Atlas: Lua escrita por Biazitha


Capítulo 3
Entre a neve e os lobos




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— Eu sempre estive sozinho em casa, ninguém acreditava na minha capacidade de ser alguém. Enchiam-me de bens materiais para suprir a falta física e o excesso de indiferença, mas viviam me cobrando por coisas que eu não controlava. Eu nunca entendi por que não confiavam ou acreditavam em mim, sempre me esforcei para ser alguém bom e um sucessor digno para a empresa. Eu era um ninguém, me sentia um nada, completamente deixado de lado e tendo a inteligência questionada sempre que possível, então, resolvi fugir. — Começou Lucas assim que Yuqi sentou ao seu lado. O homem aconchegou-se aos poucos perto dela, encolhendo os joelhos até próximo do peito enquanto revivia o passado. — Achei a pousada Dali quando meu carro também quebrou na estrada. O quarto 209 foi meu, por isso aquela mala estava lá e... Isso tudo é loucura.

— O quê?

— Em uma noite, como um diabo fugindo da cruz, fiz tudo escondido e escolhi as estradas mais desconhecidas para escapar... Não que alguém fosse perceber a minha ausência tão cedo, acho que foi até um alivio para eles. — Ele parou de contar suas memórias e mais um uivo soou no silêncio, assustando ambos. Yukhei fungou um pouco, escondendo o nariz vermelho pelo frio no casaco grosso; sua atenção estava totalmente focada na mulher novo. Observava-a com o perfil arrebitado e os olhos encarando a imensidão branca, claramente fugindo de sua atenção. Sabia que ela estava desconfiada e magoada, no entanto, não tinha mais jeito; precisava ir. — Mas deu tudo errado, acabei ficando preso nesse fim de mundo, já que não fui nem capaz de planejar a minha fuga direito. Eu queria mostrar que sei me virar, que sei fazer acontecer e que tenho inteligência para ser o que quiser. Eu queria seguir os meus próprios passos longe de tudo aquilo que sempre me colocou para baixo. Eu só queria ser livre!

O homem encolheu mais o corpo, sentindo as lágrimas chegarem aos olhos. Ainda ressentida, a professora o olhava de soslaio, tentando não abraçá-lo ao ver sua grande — e normalmente brilhante — figura tão frágil. De repente, um pensamento lhe ocorreu:

— Mas, e esses cartazes? Eles estão te procurando por aqui, como ainda não te encontraram?

— Não, não é a minha família. O pessoal da pousada que está me procurando. Eu sumi sem pagar pelo quarto 209, eles só querem me encontrar para que eu pague o que devo. Meus pais nunca me procuraram.

— O quê? Lucas, você deve estar delirando! Todos te viram entrar comigo na pousada e passar esses dias todos no meu quarto.

— Não, eles não viram.

A professora começou a sentir a irritação tomar conta de seus sentimentos. Sentia cada parte queimar, mesmo que estivesse coberta de neve gelada. Se antes estava sentindo pena, agora sentia-se fulminar pelo que ouvia. 

— Eu cansei, Wong Yukhei. Primeiro, você surge para me socorrer naquela estrada vazia do nada. Depois, pede para dividir a cama comigo porque estava com problemas em casa. Então, surge dizendo asneiras incompreensíveis? Diga algo que faça sentido ou irei embora. Já perdi muito tempo aqui!

— Você não acreditaria em mim... Depois que... Depois que parti, tudo ficou uma loucura assustadora e você foi a única que realmente confiou em mim. Não vá!

— Do que você está falando, Wong? Fale a minha língua de uma vez!

O homem suspirou algumas vezes, olhando para a pequena figura trêmula a sua frente. Esticou o braço esquerdo e puxou a professora de volta, fazendo com que ficassem lado a lado novamente. Mexia nos dedos da mão, incapaz de controlar o próprio nervosismo. Mais lobos uivaram, formando um coral perturbador.

— Tudo tem um motivo, Yuqi. Quando fugi de casa pela indiferença dos meus pais, quando meu carro quebrou e vim parar nesse lugar, quando fiquei preso aqui... Isso tudo tem um motivo — retrucou com velocidade, finalizando seu pensamento com a respiração ofegante. A fumaça quente saía de seus lábios e se dissipava na mesma velocidade com o ar frio. — Você desviou do caminho que sempre fazia, seu jipe quebrou e dormiu no quarto que era meu por um motivo... Você me encontrou por um motivo

— Qual?

— Para me salvar, isso se chama destino. 

— Que...

— Não, me escuta! — Virou-se de supetão, segurando firme nas mãos da mulher; estava entre as pernas abertas dela, de joelhos. Sua voz começou a falhar enquanto tentava falar mais alto que os uivos cada vez mais próximos: — Era uma noite fria e cheia de neve como essa. Fazia três dias que eu estava longe de casa. Eu tive um sonho ruim e saí para passear, sem avisar ninguém, afinal, todos dormiam. Andei por entre essas árvores sem medo, tentando espairecer. Algo me atraía para entrar cada vez mais na floresta. Até que percebi estar perdido... Eu me perdi nessa porra de floresta, Yuqi. 

Mesmo com os uivos, ambos foram capazes de escutar outro barulho alto, como se fossem gritos ao longe; eram como um chiado familiar, como se chamassem por alguém. Lucas arregalou os olhos e continuou a história ainda mais rápido:

— Estava ficando cada vez mais frio e comecei a ver vultos. Eram lobos, esses malditos lobos que me atormentam até hoje. 

— Como é?! 

— Os lobos se alimentam de almas perdidas e solitárias como eu. Eles querem me levar para a escuridão. Fui encurralado por eles naquela noite e senti a vida fugir de mim aos poucos. Eu morri congelado, Yuqi! Contorcido nesse chão cheio de neve e sozinho...  

— Vo-Você é louco? Eu nunca ouvi algo do tipo. Com certeza é um psicopata! O que es-estou fazendo aqui te ouvindo contar essas bo-bobagens?

— Eu precisava de alguém que confiasse em mim, me encontrasse na floresta e me salvasse, só assim eu teria paz. Eu queria ter te contado antes, porém, perdia a coragem achando que você fugiria de mim quando ouvisse a verdade. Só que agora não há mais como fugir disso, você me encontrou e me ajudou. Logo os lobos me arrastariam para a escuridão, mas você... Você é minha heroína e me deu a eternidade. O seu coração puro e o seu carinho me salvaram.

— Vo-Você é doente, Yukhei. Inventou uma história dessas e achou que eu ia acreditar? O que você quer comigo? Me diz: o que vo... — A professora não sabia dizer se gaguejava por estar com frio ou com medo. Brigava consigo mesma em pensamentos para juntar forças e sumir dali. Precisava, mais do que nunca, ir embora. Fez menção de levantar o corpo, mesmo que parecesse difícil já que a neve começava a congelar cada membro do seu corpo. Lentamente. 

— Desde que você chegou teve sonhos estranhos com alguém te pedindo socorro. E, mesmo que tente, não consegue ver o rosto da pessoa.

Aquilo fez Yuqi parar com as reclamações no mesmo instante e voltar a posição anterior, lembrando dos sonhos perturbadores que teve desde que chegou ali. Por um momento, esqueceu-se do frio. Os pesadelos eram tão vívidos, tão reais... Como ele poderia saber que estava tendo pesadelos se nunca havia contado sobre?

— Sou eu nos pesadelos, Yuqi. Eu precisava da sua ajuda, era uma forma de me comunicar sem te assustar muito. — Barulhos de passos apressados se aproximavam, os uivos já não eram mais ouvidos. — Agora preciso que feche os olhos.

— O quê?

— Feche os olhos. Rápido!

A expressão do homem não dava brechas para uma discordância ou relutâncias, então, a professora o fez, tremendo por dentro e arrepiada por fora. Ao citar sobre os pesadelos, a guarda dela havia baixado consideravelmente e alguma coisa gritava dentro si, clamando para que acreditasse naquilo tudo. Mesmo Lucas não sendo uma pessoa maldosa ou maliciosa, devia mesmo acreditar em suas palavras?

Enquanto lutava com seus pensamentos, a presença do homem foi ficando cada vez mais próxima, até o toque de seus lábios se fazer presente. O frio pareceu sumir do corpo de Yuqi e sua mente tornou-se um turbilhão intenso. A boca dele contra a sua parecia fazer sentido até demais, como se trouxesse de volta todos os sentimentos e momentos bons que compartilharam nos últimos dias.

Por que não conseguia mais se preocupar com aquela história louca que havia ouvido? Por que estava inclinada a acreditar naquilo tudo? Por que o fato de que Lucas era uma alma perdida não lhe incomodava? Por que beijá-lo não lhe perturbava?

Por quê? Por quê?, pensava desesperada, tentando encontrar alguma sanidade dentro de si, entretanto, o beijo que recebia acabava com seus tormentos e trazia paz. Como? 

— Obrigado — sussurrou Lucas se afastando, levando uma das mãos até o rosto imóvel e gelado da professora, deixando um afago ali.

— Pe-Pelo q-quê? — Indagou com a voz falha pelo frio. Tentou virar a cabeça quando ele voltou a sentar ao seu lado, mas sentiu que com apenas aquele movimento poderia se quebrar por inteira. 

— Por acreditar em mim e por me fazer sentir vivo de novo em tão pouco tempo...

O homem encostou suas cabeças, fechando os olhos em seguida. Não encontrava mais resistência na mulher, conseguia sentir os dedos finos dela encostarem em sua mão em um carinho fraco. Estar com ela naquele momento o fazia se sentir seguro, sentia-se feliz por ter compartilhado memórias e sentimentos bons com ela. Yuqi precisava aguentar só mais um pouco.

 

A gritaria — antes distante — começava a se aproximar e Lucas sabia que havia chegado a hora. Estava finalmente livre; o coração puro daquela mulher havia salvado sua eternidade e o livrado da escuridão daquela floresta.

Um grupo de bombeiros e policiais surgiu por entre os troncos cobertos de neve com as lanternas acesas, mirando diretamente nos dois sentados no chão. Um suspiro de surpresa e descrença saiu da boca dos presentes. 

A cena poderia ser deplorável para quem visse: uma mulher respirando com dificuldade e com as mãos juntas a de um cadáver. Um cadáver com um casaco grosso, uma jaqueta jeans e um cachecol listrado. Um cadáver de um desconhecido para quem olhasse de fora, mas aquele era Wong Yukhei para Yuqi.

— Filha?! — Berrava a mãe da Song entre soluços de desespero e pavor.

— Ela deve estar em estado de choque, senhora. Por favor, afaste-se.

A professora sentiu seu corpo ser levantado e colocado em uma superfície fofa; suas pernas foram ajeitadas no macio e uma colcha cobriu seus membros quase congelados.

Ela sentiu muitos sentimentos diferentes ao olhar para o céu e ver os flocos caindo, contudo, o que ela não sentiu foi o último beijo que a alma de Lucas deixou em seus lábios trêmulos, antes de cada um partir para um lado.

— Até mais — murmurou no silêncio, sabendo que a professora não poderia mais ouvi-lo. A imóvel Yuqi foi empurrada até a ambulância e Lucas, finalmente, estava livre para viver a eternidade.

 

Dentro do carro, a mãe de Song, preocupada com a situação, tentava de inúmeras maneiras chamar a atenção da filha, chorando copiosamente agarrada às suas mãos geladas. O pai a abraçava de lado, chorando também. Não sabiam descrever o que sentiam após ver aquela cena. 

Um socorrista ajeitou o soro com um calmante forte no braço da professora, porém, ela nem mesmo sentiu a picada e pareceu não fazer efeito algum.

Seus olhos opacos e amendoados miravam o começo de um esplêndido nascer do sol pela pequena janela da ambulância. Os raios tingiam aos poucos os troncos retorcidos e os montes brancos de neve. Era um dia bonito.

Bonito como...

— Lucas! — O nome saiu sôfrego de sua garganta ressecada e embolou-se na língua gelada. Gotas quentes fizeram um caminho rápido para fora dos olhos de Yuqi, expulsando todo carinho, compreensão e desespero que sufocavam o seu coração.

 

A presença de Lucas foi como uma névoa densa e penetrante que chegou do nada, cegou as sensações de Yuqi e se dissipou por entre a escuridão sem aviso prévio.

Poderiam enchê-la de remédios o quanto quisessem, mas ela não seria capaz de esquecer Wong Yukhei e todo o sentimento puro que compartilharam naquele lugar sem nome.


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