Dois corpos não ocupam o mesmo espaço escrita por Meizo


Capítulo 1
Mas para tudo se dá um jeito




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A pacata cidade de Ohara, localizada no coração do país, era conhecida pela tranquilidade esbanjada nas ruas cobertas de verde, por possuir a maior universidade do Leste e também pela velha e grande árvore que havia no parque central — o símbolo da cidade. Os moradores, em sua maioria, eram renomados estudiosos ou gente que viera atrás de uma vida pacífica com ar límpido. A junção desses componentes formava a inspiradora cidade ecológica que Ohara era.

Toda manhã era possível ouvir o canto dos pássaros ou avistar pequenos animais aventurando-se a espiar os humanos nos arredores da cidade ou nos parques. A água era cristalina, o ar fresco, além dos transportes serem movidos a água ou energia solar. Todos que ali habitavam pareciam alcançar algo próximo da paz espiritual de tanto que o elo com o meio-ambiente era alimentado. Ou pelo menos, as pessoas ficavam mais harmoniosas umas com as outras em Ohara, diferente do restante do mundo em ritmo de atrito constante graças ao capitalismo compulsório — embora o custo de vida em Ohara não fosse baixo.

Isto é, toda a cidade menos duas pessoas: Vinsmoke Sanji e Roronoa Zoro.

 Sanji era o típico habitante de metrópole que vive em meio a barulho e poluição, sempre perto demais de ser acometido por um derrame de puro estresse. Cansado dessa vida que o levava ao limite da saúde mental e física, ele largou o antigo emprego e decidiu se mudar para Ohara. Lá arranjou um novo emprego de modo bem fácil graças ao ótimo currículo, um emprego que não o exauria como o anterior, e estabeleceu-se em uma casinha simples no entorno de um museu.

Sua vida, então, foi de 0 a 100 em questão de qualidade. Todos os dias acordava disposto, o trabalho ia bem e a comida parecia até mais saborosa. Estava tudo tão perfeito que se ficasse melhor, estragava. Porém, arrependeu-se de ter pensado isso quando um infeliz acontecimento quebrou sua rotina. Sanji não possuía automóvel, preferia ir para o trabalho de bonde, que era o transporte de melhor custo-benefício em Ohara. O bonde era extremamente pontual, assim como as pessoas que o utilizavam. Via praticamente os mesmos rostos no dia-a-dia, pois a cidade, como dito anteriormente, era pacata e previsível.

Quando chegava o horário de sair, Sanji ia para a parada do bonde que ficava perto de sua casa, subia naquele transporte elétrico de ar pitoresco, cumprimentava o motorista — que as vezes era o animado Luffy ou a bela Nami — e sentava-se em seu banco. Bom, o banco não levava seu nome realmente, mas habituara-se a sentar nele depois de perceber que tinha a localização perfeita.

Dentro do bonde havia duas fileiras de bancos, do lado direito ficava a fileira de bancos de assento duplo e do lado esquerdo ficava os bancos de assento único. O seu banco, por assim dizer, era o último da fileira de bancos de assento único. E por ser único não precisava se preocupar sobre ter alguém desagradável sentando-se ao seu lado, além de poder se levantar com tranquilidade quando quisesse sair. O banco também era ligeiramente mais macio que o restante e, por estar ao fundo e do lado esquerdo, Sanji podia ver melhor a paisagem que se estendia pela janela, o que incluía as belas moças que saíam para correr naquele horário. Ademais, a janela desse banco era mais prolongada, estendia-se até o banco a sua frente, e não tinha como ser aberto, fazendo com que o vento não bagunçasse seu cabelo macio e brilhoso.

Foi por todos esses motivos que ao subir no bonde e avistar seu lugar já ocupado, Sanji foi tomado pela surpresa e pela raiva. Isso quebrava sua preciosa rotina que seguira quase que religiosamente desde que se mudou, mas limitou-se a encará-lo com visível irritação antes de sentar noutro banco mais à frente. Se tivesse sido apenas esse dia, Sanji teria superado rápido esse acontecimento, entretanto, o mesmo se repetiu pelo restante da semana e também na seguinte. A sua rotina virou encarar com a maior insatisfação possível o abominável homem de cabelo verde, enquanto o maldizia das maneiras mais criativas em sua mente antes de chegar ao ponto onde descia do bonde.

Na terceira semana, sentindo que faltava pouco para ressuscitar o vício em cigarros, Sanji resolveu ser tão ousado quanto o ladrão de banco. Para lidar com alguém da estirpe do desconhecido, precisava ser tão ardiloso quanto ou até mais. Arquitetou o plano, enquanto tomava um banho relaxante para ir dormir com ervas e muita espuma. Antes de tudo, precisava descobrir em qual ponto ele subia, então acordou bem cedo no dia seguinte e tomou um táxi para o terminal do bonde elétrico. Para não ser reconhecido, Sanji vestiu um boné para ocultar os cabelos, um moletom com capuz repuxado para a frente e um óculos escuro de lente espelhada. Sentou-se no banco duplo que ficava lado a lado com seu banco preferido e esperou, pacientemente, que o brutamontes desse as caras.

Quando faltava exatamente três pontos para chegar ao que normalmente subia, Sanji viu o homem odiável subir no bonde. Ele possuía o cabelo verde curto e arrepiado, parecia do tipo que lavava o cabelo com sabonete (ou quem sabe, com sabão!), e vestia roupa muito, muito amassada. Ele nem devia saber o que era um ferro de passar! Enfim, o homem entrou bocejando e sentou na cadeira de Sanji sem perceber que era vigiado. Em certo momento, o homem de cabelo verde franziu o cenho, olhando para os bancos da frente parecendo procurar algo. Sem entender, Sanji olhou também, mas nada viu além de umas senhoras conversando e de um professor sentado na cadeira próxima a porta da frente.

Sanji deu de ombros. Além de ladrão de bancos, o cara ainda lançava olhares estranhos para senhoras de idade avançada. Tsc, é da pior espécie.

Depois de comprovar de onde ele vinha Sanji poderia ter descido em seu próprio ponto ou ter ido para o trabalho para não ter risco de se atrasar, mas acabou ficando curioso sobre o lugar para onde o outro se dirigia diariamente, resolvendo permanecer no bonde para ver o objetivo final da viagem dele. O ladrão de banco desceu no ponto que ficava perto da estátua da fundadora da cidade, uma praça de nome difícil de pronunciar, mas que era abreviado para Pone. Sabia que naquela área havia algumas lojas de comida e também havia um teatro. Pensou em segui-lo para descobrir aonde exatamente ele ia, mas percebendo que isso se assemelhava muito a um comportamento criminoso, Sanji encerrou a investigação ali mesmo. De todo modo, as informações arrecadadas já eram suficientes.

Feliz e satisfeito, Sanji nem se incomodou de ser repreendido no trabalho por chegar tarde. Claro, ele se esforçou para fazer tudo com mais excelência que o normal para compensar a falha, mas o homem de cabelo verde ficou o tempo todo em seus pensamentos. Entretanto, seu ápice da felicidade só aconteceu no dia seguinte quando tomou um táxi para um ponto anterior ao do ladrão de banco e sentou pleno e arrumado em seu tão querido banco único do final da fileira do bonde.

Dessa vez não estava disfarçado, já que o objetivo era ser reconhecido. Quando o homem subiu e o avistou, Sanji pavoneou um sorriso pretensioso e piscou os cílios com fingida inocência. Também fez questão de cruzar as pernas e demonstrar que estava o mais confortável possível. O homem uniu as sobrancelhas inicialmente em confusão, mas depois foi possível perceber a irritação presente em seu rosto. O sorriso pretensioso de Sanji aumentou ao vê-lo resmungar algo ininteligível enquanto ia se sentar a contragosto em um dos bancos duplos.

Porém, sua felicidade durou pouco. No terceiro dia consecutivo usando a mesma tática, ao subir no bonde e se dirigir para o seu lugar, encontrou um homem de pele branca e cabelo longo, com tons de degradê que iam do branco ao azul, sentado no seu banco. Era alguém que nunca vira naquele horário e naquele trajeto. Sanji mal teve tempo de disfarçar a expressão antes de se sentar em outro lugar. Não queria que as pessoas que via quase todo dia dentro daquele bonde pensassem que ele não era amistoso. Tinha uma imagem a zelar!

Mas aquilo... Ah, já era perseguição demais! Por que não paravam de aparecer concorrentes?! Porém o pior aconteceu depois. O homem de cabelo verde entrou bocejando pela entrada da frente do veículo e passou por Sanji sem sequer olhá-lo. Parou, então, ao lado do homem de cabelo degradê e, depois do ladrão de banco 2 levantar, o ladrão de banco 1 ocupou o banco que era originalmente de Sanji.

Sanji piscou desacreditado. O cara tinha contratado alguém para garantir a vaga? Aquilo era baixo demais até para aquele desconhecido! Sem conseguir se conter, levantou-se de súbito e foi enfrentá-lo diretamente pela primeira vez.

*

Bom, Zoro era apenas a pessoa que estava no lugar errado e na hora errada. Mudara-se para Ohara ao descobrir que era herdeiro único de uma residência de um tio que mal lembrava o rosto. Quando recebeu a notícia por meio de uma carta achou que se tratava de alguma pegadinha, mas Robin, uma amiga que também morava em Ohara, resolveu investigar a veracidade da herança. Resultou que era real e como Zoro morava em um quartinho precário, além de ter sido despedido após esmurrar um cliente dentro da loja que trabalhava, não viu motivos para rejeitar a herança que veio em tão boa hora.

Desde então, fazia dois meses que morava ali. A casa era aconchegante e tinha móveis em bom estado, mas ele ainda se perguntava se tinha tomado a decisão certa. Zoro, dentre muitos traços de personalidade, gostava de sonos prolongados e de ficar em paz no seu canto. Algo difícil de se ter quando os vizinhos apareciam cantarolando toda manhã em sua porta para lhe entregar porções de comidas que cozinharam ou surgiam na janela para pedir ajuda para, por exemplo, tirar um pobre gatinho do telhado. E todos eram tão felizes ao seu redor, tão cantantes e amistosos que isso ressaltava ainda mais a rabugice de Zoro. Até os pássaros pareciam cantar mais ali, a temperatura era perfeita e as plantas tinham tons mais vivos. Sentia como se estivesse naquele irritante filme chamado Trolls, que certa vez Robin lhe obrigou a assistir três vezes.

Ainda assim, Zoro seguiu morando em Ohara. Arranjou um emprego em uma floricultura depois que um vizinho notou que seu jardim era o mais bonito da rua, embora a única coisa que Zoro fazia era jogar água nelas e reclamar da quantidade de mato — todas as plantas para ele eram mato — que tinha ali. Sua rotina passou a ser: ir de bicicleta para o trabalho e dormir ou se exercitar no tempo livre. Continuou achando irritante a felicidade sobrenatural daquela cidade, mas isso durou até encontrar a primeira pessoa que destoava daquele brilho feliz.

Aconteceu quando a roda dianteira da sua bicicleta foi penosamente amassada por um carro de sorvete. O motorista desculpou-se a beira de lágrimas como se tivesse atropelado uma pessoa e não uma simples bicicleta deixada no lugar errado. Comprometeu-se, inclusive, em pagar pelo conserto, não deixando nem Zoro responder se aceitava ou não, e simplesmente raptando a bicicleta com a promessa de devolver o mais breve possível. Restou a Zoro ter que usar o bonde como meio de transporte, mas no primeiro dia que o utilizou, um estranho homem loiro ficou encarando-o com raiva de longe.

A surpresa foi tanta em ver uma emoção tão contrária a felicidade habitual que exalava dos poros dos outros moradores de Ohara, que Zoro passou o resto da viagem encarando a nuca loira até o homem precisar descer do bonde. Mas o que tinha feito o homem ter tal reação? Zoro sequer o conhecia e tinha certeza que lembraria daquele rosto caso o tivesse esmurrado antes. Afinal, sobrancelhas enroladinhas como aquela não se via em todo canto.

Curioso sobre a única outra pessoa que não parecia encaixar na cidade, Zoro esperou pela aparição do loiro no dia seguinte. E por todos os outros dias da semana, divertindo-se internamente a cada olhar irritado que ele lhe dirigia antes de disfarçar a expressão e cumprimentar as velhinhas do bonde com educação. E embora o loiro obviamente não gostasse dele, Zoro o enxergava como alguém como ele próprio, um deslocado naquela cidade animada.

Nas duas semanas que se seguiram, Zoro tentou entender o motivo da raiva do loiro. Seria por ódio à primeira vista? Mas podia ser inveja de seu físico também.  Afinal, com aquele corpo franzino em traje social, Zoro só conseguiu sentir pena do tal homem loiro. Um dia, quando o loiro não usou o bonde, Zoro achou que nunca mais o veria. Porém, o encontrou no dia posterior sentado no banco que andava sentando para observar a nuca com fios claros. E o sorriso petulante que ele ostentou... De repente, com uma percepção bem atípica de si, Zoro entendeu o motivo da raiva dele.

Era o banco!

Se fosse qualquer outra pessoa Zoro teria bufado e ido para outro lugar sem pensar muito no assunto, mas o sorriso do loiro o irritou TANTO — pois estava claro que era puro deboche —que Zoro ficou remoendo a questão. Isso tudo por causa de um maldito banco? Ah, ele quis quebrar aquele ar de vitória que o outro exibia. E fazer isso foi mais simples do que imaginou. Apenas precisou falar com Yamato, um conhecido que trabalhava em uma academia na rua da floricultura, para que fizesse guarda do banco até que ele próprio entrasse no bonde (acordar mais cedo para ir ele mesmo para o terminal do bonde estava fora de cogitação).

Quando o loiro viu Zoro cumprimentar Yamato com um aceno da cabeça e sentar-se no lugar recém liberado pelo colega, o homem loiro se levantou de onde estava e marchou a curta distância dentro do bondinho até ficar em pé na lateral de Zoro. Suas narinas estavam dilatadas, a mandíbula travada e o olhar colérico. Zoro sorriu, erguendo uma sobrancelha. Estavam em posições trocadas agora.

— Isso foi de extremo mau-caratismo. O que você tem contra a minha pessoa, hein?

Era a primeira vez que conversavam, mas não ficou surpreso ao descobrir qual timbre tinha a voz do loiro. De algum modo, encaixava com sua figura esguia e bem vestida. Zoro cruzou os braços, mas manteve a posição relaxada no banco dando a entender que não se moveria dali.

— Não conheço você, não tenho nada contra.

Uma veia saltou na têmpora do outro.

— Então, por que está roubando o meu banco? — o homem abaixou-se para encarar o rosto de Zoro bem de perto, falando pausadamente em seguida. — Este lugar não é seu, cabeça de mato. S-a-i-a!

Zoro, que estava calmo até ali, de repente franziu o cenho ao ser xingado gratuitamente. Ademais, quem ele achava que era para estar dando ordens?

— E quem vai me tirar daqui? Você, sobrancelhinha?

O outro ergueu a mão como se fosse levá-la a sobrancelha visível, mas conteve o movimento antes de concluí-lo. Seu rosto demonstrava uma expressão de ultraje tão exagerada que se tornava cômica. Zoro riu, voltando a atenção para a janela. Não iria mais dar atenção aquele pobre coitado com complexo de lugar marcado.

O homem pigarreou.

— Então, não vai sair?

Zoro nem se dignou a responder. No lugar, deu um bocejo longo sem tirar os olhos sonolentos da janela.

— Pois, muito bem.

Zoro não sabia o que o outro faria, mas suspeitava que tivesse alguma artimanha. Talvez tentasse fazer com que Yamato parasse de guardar o lugar, mas mal ele sabia que Zoro já tinha garantido a lealdade do colega com uma promessa — a contragosto — de que iria se exercitar na academia para atrair mais clientes. Era um lugar que vinha evitando porque achara esquisito ver pessoas se exercitando sorridentes e dando gritos de guerra.

Porém, não foi bem uma artimanha que o outro planejou. Ele simplesmente sentou-se no colo de Zoro e cruzou as pernas longas, apoiando as costas na janela de vidro. A maleta de trabalho que sempre carregava estava no próprio colo. Zoro o encarou sem palavras. Ele simplesmente ia ficar sentado em seu colo assim? Ah, aquilo devia ser algum jogo de resistência, mas Zoro não cairia em sua provocação. Em vez de empurrá-lo ou desistir do banco disputado, apenas permaneceu como estava, inclusive descansando uma das mãos acima da maleta do outro.

Passaram o resto da viagem nessa posição, fingindo um conforto que não sentiam. Os rostos daqueles que frequentavam o bonde diariamente encaravam os dois sem o menor disfarce. O interesse reluzindo em suas faces curiosas, mas à medida que os dias passaram e a cena se repetiu cotidianamente, ninguém prestou mais tanta atenção aos dois que insistiam em compartilhar o último banco de assento único da fileira, embora houvessem outros lugares vagos. Em dado momento, Zoro percebeu que o nome do outro era Sanji, pois era assim que o motorista, um cara de cabelo preto e cicatriz abaixo do olho esquerdo, chamava-o aos gritos e sorrindo pela manhã.

Às vezes discutiam em frente ao banco durante a viagem toda sem de fato sentar, outras era o loiro quem sentava primeiro e Zoro que — constrangido, mas absolutamente irritado — sentava-se em seu colo, mantendo as costas retas, não conseguindo relaxar. Ao final, concluíram sem expressar palavras que era melhor ser Sanji quem ficava no colo, por Zoro ser mais pesado e ficar rígido como uma pedra quando era ele quem estava sentado no colo de alguém. Depois de um tempo, começaram também a repetir a prática no horário de retorno para casa, onde as vezes algum dos dois ou ambos cochilavam no trajeto, cansados demais para discutir e se fazer de forte. Algumas vezes era Zoro que cochilava com a testa encostada no ombro de Sanji e noutras era Sanji que cochilava com as costas apoiadas no peito de Zoro e a cabeça tombada para o lado.

Esse jogo de resistência, afinal era disso do que realmente se tratava, durou por mais três semanas inteiras até que Zoro recebeu a bicicleta de volta e não teve mais motivo para frequentar o bonde, assim encerrando suas viagens. A bicicleta demorou tanto tempo a ser devolvida, pois o vendedor de sorvete mandou que ela fosse consertada fora da cidade. Contratou um sujeito conhecido na internet como Estilista Radical e pediu que desse um trato especial nela. O resultado? Zoro mal reconheceu a bicicleta. Ela agora estava pintada em cores berrantes, tinha uma caveira com chifres na frente do guidão, com luzes no lugar dos olhos que funcionava a pedaladas, e possuía um pé de descanso com formato de osso.

Em suma, a bicicleta ficou horrível até para Zoro, mas isso não o impedia de usá-la. Voltou, então, para as manhãs solitárias onde pedalava rumo ao trabalho, procurando não pensar muito no homem loiro que agora devia estar radiante por poder desfrutar tranquilamente do banco preferido.

*

De uma hora para a outra o seu concorrente deixou de aparecer no bonde. No início, Sanji ficou desconfiado achando ser um novo truque (ainda não esquecera do complô que ele fizera com o homem de cabelo degradê), mas logo percebeu que o outro não apareceria mais. Deveria, portanto, ter ficado feliz com isso. Finalmente tinha se livrado daquele brutamontes de sorriso torto e os seus dias voltariam a ser pacíficos como sempre deveriam ter sido.

Porém, pegava-se pensando no tal homem de cabelos verdes por mais tempo do que seria o ideal. O que exatamente tinha feito para ganhar a disputa? O que faria aquele musculoso ridículo recuar de repente? Essas dúvidas o cercavam dia e noite, pois como o bom ex-habitante de metrópole que era, não conseguia esquecer uma desavença mal encerrada. Ou talvez ele simplesmente estivesse com saudade de discutir e atritar com alguém, embora não deixasse os pensamentos seguirem muito por esse caminho.

Era um homem decente, um gentleman que não possuía tendências de agir como um animal sem capacidade de abstração. Seu passatempo era ler clássicos e gostava de apreciar um bom chá preto. Ninguém, desde que chegou em Ohara, duvidou que sua natureza fosse outra que não a personalidade cordial que demonstrava. Entretanto, contrariando seu objetivo de levar uma vida mais tranquila, Sanji continuou inquieto depois da vitória fácil. O desejo por nicotina retornou ainda que agora estivesse tudo do jeito que desejava.

Após uma análise profunda de seu estado atual, Sanji traduziu que apenas queria resolver essa má resolução com o desconhecido de cabelo verde. Então, quando conseguiu sair mais cedo do trabalho, ele tomou um táxi para a praça onde vira o homem descer antes e passeou pelos arredores procurando aparentar o máximo de casualidade possível. Encontrou-o, surpreendentemente, diante a fachada de uma floricultura pequena, mas de aparência aconchegante. Esse era um dos lugares mais improváveis para encontrar um homem grande e de roupas desleixadas como aquele, mas lá estava ele segurando uma bicicleta que parecia ter sido tirada de algum adolescente extravagante.

Ficou quieto onde estava, observando o outro tirando a bicicleta do estacionamento da loja ao lado da floricultura. Quando achou que sua passagem ali ficaria despercebida, o homem ergueu o olhar da bicicleta e o viu. Ambos ficaram em silêncio por alguns instantes, mas Sanji resolveu tomar a dianteira da conversa.

— Agora entendo porque parou de andar de bonde. Bonita bicicleta. — comentou com um riso brincando nos lábios. — A caveira com chifres na frente é um detalhe bem... interessante.

Mas o riso engasgou quando teve a impressão de ver um rubor pronunciado na pele marrom. Não imaginava que alguém que tinha o descaramento de roubar um lugar pudesse ficar constrangido por uma pequena provocação daquelas. No entanto, logo o rosto do outro ficou sisudo e Sanji preparou-se para a discussão que sucederia.

— Ficou com saudades e veio me procurar? A sua amada cadeira agora é só sua — ele sorriu, cruzando os braços. Mas antes deve o cuidado de abaixar o pé de descanso da bicicleta para que não caísse quando a largasse. — Ou agora que se acostumou a dormir no meu colo, seu corpo não aceita mais aquele banco duro?

Sanji lançou um ligeiro olhar para os braços fortes cruzados antes de subir novamente para o rosto dele. E lá estava o desagradável sorriso torto que tanto odiava! Sanji ergueu o queixo, aproximando-se alguns passos.

— Você fala como se não tivesse se aproveitado do meu ombro para dormir e babar à vontade. Eu vim aqui só para... — argh, seus olhos não queriam obedecer, insistiam em voltar a encarar os braços fortes. A memória também lhe traiu ao se lembrar do calor agradável que aquele corpo compartilhou com o seu nas noites chuvosas da última semana. No banco do bonde, é claro. Essa era a primeira vez que o via fora de lá. Pigarreou. — Para cobrar a limpeza da minha roupa. Você deixou uma nojenta marca de saliva e deve se responsabilizar.

Bom, não era bem para isso que Sanji foi ali, mas o outro não precisava saber dos detalhes.

— E você esteve guardando essa roupa até agora só para me cobrar? Além disso, não lembro de babar. — ergueu uma sobrancelha verde em descrença. — Está querendo que eu volte a andar no bonde. — concluiu em um estalo. O sorriso novamente nos lábios. — Se for mais sincero, talvez eu pense em aceitar. Ou se quiser se ajoelhar e colocar a testa no chão...

Uma expressão mortificada moldou o rosto de Sanji.

— Que merda de conclusão é essa?! Eu estou mais que feliz em estar livre de você, seu cérebro de musgo. E sabe o que mais? Espero nunca mais vê-lo depois que me pagar o que me deve.

— Eu não vou pagar porcaria alguma que... — sua fala foi subitamente cortada quando um ruído monstruoso foi emitido pelo seu estômago. Ele colocou a mão sobre o abdômen, ficando sem jeito outra vez.

Sanji mordeu os lábios para segurar o riso, não achando que encaixasse com seu aspecto de homem correto rir de um pobre diabo com fome. A muito custo ele conseguiu evitar a risada e fez um gesto para a direção sul da rua em que estavam.

— Podemos conversar sobre nosso... desacordo enquanto comemos. Vi um lugar que vende frutos do mar apimentados quando passeava casualmente por aqui. — achou que acabou usando um tom muito estranho em “casualmente”, mas se o outro percebeu, nada comentou.

O outro homem apenas resmungou algo ininteligível e começou a tomar a direção apontada por Sanji, sem confirmar ou negar. Começaram, então, a caminhar lado a lado já que a bicicleta estava sendo empurrada ao invés de ser pedalada. Poucas pessoas transitavam por ali naquele horário, mas sabia que à medida que a noite avançasse o movimento aumentaria em respostas as barracas de comidas noturnas que abriam do depois do horário comercial tradicional.

Caminharam tranquilamente, agraciados com o vento fresco agitando os cabelos, até que uma voz grave cortou o silêncio com duas palavras:

— Roronoa Zoro.

Sanji o olhou de esguelha, mas o homem de cabelos verdes continuava a olhar para o caminho adiante. Ele estava se apresentado? De repente, Sanji se deu conta que até ali eles não tinham se apresentado adequadamente, sequer lembrava que não sabia o nome do dito cujo que tirou sua paz...

Bom, nunca era tarde demais para isso.

— Vinsmoke Sanji. — respondeu depois de um tempo.

E a partir dali eles continuariam discutindo por qualquer motivo, por mais idiota que fosse, chegando ao ponto que seriam conhecidos na cidade como o casal que sempre briga mas que se ama o suficiente para sempre um esperar o outro para voltarem juntos para casa. Quando alguém perguntasse como aquela história se iniciou, um certo grupo de velhinhas experts em yoga, que frequentavam o mesmo bonde que os dois, saberiam como contar uma narrativa ligeiramente romanceada e com vários exageros pontuais.

Afinal, tudo fica melhor quando acontece em Ohara.

 


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