em fim! Agora me responde, por que raios você queria me levar lá de novo?
—Puts! Acabou que a gente nem resolveu seu problema...
—NÃO! — O berro solto pela humana ao sentir a aproximação da outra ecoou pela casa e além. O anjo, que até aquele momento havia pensado em repetir a aventura anterior, desistiu, afinal tanto não queria que a garota fizesse ainda mais escândalo quanto não desejava ficar surdo.
—Bom, cê que sabe. Eu queria ajudar...
—Mas como é que isso ia me ajudar, desgraça? — Gritou, ritmicamente, aumentando o tom da voz na última palavra. O anjo hesitou, mas no fim percebeu que não adiantaria esconder a verdade.
—Er... — Afastou-se tanto quanto pôde da outra que, mesmo não entendendo bulhufas, começava a assimilar algumas coisas. —Eu admito que não faço a menor ideia, eu só te levei lá porque esse dia estava muito monótono e eu sei que algo divertido sempre acontece quando a gente vai lá... — Silêncio novamente. LadyBrisa, inexpressiva, começou a aproximar-se a passos lentos, mas decididos, da criatura, que agora estava totalmente encurralada contra a parede. —M mas, em minha defesa, pelo menos você não pode mais dizer que eu não te mostro ou explico nada sobre este lugar! — Defendeu-se, para logo depois sair correndo contornando a parede.
—Infeliz! Idiota! Filha de uma quenga! — E lá foi a humana no encalço da outra, xingando-a de todos os palavrões que conhecia.
—Ei, não se esqueça que foi você quem me deu origem, sua retardada! — Muito provavelmente, os vizinhos já tinham escutado os gritos e, ao menos a vizinha da frente, iria correndo contar o acontecido à sua mãe quando esta voltasse. Mas não era como se a garota estivesse se importando com isso, afinal qualquer coisa bastava dizer que a velha tava maluca. Seria a sua palavra contra a da maior fofoqueira do bairro, além do mais, naquele momento ela só queria uma coisa.
—Ah, pois eu vou te mostrar o que a retardada aqui pode fazer! Eu vou finalmente descobrir do que tu é feita, arrancando parte por parte! E ó que eu nem tô possuída por vilão nenhum!
—Quanto à última parte, nem poderia! Isso só pode acontecer quando o autor está na dimensão...
*depois de muita correria e palavras cujo o teor ainda mais vulgar do que as já apresentadas não nos permitem colocar aqui, as duas idiotas finalmente param de correr*
—Eu te odeio. — Lady choramingou, sentada no chão de seu quarto a fim de recuperar o fôlego.
—Mentira, você me ama que eu sei.
—Claro, meu amor por ti é que nem o das viúvas negras pelos seus machos. Okay, eu sei que isso pegou meio mal, então deixa quieto. Mas, porra, cara! Eu ainda tô me sentindo culpada pelo o que eu fiz, tu tem noção de como é destruir coisas, acabar com vidas! Sem realmente querer, estar impotente quando outra coisa toma seu corpo e faz o que quer?
—Ô, modeuso, como é dramática essa menina! — O anjo arrulhou. —Mas relaxa, tudo vai voltar ao normal antes mesmo do que tu imagina. Lembre-se de que o tempo, naquela dimensão, é diferente do tempo daqui, é por isso que nossos passeios por lá demoram apenas alguns segundos aqui.
—Tá, grande bosta. — Lady suspirou, estava claramente deprimida com tudo o que havia acontecido. —Sabe, eu acho que vou desistir. Quer dizer, eu...
—Ou, ou, ou! Por mais que eu possa simplesmente arranjar outro escritor para inspirar... — Lady fez uma expressão intrigada. —Claro, amor! Você não é insubstituível para mim. Mas eu confesso que, por enquanto, não quero, é muito divertido te irritar e te ver surtar. — Deu de ombros.
—É, percebi o quanto você estava se divertindo quando eu te encurralei contra àquela parede. Só faltou se borrar nas calças! — Brisa debochou, no mesmo tom indiferente usado pela outra.
—E desde quando tu percebe algo? Flor, a única coisa que você consegue perceber é a tua fome, que é interminável, porque de resto, tu é mais desligada do que o freezer daquele cozinheiro mão de vaca à noite****. — Provocou, porém, preocupou-se ao ver Lady mais uma vez pensativa.
—Cara... — A humana chamou, um toque de apreensão em sua voz. —Mas de repente eu fiquei pensando, não é assustador você ser apenas a parte de uma história criada por alguém e nem saber disso?
—Pois é. Ainda bem que você é alguém real...
Fim.


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