Serpente escrita por MademoiselleChociay


Capítulo 4
Prisão dentro do corpo




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Acordei de sobressalto. Sufocada. Era comum a todas as vezes que voltava ao Brasil — talvez uma memória que se fizesse em minha pele, revivida por mais que eu tentasse esquecer. Era como se eu estivesse outra vez presa no meu corpo, como no período em que estava em coma. Sentia um peso, como se alguém pesasse seu corpo sobre o meu. Sentia unhas finas me arranharem, ouvia uma voz sussurrar sem poder dela discernir qualquer palavra. E o sufocamento era sempre acompanhado daquele cheiro… Algo próximo a um cadáver putrefato, que me inebriava numa angústia aparentemente infinita. 
Gritei. Da janela, ainda era noite. Eu não conseguiria voltar a dormir. 
Tomei um banho quente, esperando que a água trouxesse algum alívio ao meu corpo tenso. Pouco funcionou. E escutei de mim que não suportaria mais um minuto daquele quarto. 
De volta à rua, caminhei um tanto sem rumo sobre meus saltos. E dali a pouco atravessava a fronteira do Bairro das Pitangueiras e adentrava aquele território ainda quase estrangeiro a mim: o Limoeiro. Aquele campinho era o mesmo, o mesmo em que Cebola me pediu em namoro quando ainda era Cebolinha. Quando eu ainda era “Penha, a Temida”.
“Não estou fazendo nada mesmo”, foi o que respondi na ocasião. Nunca imaginaria que “não estar fazendo nada” aos sete anos marcaria minha vida adulta. 
A sorveteria do primeiro encontro não estava mais lá. Deu lugar a um bar, até bem bonito apesar de pequeno e pouco iluminado. 
Escolhi um lugar solitário no balcão. Um rapaz pouco mais velho que eu secava algumas taças. 
— Boa noite. Quer dar uma olhada em nossa carta de drinques? — ele perguntou com educado sotaque português.
— Oui, clarro. — respondi, tentando também ser gentil. 
Um cardápio cartonado me foi entregue. Virei frente e verso antes de decidir por duas doses de uísque com gelo — pedido que pareceu surpreender o então interessado barman. Fingi me atentar ao seu trabalho de dosar a bebida para ignorar o sujeito que convenientemente brotava ao meu lado no balcão. Cabelos loiros e longos, sorriso de cafajeste, não era difícil deduzir que se aproximou para tentar alguma coisa. 
— Posso te pagar uma bebida? — ele perguntou, totalmente invadindo meu espaço e sem sequer desejar boa noite. Revirei os olhos. Eu estava certa.
— Non. Merci — Escapou, por um instante esqueci que estava no Brasil -- Quer dizer… Não, obrigada. Já paguei minha própria bebida. 
— Francesa? — ele perguntou, uma sobrancelha arqueada.
Assenti com a cabeça, sem dar muita trela. Bebi um gole do uísque.
— Maneiro. Minha família é italiana. — e, como se a linhagem europeia já fosse vínculo suficiente, ele sentou na banqueta ao meu lado. — Prazer, Marco Antonio. Se não posso te pagar uma bebida, ao menos posso saber seu nome? 
— Penha. 
— Lindo nome. Quase tão lindo quanto a dona. 
Clichê. Muito clichê. O típico canalha flertando com todas as mulheres do bar até que uma caia em sua rede. Eu já devia estar cheia desse tipo — muitas de minhas noites em Paris eram entregues facilmente a esses sujeitos. Pois eu mesma só queria a futilidade, a pouca importância, a perda de tempo e um sexo fácil com alguém que eu nunca mais veria. Tudo para não pensar. Tudo para não lembrar. Tudo para não encarar o outro lado da minha própria cama, ocupado por um olhar perdido e mãos que não mais me tocavam. 
Um gole. Outra dose. E o sorriso de cafajeste ainda ali — insistindo, elogiando, tocando minha mão. Eu me arrependeria de tê-lo beijado. Eu me arrependo de quase tudo.
“Não estou fazendo nada mesmo”, foi o que respondi quando sugeriu irmos para casa. 
Antes que deixasse minhas roupas se perderem por completo, mais uma vez recitei mentalmente a minha prece. S’il vous plaît¹, me faça esquecer. Me faça esquecer. 
 

 

 

1 - S'il vous plaît - por favor


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Notas finais do capítulo

1 - S'il vous plaît - por favor



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