Prelúdio escrita por isa


Capítulo 1
Go All The Way




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Elas tinham amigos em comum e até onde sabiam as semelhanças começavam e terminavam aí. Korra, por exemplo, era mais nova e uns quinze centímetros mais baixa que Asami. Preferia cachorros. Gostava de esportes, de filmes de distopias futuristas e de desenhos animados.

Asami, por outro lado, preferia gatos. Gostava de xadrez, de seus inventos e de fórmulas matemáticas. Ela não tinha tempo para filmes de qualquer gênero, não entendia de desenhos animados e para qualquer esporte possível sua resposta era a mesma (antes a morte).

Apesar disso, caso perguntássemos, ambas teriam uma ou duas anedotas educadas - e sinceras - para dizer uma sobre a outra. Asami achava que Korra era uma pessoa pontual e divertida de uma forma inteligente e espontânea que ela jamais conseguiria ser. E Korra achava que Asami era uma cientista promissora (embora entendesse pouco do que ela pesquisava), além de ótima motorista, o que explica o porquê de essa história começar com as duas dentro de um mesmo automóvel, estacionando em um motel de beira de estrada ao crepúsculo.

E se você leu até aqui é claro que você já entendeu que esse é um clichê água com açúcar sobre duas pessoas com variadas dissimetrias que acabam descobrindo coisas em comum, especialmente uma súbita e irresistível atração sexual, certo? Porque é isso mesmo. Mas vamos aos fatos:

Era véspera do casamento de Bolin e Opal – dois dos amigos que elas partilhavam –, e a cerimônia seria realizada em um lugar bucólico e calmo afastado da cidade. Embora Korra e Asami não fossem próximas, elas haviam se visto vezes o suficiente nos últimos meses (já que ambas eram madrinhas dos noivos) para combinar a carona e dividir a gasolina.

O plano tinha corrido bem de inicio e mesmo o gosto musical dissonante tinha gerado uma playlist confusa, divertida e multitemática onde músicas tristes de todas as épocas se misturavam com baladas românticas dos anos 70/80 e o pop rock genérico e chiclete dos anos 2000.

Se tudo tivesse continuado assim – Asami com os olhos concentrados na estrada, dirigindo a 100km/h, batucando os dedos da mão direita no volante em canções animadas ou assoviando quando entrava The Animals enquanto Korra cantarolava baixinho todas as músicas que ela havia selecionado e admirava a paisagem pela janela, mesmo que as vezes se distraísse com o reflexo de Asami no vidro  – elas teriam chegado ao destino entre oito e nove da noite.

Mas logo depois da última parada para abastecimento tinham pegado um nevoeiro sem fim no meio do caminho. Asami achou prudente parar para pernoitar e Korra – que se sentia um pouco intimidada com a outra – não ousou apresentar alternativas: suas ideias giravam em torno de ela mesmo assumindo o volante do carro alheio, o que ela não sentia vontade de externalizar.

Além disso, para Korra, pouca diferença fazia dormir pouco em um motel barato de beira de estrada ou dormir menos ainda em um rancho no meio do nada. A verdade é que ela tinha arrepios só de pensar no local do evento. Palavras como mato, silêncio, vacas e ovnis espreitavam e zanzavam por sua mente toda vez que lembrava para onde estava indo e nenhuma delas tinha uma conotação positiva para a mulher. Korra era uma pessoa da cidade – delírios de escape, fugere urbem, nada disso tocava seu coração citadino, turbulento e incansável como qualquer metrópole do mundo.

De modo que elas pararam e olharam longamente para a fachada do prédio simples de dois andares que se estendia na horizontal. O letreiro em neon incidia e piscava sob o espelho dianteiro do automóvel tingindo todo o interior do carro nos tons de rosa, roxo e azul. Asami e Korra se encararam por um instante.

— Tudo bem mesmo por você? – a que ocupava o banco de motorista perguntou, ainda incerta. O plano era descansar, esperar a névoa dissipar e voltar a dirigir de madrugada. Com sorte elas chegariam junto com o sol na manhã seguinte.

— Claro. – Korra respondeu sem nem titubear e Asami reparou que as luzes exageradas do lado de fora produziam um efeito bonito no rosto e nos olhos de Korra. Isso a fez considerar que ela vinha sendo uma companhia agradável e solícita, um pensamento parecido com o de Korra naquele instante, que achava tão irritante quanto adorável o fato de Asami se mostrar a pessoa mais preocupada do universo.

— Então tá. – Sato tirou a chave da ignição para firmar a decisão. Elas resolveram que tirariam na moeda quem avisaria Opal e quem avisaria Bolin e estava torcendo para ficar com a segunda opção quando alcançaram a recepção, onde uma mulher na casa dos 50 mascava um chiclete de nicotina e assistia sem muita emoção à algum filme no mudo.

Seus lábios se curvaram rapidamente num sorriso sugestivo quando Korra e Asami pediram por um quarto, mas logo voltou a uma expressão apática e desinteressada quando elas optaram por um cômodo de duas camas, quase fazendo Kya – a senhora da recepção – suspirar de frustração. A breve novela mental que tinha roteirizado sobre duas mulheres bonitas fugindo de seus respectivos maridos para um romance que terminaria muito mal se devaneou tão rápido quanto surgiu. Nada de minimamente interessante acontecia naquele lugar esquecido por Deus.

Ela depositou a chave do 315 na mão de Asami após o pagamento e voltou a olhar para a TV. Asami e Korra seguiram em silêncio, cada uma com sua respectiva mochila de mão até a porta indicada. O cheiro forte de cigarro fez o rosto de Korra se contorcer em uma careta e Asami abrir as janelas. Havia um péssimo papel de parede com motivos florais cobrindo todo o lugar, mas o banheiro revestido com pastilhas cor de rosa chá era bonito.

— É isso, né? Dá para encontrar boas surpresas em todo lugar. – Asami murmurou com um olho clinico na ducha da banheira estreita, decidindo se ousaria tomar banho ou se manter como estava.

— Você é uma otimista, Asami. – Korra riu, mas também estava impressionada e pronta para ignorar qualquer pista anti-higiênica que a impedisse de sentir água caindo sob suas costas cansadas.

— Otimista de pirraça. – Sato se justificou, olhando para o celular.

— E funciona? Não é mais fácil apenas ser triste e depressiva como todos os mortais?

— E me tornar o estereótipo de cientista cética? Não, obrigada. Além do mais, o esforço mental é o mesmo, sabe? Para ver beleza nas coisas ou para achá-las terríveis. – divagou.   

Korra a olhou num misto de divertimento e estranheza.

— O que? – Asami perguntou, levantando os olhos do aparelho para encará-la de volta.

— Nada, eu só... – Korra colocou as mãos nos bolsos dos jeans, subitamente desconfortável. Era difícil para ela manter conversas casuais num geral e ainda mais difícil quando envolviam os olhos verdes inquisitivos de Asami. Sato parecia só muito bonita, inteligente e séria e fora de sua liga. – ...Acho que nós deveríamos ver se o seu otimismo te ajuda a escapar da fúria de Opal, por exemplo. – desconversou, procurando uma moeda qualquer.

Asami sorriu e pareceu mais segura do que de fato estava.

— Cara. – pediu e Korra lançou a moeda ao ar, apanhando-a de volta logo em seguida. Se a fé na vida que Asami depositava tinha influído ou não era difícil precisar, mas o fato é que ela havia levado a melhor, então lidaria com a parte mais gentil e dócil do casal, o quase labrador humano, Bolin.

Restava à Korra o trabalho sujo com Opal e ela se arrastou derrotada para o banheiro, pronta para tomar um banho antes de ser xingada pela noiva.

— Viu? – ela disse, tentando ganhar o próprio argumento antes de fechar a porta. – A vida é mesmo uma tragédia.

— Tudo depende do ponto de vista. – Asami riu, sentando-se na cama da esquerda. – Eu sigo muito bem, obrigada! – e como Korra não se deu ao trabalho de respondê-la, se permitiu rir um pouco mais, mas só porque sabia que Opal não ficaria brava de verdade, embora fosse gritar em fingimento.

Asami adiantou a mensagem para Bolin que apenas quis se certificar de que ambas estavam bem e a salvo. Ela o tranquilizou e olhou para o teto, concentrada no barulho abafado do chuveiro. Havia algo sobre dividir um quarto com alguém – ainda que por um período breve de tempo – que conferia quase que de maneira automática um novo nível de intimidade à relação. Elas não eram desconhecidas há muito tempo, mas agora estavam em um limbo curioso entre conhecidas e amigas.

Asami considerou se isso era uma coisa boa ou ruim até o banho de Korra terminar. 

...Já que é assim pelo menos aproveitem e se peguem logo!, ela escutou a voz familiar de Opal saindo do que só poderia ser o celular de Korra e logo em seguida um barulho de coisas caindo e Korra xingando uma fileira impressionante de palavrões.

— Korra, tudo bem? – Asami se aproximou da porta, preocupada.

— Tudo. Não se preocupa. Eu só...

Ela saiu minutos depois, sem nunca completar a frase, com o pouco de dignidade que ainda tinha. Gotas de água do cabelo curto recém-lavado deslizavam pela curva do pescoço parcialmente descoberto e porque isso chamava a atenção de Asami era algo que ela ainda não estava pronta para contar a si mesma, mas começava a desconfiar. Se julgava uma pessoa prática: achava Korra bonita. Mas em seus quase trinta anos, Asami já tinha achado muita gente atraente – homens e mulheres – e isso nem sempre era motivo de comoção, o que significava que a constatação consciente queria dizer algo. Mas o que? Não havia nada muito próximo entre a realidade das duas e Asami julgava que envolvimentos amorosos com amigos de amigos parecia a fórmula certa para tragédias contemporâneas. Ela não tinha muitos e não estava disposta a arriscar os que tinha.

— Falei com Opal. – Korra anunciou, como se não soubesse que a outra provavelmente tinha escutado o áudio estridente que havia recebido como resposta.

— E eu tomei a liberdade de pedir uma pizza. – Asami desviou o assunto, fazendo Korra se sentir grata internamente. – A sua parte é sem cebola, certo?

— É sim. – Korra odiava cebolas e achava adorável que Asami se lembrasse disso, embora não fosse um fato difícil de esquecer já que ela adorava repetir vezes sem fim em todas as reuniões possíveis o quanto achava detestável a quantidade de receitas em que a maldita aparecia. – Obrigada.

— Não por isso.

— Você não acha estranho que a gente se conheça há tempo suficiente para saber coisas especificas do gosto culinário uma da outra e não saber... sei lá, quais são as nossas cores preferidas? – Korra inquiriu, tentando puxar assunto (ela era muito ruim nisso).

— A minha cor favorita é vermelho. – ela anunciou como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, porque era mesmo: estava em suas roupas, na cor do seu batom, na tintura do carro que descansava lá fora. -  E a sua é... Azul? – Asami sorriu quando Korra fez uma cara de quem queria sumir do mundo.

— Isso acaba de ficar mais estranho. – Korra resmungou, mas cedeu. – Sim, é azul. E eu não sei puxar assunto, me desculpe. Parte do motivo para eu estar sempre perto de Bolin é que a idiotice dele dá uma balanceada na minha.

— Parte do motivo para eu estar sempre perto do Mako é que a chatice dele dá uma balanceada na minha também. – Asami retrucou, fazendo-a rir. – Isso e claro, o fato de que somos parceiros de laboratório.

— Faz sentido. – Korra anuiu, antes de sentar-se na cama livre. - Espero que isso não faça de nós pessoas muito ruins.

— Consigo pensar em algumas piores.

Korra sorriu de novo. Ela gostava da dinâmica de conversar a sós com Asami, apesar do desconforto de não ter nenhum assunto certeiro para distrações. Quando elas estavam entre amigos, Asami era sempre muito reservada e educada. Era a primeira a chegar e primeira a ir embora. Descobrir o humor um pouco ácido, o modo como ela reparava em detalhes e as coisas realmente inusitadas (quem se declarava otimista em pleno século XXI?) deixavam Korra num estado de espirito diferente do habitual. Ela se sentia... animada, com vontade de mostrar de algum modo todas as partes de sua personalidade que julgava bonitas e/ou interessantes, embora não tivesse ideia de como fazer isso.

Em sua visão pessoal era patético, mas ela não conseguia evitar.

— Eu também tenho dificuldade de jogar conversa fora. – Asami disse, lendo com precisão o que transparecia no rosto de Korra. – Então se você quiser nós podemos continuar com as perguntas aleatórias até sairmos daqui como melhores amigas de escola.

— Eu duvido muito que você seria minha amiga na escola, mas obrigada. Gosto da ideia. Qual era sua matéria preferida, falando nisso?

— Literatura. – Asami respondeu sem nem piscar.

— O que? – Korra guinchou, incrédula. Tudo em Asami gritava ciências exatas.

— É sério, especialmente porque eu não entendia nada. – o sorriso que ela abriu era genuíno. – E você... Me deixa chutar: educação física?

Korra girou os olhos, mas sorriu.

— Não, eu odiava educação física. – e como Asami ergueu uma sobrancelha, ela se justificou: - a gente tinha que fazer no contraturno e eu odiava ter que voltar para escola fora do horário regular.

— Então...?

— Literatura também para falar a verdade. – Korra encolheu os ombros enquanto Asami ria. – Mas provavelmente porque tinha uma quedinha pela professora e ela me dava todos os exemplares antigos de sua estante pessoal.

— Isso é adorável. – Asami sorriu, tentando imaginar uma Korra adolescente com livros poeirentos fugindo de aulas de educação física. – Acho que nunca tive quedinhas por professores, por gente morta, por outro lado...

— Gente morta?

— Ada Lovelace. Hedy Lamarr. Katharine Burr Blodgett. Wang Zhenyi…

— Grandes gostosas com grandes cérebros?

— Isso. – Asami riu, meneando a cabeça. – Eu acho que elas estragaram todas as possibilidades reais para mim.

— Nenhuma chance de encontrar versões contemporâneas nos eventos que Mako não cansa de falar a respeito?

— Suponho que se eu tivesse um pouco mais disposta sim. – Korra apenas concordou com a cabeça, sem saber como continuar o assunto.

— Porque você acha que não seriamos amigas na escola? – Asami perguntou, percebendo em si mesma a disposição da qual tinha acabado de falar. – Além do fato de que você estava no primário quando eu estava me formando...

— Nós só temos 4 anos de diferença. – Korra pontuou.

— Ah, então você sabe alguma coisa sobre mim no fim das contas.

— Eu... Bom... Bolin uma vez mencionou e... – ao ouvir Asami gargalhar, ela parou de tentar se justificar, sentindo-se ridícula. – Você está... implicando comigo.

— É o que parece. – Asami sorriu com gentileza, mas sem se desculpar.

— Eu era uma encrenqueira. – Korra decidiu apenas responder à pergunta inicial, ignorando o modo como se sentia boba pela provocação.

— Como o pupilo da professora de literatura podia ser uma encrenqueira?

— O que eu posso dizer? Eu sou uma pessoa muito profunda, Asami. – zombou antes de se concentrar – Mas sério... Eu não sei, eu apenas tinha um faro para confusões, apesar de tirar notas boas.

— E eu não seria sua amiga por que...?

— Porque você com certeza era a aluna que sentava na primeira fileira.

— Eu era só a aluna rica, Korra. Como todas as outras alunas do internato, diga-se de passagem. Isso apaga qualquer traço marcante de personalidade, então até onde eu posso ver, adoraria ter uma amiga encrenqueira.

— Bom... Você tem agora. – Korra ofereceu e Asami sentiu uma onda de alegria quase infantil. Ela não sabia de onde vinha, mas estava grata à Korra por isso. E estava prestes a lhe dizer quando o serviço de entrega anunciou a chegada com uma batida na porta.

A pizza não estava exatamente quente e não era a melhor coisa que elas tinham comido na vida, mas era boa o suficiente para matar a fome enquanto assistiam a um musical duvidoso na TV gradeada.

— Agora que nós somos oficialmente amigas, posso fazer uma pergunta desconfortável? – Sato perguntou depois de matar o segundo pedaço.   

— Ham... – Korra cobriu o rosto com o travesseiro.

— Porque você acha que Opal está tão convicta de que nós deveríamos ser mais do que amigas?

— Você escutou o áudio ou também foi alugada com a ideia alguma vez? – a voz abafada de Korra saiu depois de alguns instantes.

— As duas coisas. – Asami confessou sem se sentir envergonhada. Algo no seu tom de voz deve ter dado coragem para Korra voltar a encará-la.

— Eu acho só que Opal assistiu a comédias românticas demais.

— Mas para ser honesta, de acordo com os meus parcos conhecimentos sobre filmes, isso parece mesmo um roteiro meio batido de comédia romântica. – Asami murmurou.

— Você acha? – Korra franziu o cenho, o coração batendo rápido demais.

— Você não? – Asami ignorou o quanto sua respiração parecia irregular. – E por favor, cuidado com a resposta porque ela pode definir um fim de viagem realmente constrangedor daqui há poucas horas... – tentou brincar e funcionou, porque Korra riu.

— Eu adoraria que isso fosse um roteiro meio batido de comédia romântica, Asami.

— Então acho que nós podemos fazer ser, Korra.

Elas se encararam por um segundo e sorriram: sorrisos-convite e olhos de aceite. Tinham uma viagem iminente – uma real, e outra, talvez, maior ainda, metafórica. Asami não entendia nada de roteiros românticos, Korra tampouco. Mas tinham descoberto alegria na partilha de companhia e isso parecia indicativo – e caminho – o suficiente.


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