Quem escreve para você? escrita por tardigrade j


Capítulo 1
capítulo único




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Não me recordo com exatidão quando lembrei de você novamente, minha cabeça andava ocupada e, você deve imaginar, precisei deixar de escanteio a manhã que passamos juntos há um número de meses atrás que eu sequer consigo mais mensurar quando. Foi setembro? Foi outubro? Estava nem tão quente, nem tão frio, mas eu ainda lembro da dança frenética de arrancar o casaco e vesti-lo de novo e de novo durante todo caminho de ida.

Como quem tira um vaso que já não combina mais com a decoração para abrir espaço para livros novos em folha, no entanto, precisei garantir a energia para redecorar as cômodas e as mesinhas de centro da minha mente com aventuras e aromas mais inebriantes pouco tempo depois, e como quem esquece echarpes antigos numa gaveta na hora da mudança e não dá por falta até um dia ligeiramente mais frio que o usual eu acabei me recordando da sua epiderme na minha epiderme e quase, por uma ridícula fração de segundo, me senti num território aconchegante novamente.

Um momento confortável que às vezes minha mente caminha em direção, pensando em que parte da trajetória eu decidi abrir a porta do passageiro e pular na rodovia com o carro em movimento, em que momento decidi que correr em direção a carismáticos desastres naturais soava como uma ideia exorbitantemente mais tentadora do que permanecer numa viagem tranquila, morna, beirando ao agradável. E no meio do caminho, quem sabe, poderíamos ter tido nossa primeira briga. Por Deus! Eu penso nela o tempo todo.

Quando me pergunto sobre quem diabos escreve para alguém como você – alguém que quase me arrepiou os cabelos, que quase me arrancou do próprio eixo – me pergunto qual seria a motivação para a primeira vez que você me veria levantar a voz e debulhar em lágrimas. Queria que tivéssemos uma ocorrência para superar ou algo dessa espécie; queria que você precisasse caçar no seu repertório pessoal as exatas palavras que me fariam destrancar o banheiro com os olhos inchados como um desesperado que chuta combinações de um cofre num filme de assalto à banco e que, nas ações que se seguissem, pudéssemos permear os momentos de calmaria até o próximo evento caótico – como apaixonados dispostos a gritar do topo de seus pulmões seus segredos mais pecaminosos. Você sabe, aquela coisa de filme.

Jamais chegaríamos a lugar algum: lhe roubaram o protagonismo, lhe roubaram meu enrubescer de bochechas e suas narrativas épicas. Quem escreve sobre alguém que eu quase rabisquei o nome no fim do caderno, mas nunca o fiz? Um personagem perdido num mar de amores mais cativantes, segurando suas intenções de um amor gracioso contra seu peito suplicando por apenas um verso no fim do bloco de papel. “Não se incomode com poemas, com longas e tortuosas prosas. Me escreva uma sentença agradável e eu me recolho... Uma sentença não! Uma palavra! Uma palavra qualquer e eu vou embora!”

“Por Deus! Que palavra eu escrevo para você?” Eu não tenho isso dentro de mim! Quero gritar. Não tenho o que é necessário.

Me encontre desenfreada escrevendo os mais belos poemas da língua portuguesa sobre o bandido que chegou aqui, dois ou três anos atrás, escancarou as portas e as cortinas e levou muito do que eu conhecia sobre mim para, logo em seguida, repor com adereços muito mais sofisticados. E eu direi: sim, este desgraçado levou uma parte dos bens, mas se você visse como o cretino fazia uma entrada talvez você entendesse que quando lhe agarrei pelo colarinho não pensei em chamar os seguranças e sim em lhe perguntar: amor, como você faz isso comigo? e faça quantas, quantas, quantas vezes quiser!

E então, lá está você de novo... Suplicando exaustivamente por uma nota de rodapé, o que diabo escrevo sobre você quando só me restaram alguns pedacinhos de toda a grandiosidade que poderíamos ter vivido? Quando tudo que você me deu não é suficiente para duas estrofes inteiras?

Quem sabe seja nesse exato momento em que olhamos para o mesmo lugar que nossa história de quase-amor não-escrita engatinhe suas primeiras palavras, suas primeiras sentenças divagando sobre o espaço que ocupamos - tão repleto de potencial, tão longe e inalcançável agora a essa altura do campeonato. E quem sabe se eu apenas fizer um esforço extra eu consiga maximizar as linhas em que caminhamos, quem sabe se eu apenas focar numa manhã singular de um mês incerto eu possa fingir que tudo aquilo pode tornar-se tudo isso, te pintar como um amor de cinema num filme que nunca foi feito - porque a equipe se exaustou e não cabia no orçamento. Deixados para trás num set vazio com as luzes apagadas enquanto o elenco vai embora, uma narrativa que tinha tudo para ser – e nunca foi.

Você me viu indo embora aquela manhã, você não fazia ideia que eu seria a primeira a ir embora... Mas o que você esperava?

Hoje desci a ladeira em direção a padaria, tirei as moedas e as notas do bolso, pedi: 02 sonhos, 03 pães, 01 tablete de manteiga sem sal. O padeiro me olhando por debaixo da máscara parecia me indagar sobre as dores mais profundas, e eu tenho vontade de dizer: ele não me machucou. Não me machucou em nada... Quem sabe fosse melhor se ele ao menos tivesse isso em sua defesa.

O padeiro não sabe de nada, ele continuava sem saber quando me deu três e setenta de troco. Mas eu quis falar.

“Nós quase fomos algo. Você precisava ver... Eu juro, naquela manhã, bebendo cerveja às dez como bem podíamos porque somos brasileiros e jovens e românticos – tudo que é preciso para beber cerveja às dez da manhã – eu quase me apaixonei, eu quase deixei um bilhete em sua caderneta jogada na mesinha de vime num canto do seu quarto com um ‘ainda bem que nossos caminhos se cruzaram’, mas eu não o fiz. Talvez porque eu havia pensado que o veria novamente, que a quase paixão, e as quase borboletas que quase decolaram no meu estômago evoluiriam para algo mais. Algo extraordinário! Talvez eu soubesse que não o veria de novo...”

“E nada aconteceu?” ele perguntaria, tremendamente interessado.

“Eu esqueci seu aniversário um tempo depois, e esqueci muita coisa na verdade” e eu daria de ombros, num gesto melancólico.

Mas eu não disse nada disso.

Na realidade, aqui está como o diálogo se seguiu:

“Cinco e trinta, meu bem” E eu o entreguei nove reais sem pensar muito na mercadoria ou nos valores ou em qualquer outra coisa. “Tenha um bom dia” e eu guardei os três e setenta no bolso.

“Obrigada.”

O padeiro não estava tremendamente interessado em nosso caso intempestivo. Talvez seja por isso que ninguém escreva sobre alguém como você. Talvez a dor da perda, de um coração em milhões de pedacinhos ou de uma felicidade eletrizante sejam mais fáceis de descrever do que as narrativas em potenciais que se perdem no meio do caminho, que não causam um alvoroço, nem uma cicatriz, nem um suspiro.

Mas eu escrevo sobre você. Quase caindo na emboscada de narrar sobre outro alguém. Então aqui está o que escrevo sobre você, de maneira organizada antes que eu tropece novamente: que acho seus olhos um tanto quanto charmosos, que gostei de seu toque e da maneira que você pronunciou meu nome, que a primeira vez que passou por mim me perguntei em que tipo de devota você me tornaria... Que não me tornei devota alguma, nem perto disso... E que eu já esqueci muita coisa sobre você e disso não posso mentir, mas que foi um momento confortável. E toda vez que você visita meu imaginário nessas doses homeopáticas e inesperadas eu não me sinto flutuante e arrepiada dos pés à cabeça, mas sinto essa vontade de convidar os pensamentos para um chá, para um jogo de baralhos, para qualquer atividade que dure mais de três segundos.

Essas memórias escassas se tornam quase inquebráveis com o tempo, inevitavelmente mais esquecíveis -- isso é verdade --, mas essas lembranças imaculadas, essa improbabilidade de estragarmos tudo como em histórias mais arriscadas, talvez nos tragam algum tipo de alívio, não?

Talvez seja por isso que ninguém se atreva a escrever sobre alguém como você.


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Notas finais do capítulo

se alguém ler espero que tenham gostado!

(e se tiveram gostado - ou DETESTADO também - espero que confiram minhas demais one-shots ♥)



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