Memórias de uma General escrita por Tyr


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Olá, esse é outro one-shot que aos poucos pretendo ir escrevendo sobre o universo de "O Ocaso Imperial".



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A marcha lenta do trotar de um cavalo já muito cansado de longa viagem poderia ser algo que principiasse o leve cochilo do seu cavaleiro.

Mas nem todas as situações emocionais e externas permitem tal comportamento de dito cavaleiro.

Vestido de armadura reluzente sob o pouco de sol que atravessava o céu nublado da manhã cinzenta, seria pouco provável distinguir o seu rosto, ou até mesmo dizer à qual sexo pertenceria aquela pessoa montada, mas o que se destacava de longe, sem dúvidas, era o brilho das placas de metal que cobriam quase todo o seu corpo, misturado de partes de lã preta, que era indispensável nos primeiros dias do inverno, onde os raios solares pouco aquecem em meio aos finos flocos de neve que costumam sutilmente cobrir o campo, finalizando a composição da figura, sua longa capa esvoaçante. Todo esse conjunto, dava o indicar de que esse ser, que cavalgava agora num passo quase similar ao de se arrastar, provinha de um cargo muito nobre, ocuparia ele umas das mais altas posições que o velho reino poderia ter para se ocupar.

Esse ser, provava ser do sexo feminino, ao se fazer notar pela sua voz energética que cortava o ar de tempos em tempos, quebrando grande inércia do lugar desolado e enlameado. Voz essa que se propagava pelo ar tal qual um trovão, dimensionando a força descomunal daquela que ocupava essa tal posição, reverberando em direção aos seus trinta ou quarenta soldados que lentamente trotavam atrás dela, também montados e vestidos de armadura distinguível pelo seu nível de detalhes e riqueza de ornamentação.

A viagem que empregavam havia durado dias, alguns do regimento poderiam até ter perdido a conta, mas diriam que seria em torno de cinco ou seis dias que estavam viajando. O mais nobre batalhão do reino se dirigia para repelir mais uma das rebeliões que estouravam no recém começado reinado da jovem princesa Amália I, que havia subido ao trono subitamente, pela morte prematura de seu pai, um rei que se distinguia pela sua energia, força, e punho firme pelo qual regia a política do reino, alguns diriam até que punho firme seria uma maneira muito leve de falar sobre o governo dele.

Fato que deixava mais que evidente no momento, que a união de todos sob a coroa não se fazia puramente pelo amor patriótico, e sim, pelo poder esmagador da coroa sobre as possíveis rebeliões. Após a morte de seu pai, Amália, apenas com dezessete anos, não teve forças o suficiente para conter todas as brigas políticas que explodiram em torno do centro de poder, vendo seu reino mergulhar em caos e rebeliões. O exército, desmoralizado, estava sendo despachado para os cantos mais longínquos do território para apaziguar os ânimos, o que até o momento, ninguém sabia se conseguiriam.

O batalhão liderado pela jovem general estava a caminho de debelar mais uma rebelião, uma cidade importante do interior do país havia declarado que não mais tinham que obedecer a coroa, regida uma rainha fraca e sem experiência, estariam melhor por eles mesmos, disseram, em seguida, proclamando, no auge de sua audácia, uma república!

O pouco que ainda sobrava do exército fiel à rainha foi posto em marcha imediatamente. Não podiam se dar ao luxo de dispensar os soldados que guardavam a capital para abafar essa rebelião. Em torno de trinta à quarenta homens e uma general que se destacava por feitos que pareciam impossíveis seria o suficiente.

Enlameados quase que em todo o corpo, e dando sinais de extrema exaustão, era assim que marchava o batalhão da general que não muito em melhor condições se encontrava. Mas o que era inegável era que seu estado mental e sua lealdade à rainha estavam intactos. Seus gritos de ânimo e ordem provariam isso. E as repostas dos soldados provariam o contrário que um observador comum diria de longe, enlameados com certeza, exaustos, talvez, mas desmoralizados nunca!

E assim marchava o batalhão em direção à guerra próxima, pelo caminho de lama cercado de árvores estrondosas que se espalhavam por todo o canto, com seu porte inegavelmente gigantesco, encobriam o grande pasto que se estendia atrás dessa grande massa de floresta que surgia em seus arredores.

O trote parecia ficar cada vez mais carregado de apreensão misturado com uma leve pontada de fúria crescente, estavam próximos, todos estavam certos disso, se não sabiam onde estavam geograficamente, conseguiam sentir que a batalha não estava longe. A general que era conhecida por não descansar nunca, continuava com seus gritos de ânimo e de motivação, que cada vez mais perto da batalha parecia encher todos de uma ira indescritível e energia crescente, que surgia do interior do ser, tomando conta do corpo e refletindo no olhar do guerreiro que se dirige para a guerra.

Todos sentiam isso no ar, tal qual sentiam o cheiro de terra molhada das recentes chuvas, ou tal qual sentiam o vento gelado cortar os seus rostos, deixando pequenos filetes de sangue escorrendo na pele daqueles que eram mais sensíveis. A líder possuía um poder de emanar todo aquele sentimento destrutivo à todos, e era contagiante o suficiente!

O trote não parecia mais estar lento e massante como se cada cavalo estivesse carregando uma bola de ferro em seus pés, a lama já não era um problema mesmo porque já quase tinha se tornado parte da armadura, todos agora pareciam ter acessado uma energia estranha que provinha dos confins de seus corpos e irradiava até mesmo aos seus cavalos que marchavam tal como eles fariam se estivessem a pé. O apoio da general parecia a de um maestro experiente regendo sua orquestra, habilmente construindo a sinfonia, em meio a uma platéia muda e inexistente, o que com certeza não fazia com que o espetáculo não fosse bonito de se ver.

Os cavalos marchavam, um a um, em formação, em velocidade uniforme e crescente, harmoniosamente como se fossem os violinistas que participavam da orquestra da general, cada um sabendo sua função, e seu devido lugar. Seus cavaleiros pareciam ter abandonado toda aquela lama que pesava não só na sua armadura mas que escurecia também a alma, e agora como guerreiros que eram e sempre foram, aparentavam realmente estar marchando para a guerra, e não voltando arrasado de uma, como antes aparentavam.

Avistava-se de longe a pequena e rica cidade rebelada, se estendia por algumas léguas a frente, suas casas, grandes e imponentes, cuidadosamente pintadas de branco e muito bem arrumadas, davam aos soldados apenas uma pequena impressão do quanto seria importante recuperá-la. Surgia ela ao fundo do descampado que se apresentava agora, à frente dos soldados, campo esse, triste e sujo de lama, sem vida, se não fosse pela grama que teimosamente insistia em se espalhar pelos seus cantos, aparecia após o término do corredor vibrante de árvores gigantescas e sua estrada enlameada. À primeira vista do local da possível batalha, todo o cansaço se esvaia como que se fosse magia, talvez sutilmente executada pela general, todo esse peso invisível desaparecera subitamente.

A general atingindo com o seu bando o fim da estrada arborizada, foi aos poucos estancando, diminuindo o seu ritmo vertiginoso e quase doentio diriam, para poder olhar cuidadosamente cada detalhe que se apresentava nos seus arredores, estudando o lugar e sua topografia, procurando alguma emboscada que estivesse ali, como que uma surpresa desagradável, esperando a presença deles. Mas surgiam da estrada lentamente e se encontravam apenas à algumas centenas de metro da entrada da cidade, e não haviam visto sequer algum sinal de revolta, nem barulho, nem ninguém! Tudo ao seu redor parecia estar inerte numa canção silenciosa regida pelo nada.

Teria sido um alarme falso? Viemos até aqui sem motivo? Pensou a líder ainda estudando calmamente cada detalhe à sua frente, uma pontada de apreensão subitamente surgindo em seu peito.

Continuaram a cavalgar lentamente, dizendo agora, num volume muito mais baixo do que havia até o momento, para que seus soldados mantivessem o máximo de atenção possível, indo em direção à entrada da cidade. Ainda calmamente, não se deixaria tão fácil tomar pela apreensão. Seus olhos recaíam sobre cada detalhe, observando cada lugar em sua volta, com a sua mão direita enluvada, quase que instintivamente sobre o cabo de sua espada, que calmamente repousava em sua bainha, limpa de sangue, pensou ela, e esperava que pudesse voltar à capital assim.

Quando, de súbito, um pássaro cortou o horizonte que parecia ter sido silenciado propositalmente, fazendo seu barulho habitual e deslizando sobre o horizonte, o coração da jovem oficial parecia ter de súbito dobrado o seu ritmo, e sua mão que antes repousava sobre o cabo da espada, agora o segurava quase que pronta para puxar a lâmina a qualquer segundo. O pássaro, saindo de algum lugar da vila, atravessava os ares sobre eles como fosse um aviso pré-ensaiado por alguém que conhecia muito bem dos meios e caminhos da natureza.

Como se fosse não!

Seria um aviso, com certeza, pensou a líder um pouco mais apreensiva.

Depois de alguns instantes de súbita parada por parte todos os soldados, nos quais apenas a respiração abafada pelos cachecóis e pelos capacetes se fazia ouvir, o silêncio, que parecia voltar a reinar novamente, foi quebrado repentinamente pelo barulho de muitas e muitas pessoas que passavam a se mexer e sair de todos os lugares possíveis que havia na frente deles, seja da entrada da vila, seja das florestas, ou de sabe se lá de onde mais essas pessoas muito bem armadas e vestidas de armadura, surgiam e se espalhavam pelo lugar, tal qual uma onda invadindo a areia num dia calmo de verão, jorravam de todos os cantos, cercando-os aos poucos, mantendo uma boa distância entre eles.

O olhar da general que há poucos demonstrava apreensão perante o desconhecido, não foi tomado de medo, ou de derrota, mas de uma espécie de fúria misturada com ódio, gerada dentro do seu peito e que se espalhava por todo o seu ser em todas suas dimensões. Indescritível sensação essa de se sentir impotente perante um cenário no qual seus inimigos detestados haviam levado a melhor. Reconhecia a armadura escura e o emblema que se portava por sobre o ombro dos que estavam a rodear o seu batalhão.

Não eram rebeldes, eram invasores do país vizinho.

E obviamente a vila não tinha pensado duas vezes antes de se jogar para o lado deles, o reino estava um caos, prestes a se desmembrar, e não deve ter sido muito difícil convencer os líderes desse movimento cheio de ideais para que abrissem uma brecha para a infiltração no reino. Até muitos moradores que nem militares eram, se encontravam no meio daqueles soldados estrangeiros odiados por todos, ou pelo menos assim ela pensou que fossem, prontos para a batalha, prontos para matar aqueles que defendem o seu próprio país, pronto para derramar o sangue daqueles que juraram derramar o sangue para a proteção do reino em que nasceram.

Era isso então, pensou ela, traição! Plena traição! De todas as revoltas e absurdos que havia enfrentado até agora, nenhuma poderia se equiparar a isto! Não sabia direito identificar o que sentia, seria uma mistura de tristeza pela traição que a atingia quase que fisicamente, e um ódio que ultrapassava o alcance das palavras. Rapidamente olhava à sua volta, deixando seu olhar de fúria recair sobre os moradores, que prontamente abaixavam a cabeça, talvez com vergonha, e contava quantos teriam que combater. Dez, vinte, quarenta, sessenta, oitenta, cento e vinte, cento e oitenta, o número crescia e com certeza não era muito favorável à vitória deles, podiam ser do batalhão mais nobre do reino, mas nem em seus melhores sonhos poderiam vencer uma batalha como essa.

Se virou na sela e olhou de relance para seus soldados, que prontamente responderam com o mesmo olhar à ela, tinha certeza de que o mesmo que estava sentindo profundamente em seu ser, era o mesmo que vibrava em seus soldados naquele momento.

Era uma situação desoladora em que se encontravam, de frente à uma derrota avassaladora e iminente. E o que encontrou a deixou inundada de orgulho, de uma forma além do alcance das palavras, em situações como essas é possível de se expressar milhões de ideias apenas com olhares. Seus olhos encontraram os trinta soldados estancados em fúria crescente, pronto para morrerem pelo seu reino e sua rainha, nem uma gota de medo em seus olhares, compreendiam o que havia se passado, e estavam tão dispostos a derramar seu sangue quanto ela.

Um dos líderes estrangeiros, movendo-se lentamente saiu do meio da turba de gente, o que fez a general se virar rapidamente, a mão ainda sem deixar o cabo de sua espada. Montado em seu cavalo, parou um pouco a frente dos outros, com a maior expressão de triunfo e arrogância que alguém antes de uma batalha poderia ter.

"RENDAM-SE!", gritou ele repentinamente, do alto dos seus pulmões, seguido de um sorriso de desdém, certo como estava da vitória esmagadora.

"POUPEM A SI MESMOS O MASSACRE", berrou novamente, finalizando. O que foi seguido de algumas risadas de escárnio da multidão que os cercava.

Aquelas palavras eram atiradas à general tal qual gravetos secos atirados à maior das fogueiras crepitando sobre seus troncos de madeira, prestes a se espalhar por todo o entorno, e explodir envolvendo a todos em sua chama infernal. Chama essa que crepitava lentamente nos olhos da oficial, poderia o líder inimigo até dizer que sua íris seria vermelha como o fogo, ou talvez fosse o reflexo que fazia essa ilusão estranha, não saberia dizer.

Aquele fogo que crescia dentro dela era uma mistura de ódio, rancor, e todos os sentimentos que se encontra em alguém prestes a despedaçar seus inimigos. Preferia ser general a vida inteira que viver sendo prisioneira.

"TRAIDORES", bradou ela de volta, do alto de seu cavalo, sua voz cortando o ar e atingindo como que um trovão repentino à todos que estavam em seus arredores. Seu olhar inegavelmente penetrante e assustador, misturado com o seu semblante impassível, inerte como uma pedra diante da morte iminente atingiu como que uma flecha atirada por ela no sorriso arrogante do general inimigo, que quase inconscientemente mudava seu aspecto para um ar sério, com rosto franzido.

"TRAIDORES", gritou ela novamente, do alto de seus pulmões, no volume mais alto que sua voz estrondosa poderia alcançar. Causando uma impressão notável em todos os presentes. "QUE A RAINHA ESMAGUE VOCÊS E O REINO INVASOR", lançou sobre eles quase que uma maldição, em forma de ameaça.

Todos sabiam que era uma ameaça vazia, que o reino estava em frangalhos, e se quisessem poderiam até marchar em direção à capital agora que teriam altas chances de vitória. Mas aquela general com sua presença assustadora parecia colocar essa certeza por terra. Não haviam mais risos, ou sorrisos de escárnio na multidão que era quase dez vezes maior que a quantidade de soldados do reino.

A jovem, no auge dos seus vinte e nove anos, virou-se novamente para seus soldados, apenas para ser recebida com um aceno de cabeça sombrio, instantaneamente vindo de todos. Eles estavam prontos para morrer pela rainha, tanto quanto ela.

E então, sem nenhum aviso, além do grito que soltou de sua garganta que muito provavelmente cortava o horizonte pela última vez, ela puxou sua espada e avançou em velocidade vertiginosa, o mais rápido que pode, transpondo o espaço entre ela e o general, ganhando terreno numa velocidade absurda. Seguida de todos seus cavaleiros, que bradavam coisas ininteligíveis para ela agora. Transformando o descampado em poucos instantes em verdadeiro inferno manifestado na terra.

E por estar na dianteira, foi a primeira a ser atingida.

No meio da chuva de flechas que caíam sobre eles, uma atravessou seu ombro esquerdo. Não sentiu a dor, a adrenalina anestesiava todo seu corpo. E não importava, carregava a espada com a direita. Outra antigia sua perna e empapava ela e seu cavalo de sangue.

Ainda estava de pé, com uma flecha estancada na perna e outra no ombro.

E então, no meio do caos que parecia estar se desenrolando lentamente, uma flecha atravessou seu peito. Não teria adrenalina que a impedisse de sentir essa dor. E outra, e outra e mais outra. O grito de fúria não continha mais do que dor nesse momento.

A respiração foi tomada de seus pulmões como se tivesse tomado milhares de chutes de botas de ferro ao mesmo tempo na boca de seu estômago, mas ainda estava de pé, quase consciente, com sua armadura mais tingida de vermelho que de lama agora.

Foi quando à poucos metros de distância avistou o líder deles surgindo perto dela, seus olhos arregalados e tomados de medo e pânico, sem ter por onde fugir, tendo nas suas costas uma multidão armada avançando, os metros que os separavam pareciam ficar lentamente cada vez menores.

Sua espada ainda apontada para o céu, quase que inconscientemente voltou-se em direção ao homem que acabara de alcançar, sobre um cavalo negro, com vestes de guerra, mas nem de perto da mesma consistência da armadura que ela usava. Acertando-o não se sabe onde nem como, talvez ela até mesmo arremessou sua espada, ela não teria consciência o suficiente que restasse para dizer, mas viu que ele e seu sorriso arrogante tombaram do cavalo negro.

A partir desse momento de pequeno e breve triunfo, e de talvez, até de espanto do exército inimigo, ela se deixou tombar, com um sorriso satisfeito no rosto ensanguentado, seu corpo de súbito se chocando contra a terra batida e molhada, o choque tirava o pouco de ar que ainda restava em seus pulmões, mergulhando sua armadura e seu ser na lama eterna. Morreria pela rainha, satisfeita, sua ação não poderia ser muito mais do que derrubar aquele homem.

x

Pelas ruas do reino, quando chegaram as notícias, diziam que aquela general e sua bravura virariam uma lenda, sendo seu nome cantado pelas bocas das infinitas gerações, preservada para sempre na memória daquela nação.

Não era isso que queria, mas ela morreu pela sua Rainha.


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