Vossa Alteza escrita por Myra


Capítulo 2
01: um mundo nada comum - parte I




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Pois bem. Já conhece a protagonista deste livro.

Não sou capaz de saber o porquê e nem como, mas, depois daquela noite, fui incapaz de desvencilhar-me de Margareth. Ela tinha algo de especial. Por isso, decidi ficar um pouco mais para contar sua história.

Antes de começar a lê-la, peço que esteja ciente de algumas coisas.

Margareth foi uma donzela diferente para a época em que vivia. E é por isso que conto sobre ela, e não sobre outra pessoa.

Ela se apaixonou. E esse foi o principal caos. Mas há outros, com certeza. Muitos outros.

Não há, talvez, maneira certa de transmitir sua história. Foram anos e anos de organização para que as coisas ocorressem da maneira correta. Por isso, tentarei o máximo para transformá-la em algo compreensível. Está certo?

Comecemos pelo começo. Um mundo nada comum.

(E não se preocupe, farei o melhor para não cometer aparições, mas atente-se. Isso pode ocorrer.)

 

Quando Margareth abriu os olhos naquele dia, a primeira cor que enxergou foi o vermelho. O vermelho do sol das manhãs; depois, o de sua pele ressecada pela quentura do ar e, ainda em alguns minutos após acordar, o vermelho do sangue.

Incomodada, ela remexeu-se sobre o amontoado de palha que servia-lhe de colchão, com as bochechas marcadas pela superfície áspera e os fios de cabelo grudados ao rosto suado. Sua cabeça gritava sinuosamente para si mesma. Muitas coisas estavam erradas: os raios de sol penetravam forte em sua pele, os braços peludos ardiam como feridas abertas, e o cheiro ao redor era de morte.

Levantou-se bruscamente, com o cansaço pesando-lhe o corpo feito um manto de pedras. A confusão dentro de si perdurou por poucos segundos, deixando-a zonza e perdida. Mas ela ainda conseguiu bocejar uma vez e respirar fundo antes de notar que não estava em casa. Ao menos, não dentro dela.

Respirou fundo novamente. Foi neste momento que lembrou-se de tudo.

Passara horas da noite anterior, junto de Enrico, a fornecer ajuda àqueles que foram feridos durante uma violenta confusão que desencadeou-se a partir da levada de homens do Rei. Evento este que ocorria de última hora, sem aviso prévio e comumente acompanhado de armas e de estalos do fogo.

 

E por falar em fogo, a fumaça restante já começava a misturar-se entre as nuvens do dia, que caminhavam feito almas tristes pelo céu. O Reino Gálago inteiro, aos olhos de Margareth, parecia estar em luto. As árvores à frente da menina, aquelas que demarcavam o fim de seu vilarejo e o início da enorme floresta do oeste, padeciam com dificuldade o clima fúnebre que pairava pelo ar de Irbena.

Ela retirou-se de sua cama improvisada e, com apenas alguns passos à frente, sua respiração falhou. Da extrema ponta daquele monte que ela costumava chamar de casa, Margareth era capaz de observar todos os estragos do dia anterior.

Um mar morto de cabanas esburacadas e vidros estilhaçados, cinzas espalhadas por terra queimada, plantações destruídas, sobreviventes jogados, em estado de desalento, despedaçados em mil partes. E, a cada uma ou duas esquinas, mais um corpo ensanguentado de algum camponês sem família, a fazer de si mesmo o seu próprio túmulo, já que não havia ninguém que pudesse lembrá-lo em vida. Uma belíssima visão de manhã.

Margareth estremeceu e piscou continuamente para evitar as lágrimas de saírem. Ela imaginou pétalas escondidas nos punhos de cada um. Imaginou histórias de vida que aqueles que morreram contariam aos seus netos, uma vez que os tivessem. Imaginou a imensidão que carregavam em seus corações e em como essas imensidões haviam sido reduzidas a tão pouco ao serem dilaceradas por lâminas corrompidas. Por pessoas que acreditavam possuir o direito de acabar com ciclos, com vidas, tudo de maneira tão simples. Era tão injusto.

Nada restava-lhe além do inconformismo. E ela o carregou consigo, enquanto lutava para desligar-se daquela visão e entrar em casa.

 

De longe, a cabana via-se cheia, com as duas portas escancaradas e uma multidão de pessoas alojadas lá dentro. Era possível ouvir as madeiras rangendo com o movimento dos pés apressados de quem lá estava. Diante da sinfonia, Margareth respirou fundo. As ruas do vilarejo já esvaziavam-se e não demorou muito para que alcançasse o local.

Enquanto caminhava, os olhos da menina traçavam cada indivíduo dali como pequenos ratinhos a procurar comida. Ela avaliava a face de cada um, buscava por algum rosto familiar em meio ao mar de camponeses feridos. E só parou de procurar quando viu Eleanor.

Ambas entreolharam-se no mesmo momento. A mulher suava, estava fraca e frágil, mas continuou a limpar os ferimentos do senhor à sua frente com total convicção até aquele segundo em que viu a menina olhando para si. Nesse segundo, ela parou. Elas sorriram uma para a outra e Marga teve a certeza de que ouviu a mulher sussurrar um "Graças a Deus".

Enrico logo apareceu. Mal precisou ser chamado, pareceu sentir a presença da menina ali. E quando a viu, mal disse coisa alguma, apenas correu até a menina e abraçou-lhe. Ela não rejeitou o abraço, aceitou o beijo em sua testa e deixou o irmão ficar ali por quanto tempo quisesse.

Por cima dos ombros de Enrico, observava pela janela raspas de montanhas que apareciam sobre as árvores da floresta. Atrás daquelas montanhas, escondia-se um mar. O ponto de fuga daquele reino. Não era escassa a quantidade de planos feitos pelos moradores para escapar daquela vila, mas poucos realmente possuíam a coragem de atravessar o labirinto temeroso de animais selvagens, insetos venenosos e guerreiros desconhecidos que escondiam-se pela floresta do oeste.

Não importava o quanto quisessem sair dali. Ao final do dia, eles não tinham escolha alguma. Estavam em uma prisão, afinal.

...

— Tem de avisar para onde vai— repreendeu o irmão, logo que entraram mais afundo na cabana. — Ainda mais em dias como este. Já é adulta e goza de sua liberdade, mas precisamos manter a guarda, está certo? Um simples erro pode acabar com a vida de alguém.

Margareth apenas concordou com a cabeça, sem dizer nada. Quando Enrico dava sermões, era melhor manter-se calado, caso não concordasse com o que dizia.

— Está certo?— insistiu, levantando as sobrancelhas grossas para a irmã.

— Sim — ela respondeu, a contragosto.— Está certo.

O mais velho encarou a menina em silêncio por alguns segundos e, tendo filtrado o gosto amargo do momento, murmurou:

— Bom. Imagino que esteja com sede. — Ele moveu-se em alguns passos e alcançou o galão d'água que aguardava sobre a mesa. — Tome. Está calor.

Margareth sacou o objeto com ambas as mãos e atacou-o sem pudor algum, assim como uma careta atacou sua face no mesmo momento em que engoliu o líquido. A água estava quente, para variar. Mas foi o suficiente para conter os arranhões ressecados de sua garganta.

— Fique por aí. — mandou o irmão, pegando o galão de volta. — Sairei por algumas horas.

A menina não fez perguntas, apenas assentiu e respirou fundo. Enrico era um homem de poucas explicações. Ela respeitava isso.

 

Com o tempo passado, Marga passou a observar Eleanor fazer seu trabalho do lugar onde descansava. A mulher carregava bolsas com panos, distribuía comida e ajudava pacientes a locomover-se para fora da casa. Em alguns momentos, notava o olhar da jovem sobre si e jogava-lhe um sorriso materno, o que, por algum motivo, acelerava o coração de Margareth e dava-lhe a imensa vontade de chorar.

Talvez fosse por causa da solidão. Por mais que apreciasse sua companhia, Eleanor não era sua mãe.

— Posso ajudá-la — a menina apressou-se em dizer, ao caminhar até a mulher.

— É uma ótima ideia, querida — respondeu com doçura, da forma que sempre falava com Marga. — Pode limpar esta bagunça, enquanto Enrico vai ao centro e eu termino de colocar as pessoas para fora, sim?

Margareth sorriu e assentiu com a cabeça. Para ela, as melhores tarefas concentravam-se em fazer algo que não envolvesse diálogos com desconhecidos. Contentava-se em limpar a casa, transportar alimentos, buscar água no rio e tudo o que não fazia seu estômago revirar por completo. Pegou o esfregão e começou seus afazeres com gosto.

 

E a tarde correu feito nuvens a rodar pelo céu em dias de tempestade.

 

Com Enrico fora, Margareth e Eleanor terminaram tudo efetivamente às três da tarde, quando todos os necessitados haviam sido atendidos e casa, vazia, mostrava-se imensamente mais espaçosa do que quando cheia de pessoas. Era uma visão assombrosa.

Ao lado da janela recém-aberta, Marga respirava fundo e deixava a brisa triste perfurar sua pele e adentrar a casa. Apesar da aparência forte do sol, uma camada cinzenta de tristeza perecia sobre o gramado, as árvores e as flores, e aquilo assemelhou-se estrondosamente com seus sentimentos naquele dia.

— Parece cansada— murmurou Eleanor, de repente. Ela pousava a mão gentil sobre o ombro da jovem.

Marga gostava de como suas bochechas enchiam-se quando sorria e de como sua pele brilhava sob qualquer luz. Seus cabelos encaracolados e seu tom escuro de pele pareciam dançar em perfeita harmonia.

Ela gostava de Eleanor, porque a mulher não lhe fazia muitas perguntas. De alguma forma, sua falta de intromissão a acolhia. Era como se, à base de um olhar, tudo compreendesse. E achava que essa era a melhor das atribuições que alguém poderia ter.

— Acha que Enrico voltará logo?— indagou a mais nova, ainda com o olhar a caminhar pelas silhuetas longínquas da paisagem de sua janela. Lá longe, bem depois das cinzas do vilarejo, bem depois do deserto de Irbena, bem depois da floresta do norte, bem depois de tudo aquilo.

— Como todos os dias, sim — destacou, com a voz suave.— Mas não ficará aí, nesta janela, até ele voltar. Ou vai?

— Eu poderia— afirmou Margareth. E ela não mentia. A visão dali não era ruim, caso focasse no ponto certo do mapa.

— Marga, querida — chamou Eleanor, com um claro desconcerto ao ter que emitir tais palavras.

A garota levantou o olhar perdido para a mulher, sem qualquer expressão no rosto.

— Eu estou velejando de novo, não estou? — O tom de vergonha encrustado na voz da jovem entregava seu cansaço quanto àquele assunto. A mais velha fez que sim e Marga balançou a cabeça, frustrada.— Eu sinto que tem algo acontecendo. O tempo todo.

Eleanor abriu a boca algumas vezes, a fim de falar algo que parecia não estar pronto para sair de si. Por fim, ela desistiu do que quer que fosse dizer e voltou ao principal dos assuntos:

— Talvez, precise sonhar um pouco. — Ela sorriu e apontou com a cabeça para a escada que dava ao segundo andar da casa, espaço onde encontravam-se suas camas. Esperou em silêncio por uma resposta.

A garota encarou a escada por segundos fugazes. Não queria aceitar o convite, queria continuar a ajudá-la e terminar de limpar a cabana antes que Enrico retornasse. Ou apenas queria esperar Enrico retornar. Mas seu corpo pesava tanto que era quase impossível esquecer-se do fato de que havia dormido por apenas duas horas.

Ela, então, colocou sua mão sobre seu próprio ombro e sobre a de Eleanor, num gesto de agradecimento, e retirou-se dali. A mulher observou a jovem afastar-se em passos arrastados e desaparecer ao contornar a enorme viga de madeira que antecipava o caminho para a escada.

— Durma bem, minha querida — sussurrou ao vento, esperando que o ar fosse o único a ouvi-la naquele momento.

Mas não havia sido. Margareth escutara as doces palavras com o maior amor que podia guardar em seu coração.

Ela subiu as escadas e ajeitou-se sobre a cama e, em meio ao escuro, fechou os olhos e deixou sua mente fazer o resto do trabalho. O mundo estava pesado demais para ser observado, naqueles dias.

...

Quando Margareth acordou, o cheiro terrível que assolava o ambiente era tudo o que conseguia distinguir entre um possível sonho e a realidade.

O ar de seu quarto estava numa quentura tão fora do normal que precisou sair de seu sono para enxergar o que causava tal desconforto. Ao abrir os olhos, tudo o que viu foi a figura desesperada de Enrico pairando à sua frente. Com uma feição preocupada, ele chacoalhava seu ombro e chamava por seu nome sem pausas.

— Marga! — sussurrou em desespero, ao observar que a mesma acordava. — Levante. Rápido!

Zonza e suada, ela interpretava as falas pela metade.

— Marga, está me ouvindo? — insistia o irmão, esforçando-se para não aumentar o volume de sua voz.

Mesmo que atacada por náuseas dentro de si, ela forçou-se a compreender o que Enrico falava e, numa tentativa de olhar à sua volta, notou que o ambiente parecia vazio e silencioso. Não havia ninguém além dos dois na cabana.

Então, ao compreender o que aquilo significava, um inesperado desespero tomou conta de seu coração.

— Sim — ela afirmou, de repente. — Sim, eu estou te ouvindo.

 

Depois disso, arrependeu-se amargamente de ter acordado, naquele dia.


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Notas finais do capítulo

Essa foi a parte I do primeiro capítulo de Vossa Alteza! Espero que tenha gostado. ♥



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