Desperdício escrita por fauve hipernova lavanda


Capítulo 1
Desperdício


Notas iniciais do capítulo

Bom, foi uma ideia que eu tive, escrevi e mostrei para minha amiga. Aí pensei se dava pra postar a estamos aqui.
A música é WASTE do grupo Brockhampton, e eu recomendo ouvir enquanto lê. Espero que gostem!



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Daniel estava morto há trinta anos, mas nunca se sentira tanto como um fantasma quanto agora.

Era uma incrível sensação de palidez mórbida e fome incríveis dentro de seus órgãos fantasmagóricos.

Aquela cena do balanço podia ser tão, tão diferente se ela gostasse dele, mas não.

Era tudo sobre o Nicolas.

Quer dizer, ele era mais do que apenas um amigo, um fantasminha camarada que ela esqueceria em alguns poucos anos, ou ele valia mais?

Pelo menos, por enquanto, ele ainda estava na mente dela, no fundo, na banda, na guitarra.....

No canto do quarto de noite no escuro, quando ela não estava prestando atenção.

Daniel no meio fio, olhou para o céu azul celeste, ouviu Martin, Pedrinho e Felix brincando ao fundo enquanto ele esperava e nem sabia direito o quê.

Sabia sim.

Esperava ela voltar do encontro com o tal de Nicolas para passar o resto do dia suspirando apaixonada sobre como o rapaz era perfeito e ela adorava ele.

Dito e feito, ali estava ela com aqueles olhos assustadores que ele sempre teve dificuldade, mas sempre gostou de olhar.

Hoje, ele olhava para um ponto entre suas sobrancelhas e era isso. Caso contrário, ia acabar falando alguma besteira que só o deixaria mais pálido.

Ela estava se aproximando com Nicolas, então ele se tornou invisível.

 - ... Eu já disse que sim, Nicolas, deixa só eu avisar para os meninos! Fica aqui. – Ela tinha um ar leve e risonho, os olhos mais brilhantes que Sirius nos céus.

Ela entrou na edícula, e Daniel estava logo atrás, se sentindo levemente nauseado. Levemente enjoado. Levemente pálido.

Sim, ele ficava feliz por estar com ela na banda, mas mais feliz estaria se ela estivesse com ele, se ele fosse vivo e pudesse sentir ela de verdade, e viver com ela e...

Ele ficaria bem.

Julie andava de um lado para o outro, chamando pelo nome dos três amigos fantasmas que fizera, ansiosa e nervosa.

Daniel se tornou visível para ela, que acabou se chocando contra ele e perdendo o equilíbrio. Em um reflexo, Daniel segurou os bíceps da garota com as duas mãos, fazendo Julie olhar para ele.

O fantasma se viu nos olhos dela, sentindo o coração de beija-flor acelerado. Podia jurar que era uma chama em seus olhos por causa da blusa vermelha. Uma chama pálida e fraca de uma vela presa na escuridão de um quarto sem o sol. E Daniel era essa chama e estava por trás dela, o fantasma que assombra.

Náusea.

De repente, Julie era a chama queimando suas mãos, e Daniel então a soltou.

 - Obrigada. – Ela disse, saindo do transe em que se encontravam, tentando ler um ao outro, desconfortáveis.

Estavam assim desde que ele viu o beijo dentro da edícula entre ela e Nicolas.

O local deles, da banda, profanado-

O comentário ácido posterior de Daniel implicando com o namorado da garota que ele gostava não ajudou muito depois.

 - Disponha. – A palavra finalmente arranhou sua garganta em resposta, como se ele não conseguisse evitar. – Por que estava gritando tão desesperadamente por seus fiéis escudeiros?

Ele também não conseguia evitar de provocar ela de alguma forma, mesmo que ultimamente soasse mais amargo que qualquer outra coisa.

 - Eu queria que vocês tocassem comigo sabe, Invisível. Para o Nicolas.

Um silêncio sepulcral se instaurou entre eles dois.

Daniel, pela primeira vez, se perguntou se foi uma boa ideia ter dito a ela que ficar na banda o faria feliz, ou algo assim. As memórias daqueles dias eram nubladas.

Irrompendo do nada, Martin e Félix apareceram.

 - Claro que a gente toca, né Daniel? – Martin, o responsável por fazê-lo acordar.

 - A gente vai se vestir, dá só uns minutinhos, Ju. – Felix sorriu amavelmente, e a jovem foi atrás de seu namorado que devia estar plantado em algum lugar como a bela palmeira que ele era.

Assim que a porta da edícula se fechou, Daniel percebeu o que realmente queria. O que precisava.

 - Eu vou vazar.

Martin e Felix se entreolharam.

 - Não vai dar, vou embora.

Ele se sentia não mais doente ou enjoado, mas se sentia agridoce.

Se sentia agridoce e partido ao meio, mas agridoce, perdido.

 - Olha Daniel, a gente pode pelo menos tocar essa música. – Felix tentou, meio conciliador. – E depois você decide.

Ele ia ficar.

Mas já estava decidido.

Em silêncio, os três vestiram as roupas que usavam.

Daniel pegou sua guitarra elétrica, uma última vez. E uma composição surgiu em sua mente, uma composição....

Decidiu descartar ela. De toda forma, não ia tocar nunca mais.

Só conseguiu voltar a tocar depois de trinta anos, por causa de Julie, e por causa dela, provavelmente nunca mais tocaria de vez.

Ok, talvez ele estivesse sendo muito dramático, talvez ele tocasse depois de um tempo, depois de se organizar de novo. Mas agora era tudo muito cru.

Ele estava perdendo seu caminho, estava perdendo a si, finalmente. Era um risco que fantasmas corriam se não se lembrassem de quem eram. Daniel, no entanto, estava se perdendo principalmente porque se sentia um tolo.

Era um desperdício, amar depois de morto. Era um desperdício amar alguém vivo. Era um desperdício amar alguém que não o amava. Era tudo um grande desperdício-

 - O que é, Ju? – Algo ferveu dentro de si quando Nicolas e Julie entraram. Era fim de tarde, e ela não podia estar mais bonita naquela luz alaranjada de pôr do sol, mas....

O jeito que os dedos dela se enrolavam na camisa obviamente verde de Nicolas, feita claramente de algodão, macio e vivo, bem como o sorriso íntimo e afetuoso cheio de covinhas que Julie lançava para Nicolas eram detalhes que Daniel não gostava.

Então a grandíssima apresentação de Julie para o namorado começou, os sorrisos tímidos dela todos para ele, que como a bela planta que era nem se deu ao trabalho de dançar, ou fingir que estava achando alguma coisa.

Só ficou lá, sorrindo.

No fim, se aproximou da vocalista e a beijou.

Daniel desviou os olhos a princípio.

Depois acabou por olhar uma ou duas vezes, vendo novamente os dedos enrolados no algodão verde, alguns enrolados nos fios escorridos de Nicolas.

No fim, mais um sorriso.

Martin e Félix, também claramente desconfortáveis, estavam olhando para qualquer lugar que não para o casal. Julie e Nicolas saíram, não antes de ela dizer:

 - Obrigada, meninos! Eu já volto. – E saiu da edícula, provavelmente para se despedir do namorado sem plateia.

 - Eu estou indo. – Foi o que Daniel conseguiu dizer, enquanto tirava a fantasia.

 - Não, Daniel, espera. – Martin o segurou. – Você sabe para onde vai?

Ele deu de ombros.

 - De preferência para longe, por que? – Tentou brincar, sem sucesso.

 - Se despede da Julie, Daniel. Você disse que ia tocar com ela, mas aí decide ir embora sem se despedir, sem se explicar... Ela vai ficar chateada. – Martin tentou dissuadi-lo, e Felix continuava calado.

 - Eu vi que você ia compor algo, compõe, fala pouco e entrega. – O amigo que estava até então em silêncio se pronunciou.

 - Como é que....

 - Ah Daniel, me poupa. Você tem estado uma pilha esse tempo todinho, insuportável, mais que o normal, só relaxou quando pegou hoje na guitarra. Só podia ser isso.

Martin começou a rir.

 - É, você anda bem chatinho.

Finalmente, ele conseguiu rir. Então os três riram, temerosos. Sabiam que Daniel precisava de um tempo sozinho, então não se ofereceriam para ir com ele. Sabiam que mais cedo ou mais tarde ele voltaria para os dois. Mas ficavam preocupados.

 - Acho que a ideia do Felix é boa. – Daniel finalmente disse algo, após a crise nervosa de riso.

 - Claro que é. – Felix cruzou os braços.

Em silêncio, os três começaram a compor a música. Daniel explicou como era, como estavam baixo e bateria. Era lenta, agridoce e esperançosa, a música de um viajante. Naquele meio-tempo, Daniel tirou seu paletó preto. Estava se sentindo estranhamente sufocado pela composição.

Era o jeito deles de se despedirem, compondo juntos.

Não trocaram muitas palavras, apenas olhares e abraços principalmente.

E então, como se fosse cronometrado, Julie entrou na edícula, sozinha.

Martin e Felix ficaram invisíveis e dali saíram, dando privacidade para os dois.

 - Nossa, hoje o dia foi tão bom! Cadê todo mundo? – Julie tentou soar casual, percebendo que algo estava esquisito. Então os olhos dela subiram e desceram em Daniel, parando no rosto dele. – Acho que eu nunca te vi sem o paletó.

Daniel torceu as folhas com a canção, engolindo em seco. Ele estava esquisito sem o paletó? O que aquilo queria dizer?

 - É, pois é. – Falou, sem saber o que falar.

 - Daniel, está tudo bem?

Ele estava aprendendo uma coisa: ia doer não sentir mais olhos dela nele.

 - Desculpa. – Saiu antes que ele segurasse a palavra. – Isso a deixou evidentemente confusa.

 - O que houve? – Julie estava cautelosamente se aproximando, até estar muito perto. Aí ele perdeu a cabeça.

 - Estou indo embora. Não vai dar, sabe, essa situação toda.

 - Que situação? – Ela indagou, mas sabia, claro que sabia.

 - Ah Julie, qual é! – Daniel exclamou em um apelo.

 - Não Daniel, qual é eu que digo! Você tinha dito pra mim...

 - Eu não sabia que ia ser desse jeito, Julie.

 - Que jeito? Hein? Que jeito?

Ele não entendia aquelas coisas que Julie estava sentindo. Os olhos dela eram muito transparentes, mas estavam carregados de emoções demais para que ele conseguisse entender qualquer uma.

 - Desse jeito. Não sabia que eu ia me sentir assim, como se eu estivesse doente, como se eu estivesse perdido.

Ela ficou em silêncio. Julie ficou quieta.

 - Eu não sei se... Mas é que eu.... Daniel tem certeza? – Ele queria que ela tivesse dito o que estava pendurado nas reticências, ou olhasse para ele ao invés de fuzilar o chão. Mas ele queria muitas coisas que não teria.

 - Eu tenho.

Então ela franziu a testa, parecendo querer debater, ou convencer ele a ficar.

 - Não fala nada, Julie, eu já tomei minha decisão.

 - Eu não ia falar nada, você faz o que quiser.

Daniel pensou em ser sarcástico, mas o clima iria ficar pior.

 - Escrevi isso. Dá uma olhada depois. – Estendeu o papel para ela, que pegou. Quando os dedos se encostaram, os pares de olhos se desviaram um do outro.

 - Vou olhar, pode deixar.

Daniel balançou a cabeça, positivamente, cruzando os braços. O silêncio podia ser preenchido por algo, mas eles preferiram mantê-lo, aquele vácuo.

 - É isso.

 - Eu vou sentir saudade.

Disseram ao mesmo tempo, se atropelando.

 - Você só vai sentir saudade porque vai ficar sem guitarrista. – Era para ser uma brincadeira, mas soou meio amargo.

 - Daniel, você sabe que não é isso.

Não, ele não sabia, mas preferia ficar calado mais uma vez.

Mais vácuos e silêncios.

Mais segundos desperdiçados.

 - Então, é. Tchau, Julie. – Daniel disse, se sentindo desconfortável.

Ela demorou a responder, tentando manter o fantasma ali mais um pouco, mas não teve jeito.

 - Tchau, Daniel. – Ela sussurrou, e ele sumiu em sua frente.

Mas Julie ficara com três coisas.

A primeira, o paletó que estava ali de alguma forma, talvez somente visível para ela.

Tentou tirá-lo do chão, para guardar ou vestir, mas ele era feito de algo que ela não conseguia alcançar com os dedos. Então depois de tentar e tentar, desistiu.

A segunda, era a promessa de volta. Daniel não lhe dissera adeus, apenas um simples tchau.

Talvez ela estivesse se prendendo em detalhes, mas gostava de pensar que isso era um indício de que ele voltaria.

A terceira, era a música. As folhas. As letras e partituras com a canção.

Canção que ela percebia agora, descreviam como ele se sentia: perdido. Perdido, mas esperançoso. Ela não pode deixar de pensar que em outra vida, em outro universo, eles ficariam juntos. Só não podia deixar Daniel sonhar que achava isso. Eles dois sabiam que aqui, era impossível.

Leu as partituras, sabia mais ou menos como a música soava.

Não pode deixar de pegar a guitarra vermelha que ele deixou para trás assim como o paletó e começar a concretizar aquela música. E sentiu o que ele sentia.

Finalmente, entendeu a decisão de Daniel, porque se fosse ao contrário, ela faria o mesmo.

Longe dali, sentindo um frio que não vinha do vento, Daniel andava.

E andava e andava, e andava.

Estava perdido.

Mas ficaria bem.


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Notas finais do capítulo

Enfim, é isso
espero que gostem, eu fiz bem rápido até, sem revisão
perdão qualquer erro!



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