Milk And Honey escrita por Lady Íris


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/799779/chapter/1

Foi um hábito adquirido através do tempo, insônia e a mistura dos dois. No início era infrequente, até tornar-se algo comum e por fim, constante. Gojo Satoru não tinha muito sono e costumava acordar pelo menos uma vez por noite antes de, após horas, conseguir voltar ao dormir. Se era algum tipo de ansiedade ou o excesso de açúcar correndo em seu sangue, ele não sabia.

O que sabia, no entanto, era usar seu tempo bem.

A casa era silenciosa à noite, principalmente quando tão tarde assim. Parecia que até o vento noturno fazia questão de manter o pudor e ser delicado, não fazer ruídos exagerados, não balançar demais as cortinas e nem desfilar assobiando pelos móveis. Gojo sentia a necessidade de manter o mesmo padrão de quietude e umbral, assim, não ousava acender as luzes, enquanto andava descalço pelos corredores, evitando as tábuas de madeira que costumavam ranger sobre seu peso. A pequena vela, meio derretida num cinzeiro, fornecia uma torpe iluminação bruxuleante, mas o homem não se importava. Nunca precisou de luz para enxergar.

Além disso, ele poderia achar esses quartos mesmo dormindo ou desmaiado.

Lentamente e com muito cuidado, para não perturbar as dobradiças que já não eram mais tão novas, o homem abriu a porta de um deles. Não fez ruído, então era quase como se uma sombra tivesse realizado a ação. Ou um fantasma. Ele sempre fora mesmo de uma brancura fantasmagórica, era uma comparação adequada.

Kurosaki estava dormindo e a menina dormia como vivia. Gojo já havia presenciado essa cena muitas vezes e sabia reconhecer o revirar nos lençóis, a multiplicidade de expressões que cruzavam o rosto dorminhoco, os empurrões e abraços agressivos na infinidade de travesseiros jogados pela cama. O cobertor de um rosa chocante já havia perdido a guerra contra a jovem feiticeira e jazia amontoado no chão, enquanto a garota resmungava coisas, perdida em seu sono.

Gojo sentiu-se arrepiar levemente, enquanto entrava no quarto e fechava a porta atrás de si. A janela estava entreaberta, e uma gélida brisa noturna corria no recinto, ameaçando apagar a frágil chama que o ele trazia consigo.

—Sinceramente, uh? Alguma coisa podia entrar aqui dentro- Murmurou baixinho, abandonando o cinzeiro na escrivaninha atulhada e fechando a janela com o mais mínimo som- E você pode acabar com um resfriado terrível também.

Satoru inclinou-se no chão, ajuntando a manta fofa nas mãos e cobrindo a estudante adormecida. Nobara resmungou mais alto, revirando-se na cama, mas abraçou o tecido com força e um suspiro satisfeito, as discussões oníricas em sua cabeça se acalmando.

O homem recolheu o cinzeiro com sua vela relutante e retirou-se do quarto tão calmo e silente quanto havia entrado.

Ás vezes, quando sua mente estava inquieta demais para apenas realizar funções sem debater muito sobre elas, Gojo se perguntava por que fazia isso. Por que acordar no meio da noite e checar os estudantes que estavam sob sua atual tutela era um hábito tão rigidamente elaborado e construído que ele havia decorado os padrões de sono de cada um deles e sabia pela torção entre as sobrancelhas se estavam assustados ou não?

Tinha a lembrança de infância, imaginava. Algo sobre fazer com o outro o que você gostaria que tivessem feito com você. Algo sobre ser a mudança que gostaria de ver no mundo.

Uma vez, ele falou isso com Nanami e pareceu a primeira vez que o homem o levou realmente à sério.

“Dar o que não recebemos dói, mas também cura.”

Gojo quis contrariá-lo, porque ele nunca sentiu dor cuidando dos seus alunos. Ele nunca teve problemas em trocar lentes para Maki ou comprar pílulas de hortelã boas para a garganta para Inumaki. Ele nunca sentiu aquele aperto familiar no peito quando enfaixava machucados ou ajudava a colocar ossos no lugar.

Ele sentia como se estivesse fazendo seu dever.

Ele sentia como se estivesse funcionando.

A porta do quarto de Megumi nunca ficava fechada, apenas levemente encostada e Gojo nunca questionou esse hábito do mesmo jeito que o rapaz não levantava perguntas nas vezes que o homem o encontrou acordado enrolado em seus lençóis. Era uma vida de mão dupla, no final das contas.

Claro, havia noites em que a porta não estaria só fechada, mas também com o trinco atravessado e passado à chave. Nessas noites, Gojo sabia que o menino não queria ser incomodado, fosse com perguntas ou com conforto. Eram noites com um gosto mais sombrio e saudoso que seria levado até o dia seguinte. Esses seriam dias calmos e azuis, dias que exigiam doces açucarados e pouquíssimo contato físico.

Mas, não era uma noite como essas e amanhã não seria um dia como esses, por isso, o homem entrou sem problemas no ambiente privado extremamente limpo e organizado do rapaz. Estilo minimalista que costumava fazer a cabeça de Megumi funcionar melhor.

O Megumi em questão estava encolhido em sua cama, no sétimo sono, enrolado protetoramente contra seu shikigami, o nariz enterrado no pelo espesso do Cão Celestial e o rosto parcialmente coberto por sua pelagem. Era uma variação interessante de um boneco de pelúcia e ele não fazia a menor ideia de como o jovem conseguia manter a concentração mínima para segurar o animal naquele plano enquanto dormia.

Talvez fosse o esforço conjunto do animal incluído nisso. O Cão encontrava-se muito bem acordado e pronto para arrancar alguns membros de quem ousasse chegar muito perto do seu dono num estado tão vulnerável. Ele via Gojo quase todas as noites e mesmo assim, não hesitou em soltar um rosnado silencioso com o brilho de presas brancas, em advertência.

Gojo sorriu, algo pequeno e tímido, privado à noites e cuidados compartilhados. O seu garoto estava seguro, bem e aquecido, como deveria estar. Tinha um sono relaxado, quieto e não costumava se remexer demais na cama, acordando do mesmo jeito que tinha ido se deitar. Não era dado aos pesadelos ou terrores noturnos, mas Gojo nunca perdeu o costume de acender o abajur ao lado da sua cama, por que qual mal um pouco de luz faria?

Megumi já dependia de sombras o suficiente para uma vida inteira, certo?

Os reflexos da lamparina amarelada espalharam-se no rosto adormecido pacificamente, contornando cílios trêmulos, a dobra do maxilar suave e as bochechas ruborizadas de frio, os pequenos detalhes que fazia Gojo lembrar-se de como seus estudantes eram jovens e frágeis, recém-saídos da infância, apesar de toda a pose e pompa que pudessem fazer.

—Cuide bem desse aqui, ok?- Falou bem baixinho, só para ele e o animal ouvir- Ele ainda precisa de muito cuidado antes de terminar de crescer.

O Cão Celestial sequer piscou, mas enquanto o jovem feiticeiro se remexia para mais perto, ele pareceu entender. Era um bichinho esperto, apesar do que outras pessoas poderiam dizer.

Saiu e deixou a porta como encontrou: ligeiramente encostada, mas nunca fechada. Era uma boa metáfora e Satoru, algum dia, iria descobrir para que.

O último quarto era ao lado do segundo.

Itadori Yuuji era encontrado com frequência impressionante tentando distorcer as leis anatômicas do próprio corpo enquanto dormia em posições que não deveriam ser humanamente possíveis. A cama, lençóis e travesseiros em uma completa bagunça. Se Kurosaki dormia brigando, Yuuji dormia como se estivesse no meio de um genocídio ou assassinato em massa.

Todavia, não foi isso que Gojo encontrou quando adentrou no recinto.

Sem grandes confusões ou bagunças rotineiras, o menino encontrava-se encolhido entre montes de lençóis e cobertores, abraçando os joelhos e completamente acordado num silêncio soturno.

Por mais frequente que fosse encontrar Yuuji viajando nos braços de Morfeu, pouco incomum era vê-lo assim nessas checagens noturnas. As noites difíceis, as noites que o faziam pensar demais, as noites que traziam memórias que o machucavam.

“Como podemos nos perdoar pelas coisas que não fizemos, sensei?”

Silenciosamente, abaixou a vela que carregava no criado-mudo próximo e sentou-se na cama, ao lado do amontoado de cobertores que fazia o lugar do rapaz. Yuuji estremeceu, mesmo que não fizesse frio, os dentes cravados no lábio inferior, apertados o suficiente para machucar.

—Não consegue dormir, pequeno?- A sua voz era suave, reservada para todas as coisas delicadas e perdidas que ele encontrava.

O garoto balançou a cabeça em negativa, sem olha-lo. Não olhar era comum em noites assim. Assustado demais para isso. Sobrecarregado demais para isso. Um toque pesado demais e ele iria estilhaçar.

—Tudo bem, às vezes é como as coisas são- Esfregou calmamente as costas do menino, o calor irradiando das mantas, a palma sentindo a tensão irritada dos músculos- Vamos resolver isso agora, certo?

O jovem soltou um barulho de concordância, um som molhado com aparência de lágrimas ou choro reprimido. Doía de escutar, mas à esse ponto, ele sabia que questionar ou inquirir não o levaria a lugar nenhum.

Yuuji segurou sua mão, os dedos trêmulos, mas que traziam calor, apertando a palma com força como se precisasse saber que ele existia e estava ali. Que não ia embora e não o deixaria no meio da noite se sentindo confuso e sozinho.

“Sensei, como nos perdoamos pelas coisas que não fomos?”

Os dois levantaram-se da cama. Yuuji ainda enrolado em seus lençóis como se fosse desmontar sem eles e Gojo com seu cinzeiro e vela em uma das mãos, guiando o menino trêmulo e ainda assustadiço pelos corredores escuros.

Mais ruídos molhados se seguiram e o professor não precisava olhar para trás para saber que uma ou duas lágrimas salgadas haviam corrido por seu rosto. Itadori era tão jovem e já carregava tantas coisas afiadas em mãos nuas. Coisas que não o deixavam dormir em paz. Coisas que o impediam de se espalhar na cama, respirar fundo e relaxar. Coisas com que ele não deveria ter que lidar ainda.

Satoru entrou na cozinha, acendeu a luz e apagou a vela. Com o cuidado de um pai que trata o filho enfermo, certificou-se de sentar o jovem confortavelmente na cadeira próxima. Seu rosto, de fato, estava molhado e ele ainda fungava um pouco, os olhos cor de mel desfocados e cabisbaixos, sem nunca encontrar os seus.

Limpou com os polegares os traços das lágrimas, os dedos deslizando na pele que ainda possuía a mesma suavidade e falta de linhas de expressão que qualquer outro garoto de sua idade teria. Por quanto mais tempo ele permaneceria assim? Quanta mais dor ele aguentaria antes de quebrar e mostrar isso em si mesmo?

Perguntas cruéis com respostas cruéis. Gojo não ousava fazê-las.

—Tudo bem agora, certo?- Afastou os fios rosados que estavam grudados no rosto do rapaz que assentiu lentamente, coçando um dos olhos com o pulso fechado- Mel ou açúcar?

—Mel- Sussurrou lentamente, o timbre apenas uma sombra mal formada do que era. Sem luz de sol. Sem risos. Apenas sustos e horas insones.

—Mel, então- Afagou o cabelo do rapaz antes de voltar-se ao resto da cozinha.

Exercendo os movimentos praticados de alguém que fazia a mesma rotina há muito tempo e não esperava parar de fazê-la em algum momento do futuro, Gojo Satoru organizou uma panela em cima de uma boca de fogão ligada. Tirou o leite da geladeira e colocou o suficiente para um copo generoso, antes de adicionar uma pequena quantidade de mel.

Esperou aquecer, não o suficiente que borbulhasse e fervesse, mas sim para que ficasse morno. Aquecido para trazer conforto, não para machucar ou queimar uma língua. Não demorava muito, mas normalmente era tempo suficiente para Yuuji conseguir entender que havia outra pessoa ali. Alguém se movendo na claridade. Alguém mexendo nas panelas e no medidor. Alguém falando com ele e fazendo coisas para ele.

Aquecer um leite não demorava quase nada, mas ele fazia questão de deixar o fogo baixo e leve, para dar alguns minutos a mais para o menino parar de tremer.

Despejou o líquido adocicado num copo de vidro e colocou entre as mãos expectantes do rapaz. Ele encarou o recipiente por sólidos dois minutos antes das mãos ficarem firmes o suficientes para leva-lo aos lábios e bebe-lo vagarosamente.

Gojo esperou com a paciência que tinha para pouquíssimas coisas no mundo, mas já havia passado por esse mesmo cenário diversas vezes com crianças que tendiam a ser mais chorosas ou mais emudecidas que Yuuji. Ele estava acostumado.

—Terminei, sensei- Yuuji falou um pouco mais seguro de si, apesar do tom embargado, enquanto depositava o copo vazio na mesa. Ele já o olhava nos olhos, o que costumava ser um bom sinal.

—Ótimo, Yuuji-kun, fome?

—Não- O rapaz mordeu o lábio lentamente, antes de estender uma mão hesitante para ele- Estou cansado.

Gojo segurou-a com leveza, o sopro do vento noturno, a delicadeza de manter entre seus dedos algum tipo precioso de nectarina.

—Nesse caso, vamos te levar de volta para seu quarto, uh?

O rapaz assentiu suavemente, mal fazendo ruído quando se levantaram e Gojo apagou as luzes e sem se preocupar em acender uma nova vela e levou-o de volta pelo mesmo corredor que tinham usado. Mais devagar dessa vez, com Yuujo mais perto de si, garantindo que ele não tropeçasse nos próprios pés na escuridão que andavam, mesmo que ele já parecesse mais estável, lidar com um machucado não era seu objetivo no momento.

Entraram juntos no quarto e sentaram-se juntos também. Yuuji, vagaroso, mas constante, tirou o excesso dos cobertores que o cobria, mantendo apenas uma colcha grossa perto de si. Deitou-se, por fim, apoiando a cabeça no colo do homem, fechando os olhos.

Gojo exalou baixinho, se recostando na parede enquanto enrolava os dedos nos fios rosados do rapaz. As unhas roçando sutilmente no couro cabeludo num movimento ritmado e Satoru podia sentir os restos finais da tensão escorrendo para fora do corpo do jovem. A respiração se acalmando, os olhos começando a realmente pesar atrás das pálpebras.

Gojo Satoru não fazia a menor ideia de quando se tornou um hábito ou como conseguiu arranjar uma rotina tão rigidamente organizada em seus horários insones.

Ele apenas entendia que existiam coisas difíceis que se soltavam quando o sol se punha.

E ele entendia que ninguém deveria passar por isso sozinho.

Muito menos uma criança.

Itadori Yuuji, pouco depois, adormeceu. Calmo e embalado. Confortável.

“Eu não sei Yuuji-kun, mas não precisamos carregar esses arrependimentos sozinhos”.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Se vocês querem mais nessa temática, por favor, contribuam com o feedback. Tenho mais alguns trabalhos escritos.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Milk And Honey" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.