Sob o Olhar dos Pássaros escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 1
Capítulo Único




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Lindos pássaros vermelhos sobrevoavam os céus, mas Roy não dava a mínima. Com o machado em mãos, o lenhador respirava fundo enquanto se preparava para adentrar o bosque. Ele conhecia bem todas as histórias: o lugar era assombrado e guardava segredos terríveis. Uns diziam que era o lar de bruxas que devoravam criancinhas, enquanto outros falavam que espíritos malignos tomavam conta do local. No fim, nada daquilo importava. Passando os dedos na aliança, o homem sabia que não poderia abandonar Jane. Se ela havia se perdido na floresta, que ele se perdesse junto dela.

Então, prendendo a respiração, adentrou o lugar. A grama, antes verde, foi suplantada por um solo escuro e por vezes lamacento. As árvores eram altas e de grande espessura, tendo provavelmente séculos de existência, subindo até onde os olhos não podiam ver.

O dia, antes tão claro, agora parecia escuro e, a cada passo, o lenhador sentia uma gelidez crescente se espalhar pelo corpo. Sacou o machado e, segurando o instrumento com as duas mãos, estava pronto para se defender de qualquer ameaça.

O som dos arbustos se mexendo chegou a seus ouvidos. Virando-se para o lado esquerdo, Roy ergueu a lâmina em prontidão. Porém, o que viu o deixou estático. Dois pares de olhos amarelos o examinavam por trás das folhas acinzentadas dos arbustos. Como sombras projetadas em uma parede branca, as duas criaturas moveram-se lentamente e exibiram seus corpos arredondados, mas marcados por espinhos que tinham quase um metro de comprimento. Os olhos brilhavam como corpos celestes e Roy engoliu em seco. Com o suor escorrendo pelo cabo do machado, o homem tentou dar um passo a frente, mas a menção do movimento espantou aqueles seres desconhecidos.

Roy suspirou, apoiando o machado no solo sujo por um instante. Então, tomando mais um pouco de ar, tornou a explorar o local, procurando por qualquer pista que indicasse o caminho até Jane.

Dessa vez, ignorou os sons que ouviu. Não havia apenas o remexer de arbustos, mas também o bater de asas e passos pesados. Os pássaros, porém, não eram vermelhos como os da entrada. No bosque, eles eram absolutamente negros, com olhos escuros como corvos, mas com bicos imóveis, pássaros mudos, meros observadores. Quanto aos passos, Roy preferiu não descobrir a quem pertenciam.

Foi então que, nessa caminhada de pura concentração, o homem encontrou um objeto lançado ao chão. Com os olhos arregalados, apanhou e, por um breve instante, abriu um sorriso. Tratava-se do diário de Jane! Viajando através das páginas, Roy deparou-se com as várias memórias felizes que tivera com a esposa e, durante aquele curto momento, sentiu que o bosque poderia ser um lugar cheio de luz. Contudo, quando os olhos passaram pelas páginas em branco, lembrou-se da ausência dela. O sorriso se desfez e, guardando o diário na bolsa, Roy seguiu com a caminhada.

Aos poucos, a pura natureza do bosque foi dando lugar a construções humanas. Entre árvores e a ação natural, casas, templos e estátuas demarcavam uma antiga cidade. Antes pertencente aos homens, ela agora era apenas uma memória.

Em meio a tais construções, porém, Roy encontrou árvores que se distinguiam daquelas do restante do bosque. Não pareciam tão velhas, altas e espessas. No entanto, o incomum não residia nesse conjunto de características, mas no que só podia ser visto caso se aproximasse de tais formas de vida.

— Por Deus!

Largando o machado, Roy caiu para trás, dividido entre fechar os olhos ou tentar entender o que havia diante dele. Como que fundida a árvore, ali estava Jane. O corpo feminino misturava-se ao caule e, apesar das distorções ali presentes, aquele parecia ser um ser único. Nem humano, nem árvore, mas algo novo.

— Roy — Jane disse. — O que veio fazer aqui?

— Jane? — Ainda no chão, Roy estreitava os olhos, como se tentasse buscar indícios de que aquilo não passava de um delírio. — O que… O que aconteceu com você?

— Como assim, Roy?

— Você… — Trêmulo, Roy levantou-se. Chegando mais perto, reconheceu as feições de Jane, tocando-as com os dedos. — Eu não acredito! Espere, irei tirá-la daí!

— Pare! — A mulher-árvore gritou, fazendo o marido congelar imediatamente. — Olhe ao redor.

Aquela era uma tarefa difícil. Como desviar o olhar de Jane quando ele buscava por ela há tanto tempo? Porém, esforçando-se ao máximo, o homem virou o rosto para examinar o que mais havia ali. Então, observando as outras árvores que se espalhavam, percebeu que todas elas eram como Jane: árvores-gente.

— O que diabos é tudo isso?!

— Somos o que somos, Roy — Jane explicou. — E não há para onde fugir. Um dia, tudo que existe será tomado pelo bosque. Mas até lá, o Sol seguirá nascendo e Lua fará a dança dos ciclos.

— Mas e nós?

— Somos o que somos e seremos o que seremos.

Engolindo em seco, Roy deu um passo para trás. Um peso enorme parecia esmagar os ombros e, por um instante, ele sentiu o ar faltar-lhe os pulmões. Olhou para a lâmina do machado e sentiu o coração martelando nos ouvidos, como se contasse sobre o belo futuro que poderia ter com a esposa. Tão lindo quanto os pássaros vermelhos que ele ignorara na entrada do bosque.

Então, segurou a arma com ambas as mãos e levantou na altura na altura da cabeça.

— O que pensa que está fazendo, Roy?

— Libertando você.

— Não! — Jane gritou, mas era tarde.

O machado cortou o ar com velocidade, atingindo o caule da árvore com uma força que o próprio Roy duvidava ter. Ele ouviu um berro dolorido da esposa e pedidos para que parasse, mas continuou. A lâmina estava bem afiada e, a cada golpe, a madeira enfraquecia.

— É só questão de tempo para eu soltá-la dessa maldição! Confie em mim!

A cada machadada, uma passada pesada ecoava até os ouvidos de Roy. Ele, contudo, não parou. Continuava naquele movimento repetitivo, as mãos calejadas começando a sangrar com esforço e a árvore que mantinha a esposa cada vez mais frágil.

— Eu disse para você parar, Roy!

— Falta só mais um pouco!

Quando levantou o machado para dar o último golpe, no entanto, Roy sentiu algo prender a sua perna. Olhando para baixo, viu que tratava-se de uma densa teia esbranquiçada. Virando a cabeça para o lado, descobriu que a dona das passadas pesadas era uma aranha de proporções descomunais. Com oito olhos vermelhos, ela se aproximava como uma sombra que persegue seu dono.
Ao mesmo tempo, os arbustos começaram a se mexer e, de dentro deles, os seres espinhentos surgiram e começaram a correr na direção do lenhador. Da mesma forma, os pássaros-mudos abriram os bicos pela primeira vez, mas com o objetivo de atacar Roy.

Girando o machado de maneira inútil, o homem viu-se perfurado, picado e mordido. A dor, porém, não durou muito tempo. Quando percebeu, já nem mais estava vivo, tendo o corpo engolido pela terra que assombrava o lugar.
Em prantos, Jane ainda estava atrelada a sua árvore. Ferida, mas viva. Suas lágrimas desciam como chuva sobre o lugar onde seu marido estivera instantes antes. Lá, contudo, ainda havia algo. Sobrevivendo a fome insaciável do solo, o diário de Jane permanecia intocado. Com uma brisa suave passando as páginas em branco, a última folha revelava uma mensagem.

Quando eu me for, quero que chores. Não o choro do sofrimento puro e simples, mas o sofrimento do amor. Aquela saudade que nada mais é que o amor que persiste, que nunca morre. Sei que não será fácil, pois acredite: também não é fácil para mim. Convivendo com a peste e a ideia de que poderei morrer a qualquer momento, eu também busco milagres. Mas no fim, o bosque sempre vence. Ele tomará a tudo e a todos, mas eu não quero que isso seja o motivo da sua danação, amado Roy. Viva sua vida, cuide de quem você ama e dê ao mundo o melhor de ti. Quando chegar a hora, viveremos no bosque juntos!

Com amor, Jane.

Sentindo um vazio invadir a alma, Jane pensou em ela mesma sair da árvore e cortá-la com o machado. O destino de Roy fora o pior que ela podia imaginar. Porém, havia algo mais que chamou sua atenção.

No solo que engolira o corpo do marido, uma pequena planta começava a brotar. Inocente e pura, era como uma criança que chegava a um mundo novo. Sob o olhar dos pássaros vermelhos, Jane sorriu.


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