Presos Por Um Olhar escrita por Carol McGarrett


Capítulo 80
Guerra Fria


Notas iniciais do capítulo

E cá vamos nós (um tanto atrasadas, mas ainda é final de semana!) para o próximo capítulo!
Revelações interessantes estão por vi.
Boa leitura!



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E a quinta-feira tinha chegado. Não posso dizer que estava ansiando por este dia, porque não estava. Para falar bem a verdade, eu mal sei como cheguei até aqui sem surtar, seja de nervoso dentro de casa, seja dentro da sala de reunião.

O certo é que, o fatídico dia estava aqui. Se eu tinha conseguido manter uma certa discrição nos últimos dois dias no que diz respeito à minha presença dentro daquele lugar, hoje os holofotes estariam sobre mim. Claro que antes da minha apresentação, teríamos todos os escritórios da Costa Leste do Continente Americano, Nova York, Cidade do Panamá, São Paulo e Buenos Aires. E depois, Los Angeles.

Apesar de o Pacífico ser o maior Oceano da Terra, o que garante a maior extensão em área para ser coberta, ou melhor dizendo, dominada, era apenas um escritório na Costa Oeste. Havia subsidiários, um no Chile, outro na Colômbia e já na Ásia, tínhamos Tóquio e Cingapura, e, caso algo desse muito errado, poderíamos recorrer ao Escritório do Panamá, porém, a verdade era a de que, eram muitos quilômetros de água, terra e ar que eu tinha que tomar conta. Eram quase 150 portos espalhados nesse espaço, afora o número de clientes. Depois de Londres, Los Angeles era, sem sombra de dúvida, o Escritório mais importante.

Estava refletindo sobre isso, sobre a responsabilidade que eu tinha nos meus ombros, sobre os fatores que estão pesando para que o Conselho queira que a Vice Diretoria passe para a Califórnia e, tentando fazer uma previsão mental do que me aguardava durante o dia que nascia, sentada no telhado de casa. Lugar bem incomum, eu sei, porém, eu sempre encontrei um pouco de paz ao olhar para o céu, e é nas alturas que eu consigo meditar e achar as respostas para meus próprios conflitos internos.

Aos poucos o dia, que prometia ser ainda mais frio que o anterior, começa a clarear sobre Londres e a cada segundo que o céu abandonava o véu escuro e começava a se pintar de rosa claro, eu pesava as minhas decisões passadas e futuras.

Um pequeno filme dos últimos doze meses passou pela minha cabeça.

No último ano eu estava ao lado de meu avô, sendo o braço direito dele, analisando os números de cada um dos escritórios, buscando por inconsistências, por algum erro, ou pelas razões que levaram esse ou aquele escritório a ter um bom ou mal desempenho que o anterior. Ou seja, eu era o carrasco. Aquela pessoa que literalmente deduraria os erros, que apontaria os fracassos, sem dó ou piedade. Tudo em nome da empresa.

Já hoje, hoje eu seria aquela que está sob a lente do microscópio, seria julgada, em todos os sentidos, seja no profissional ou no pessoal.

— No fundo, creio que esse era o plano dos dois... – Falei para a manhã que nascia. – Eles sabiam que, se eu sobrevivesse aos primeiros 50 dias em Los Angeles, era bem provável que eu não sobreviveria ao Conselho. – Continuei a falar sozinha.

Ainda pensando na Empresa e no que eu tinha visto, ouvido e presenciado nessa semana, não pude deixar de perceber as semelhanças entre o que acontecia lá dentro com a famigerada Guerra-Fria, o Conflito não armado que perdurou no mundo por um pouco mais de 40 anos.

De um lado o Conselho, do outro a Direção. Cada um tentando se impor perante o restante dos funcionários, cada um achando que as suas ideias eram melhores do que as do inimigo.

— Engraçado que até a mesa de reuniões está separada assim... – Pensei alto.

E não era mentira. Os aliados da Direção estavam à direita, os do Conselho à esquerda, e assim como ocorreu no histórico conflito, os demais, que em nada tinham a ver com essa história, estavam tendo que suportá-la e tentar se encaixar em uma das duas doutrinas.

E, se fosse continuar com as analogias a este período, era fácil de saber quem eu seria.

A minha posição estratégica, o meu sobrenome, o escritório que eu estava dirigindo, tudo isso me tornava Cuba.

A ilha do Golfo do México, que por alguns anos foi o alvo de todos os olhares, seja do Ocidente ou do Oriente. Tudo isso porque Fidel Castro se aliou à URSS e instalou o comunismo na ilha que era um ponto estratégico, próxima aos EUA e, tendo o condão de influenciar toda a América Latina.

E, a minha decisão de me aliar ao Conselho e de aceitar a apoiá-los na moção de troca do local da Vice Diretoria seria como a Crise dos Mísseis[1] que aconteceu em outubro de 1962.

— Quem diria que um dia eu daria às costas ao meu avô! Há um ano eu teria brigado com qualquer que tivesse feito essa oferta a mim, ou se tivessem apenas insinuado essa ideia. – Me deitei no telhado pensando no passado e no presente. – O que 365 dias são capazes de fazer com a mente de uma pessoa!

Algum passarinho começou a cantar na árvore do quintal, anunciando o raiar do dia. Ao longe, já era possível ouvir os vizinhos se levantando. Não tinha mais como adiar o inevitável. Com um suspiro, me sentei no telhado e dei uma boa olhada pelos telhados de Londres, eu tinha sentido falta desta vista!

Um tanto dura por ter ficado praticamente na mesma posição, do lado de fora e no frio, me levantei e devagar fiz meu caminho até à árvore com o intuito de me apoiar em um dos galhos e de lá, descer até o chão.

Se meus cachorros estivessem aqui, tenho certeza de que estariam me esperando, deitados ao lado da árvore, porém, Thor e Loki estavam felizes lá na Fazenda dos Pierces. E eu sabia disso, pois minha sogra tinha me mandado um vídeo dos dois, acompanhados por Stark, correndo na frente dela, enquanto ela cavalgava pela propriedade.

Ainda me esticando, entrei dentro de casa, só para encontrar meu noivo, com uma carranca, me esperando na cozinha.

— Bom dia! – Passei atrás dele e dei um beijo no alto da sua cabeça.

— Você ficou três horas lá em cima, Katerina. – Só por ele ter me chamado pelo meu nome completo, eu sabia de duas coisas: ele não gostou de ser abandonado na cama e estava com um péssimo humor.

Parei na porta da cozinha e o fitei.

— Estava sem sono e precisava pensar.

Ele me encarou, uma sobrancelha levantada, sua expressão era um pouquinho carregada de deboche e eu entendi a mensagem.

— Você estava dormindo e... de todo jeito, eu não tinha como expressar em palavras o que passava por minha cabeça. Muita coisa ao mesmo tempo e que não faziam sentido nem para mim.

Alex bufou e voltou a tomar a xícara de café.

— Não sei como você não congelou lá fora. – Foi o ele me disse.

— DNA finlandês. Às vezes serve para te proteger. – Brinquei.

— Mas no telhado?

Já que Alex tinha começado a falar, desisti de tomar um banho e resolvi por tomar o café da manhã ao seu lado.

— Gosto da vista!

— No escuro? – Perguntou cético.

— Nem vem, eu te contei sobre essa mania!

— Acho meio impossível ver as estrelas aqui em Londres.

— Sim, é praticamente impossível. Mas, mesmo assim, é o céu. E o amanhecer vale a pena. – Pisquei para ele.

Alex só balançou a cabeça em negativa.

— Na próxima vez que eu cismar de fazer isso, te acordo para me acompanhar.

— Desde que seja no verão.

Tive que rir. Essa era a maior diferença entre nós dois. Alex, o apaixonado pelo verão, sol, praia e pelo mar. Já eu, preferia o inverno, a chuva, a neve e o frio, mesmo que cortante.

— Pelo visto nunca vou poder te levar para ver a Aurora Boreal... e olha que você me disse que queria ver. – Falei ao me sentar de frente para ele com minha xícara de chá e algumas torradas. – Ou você se arrependeu desse desejo? – Tombei a cabeça para encará-lo

— Não me desafie, Kat.

— Não estou te desafiando! Só reprogramando uma ideia que tive, já que passar frio não parece ser algo que você tolere muito... – Dei de ombros.

— O que você tinha programado? – Perguntou genuinamente curioso.

— Não vou te dizer, só digo que você perdeu. Era bem interessante.

— Nós vamos! – Ele disse sério e com uma convicção ímpar.

— Vamos? Creio que não. Faz frio. Muito! – Destaquei.

— Onde, na Finlândia?

Dei uma risada.

— Você não vai mesmo! Para que começar a contar? – Agora sim eu o desafiava.

— Quando seria isso? – Ele trocou de tática.

— Janeiro.

— Eu estarei trabalhando no mês que vem.

— Antes de você ir para o leste europeu. Pensei em te levar para esse lugar, mais ou menos como a nossa despedida, já que eu não posso ficar vindo aqui e você vai ficar fora por quase três meses.

— Pode continuar com o plano. Nós vamos!

— Depois não vale dizer que congelou!

Alex me olhou desconfiado, mas como eu já o conhecia, sabia que ele jamais iria desistir dessa viagem.

— Não vou falar. – Ele disse, como se assim fosse me convencer a levá-lo na viagem que tinha planejado.

— Então, aguarde... – Fiz mistério, me levantei da cadeira e comecei a limpar as vasilhas.

— Eu faço isso, Kat. Vai se arrumar. – Ele me impediu. – E não ache que eu não sei que isso é uma tática sua para se distrair que eu sei que é.

— Como você descobriu isso em tão pouco tempo?!

— Esqueceu que eu te conheço de outras vidas?

Dei um passo para trás, ele realmente acreditava nessa ideia!

— Você é maluco!

— Não. Eu não sou. Você só conhece uma pessoa realmente maluca e ela é italiana!

— Tudo bem, você venceu! Vou me arrumar. – Dei um beijo nele e logo em seguida, subi para o quarto.

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Saí de casa bem cedo, cedo demais para falar a verdade, assim, ainda pude fazer hora, mesmo que meus sobrinhos estivessem dentro do carro. Acabei por dar uma voltinha com eles antes de deixá-los na escola.

Não sei se Ian ou Tanya tinham comentado algo com os três, porém, à medida que cada um ia descendo, me desejavam boa sorte, ou simplesmente diziam que tudo ficaria bem.

Até Elena disse que ela tinha certeza absoluta de que eu me sairia muito bem hoje.

— Obrigada, Pequena. – Agradeci-a com um beijo no alto da cabeça antes de que ela entrasse na escola.

E dali até o Escritório foram quinze minutos de solidão e muita reflexão.

Com um suspiro, estacionei o carro. Peguei tudo o que eu ia precisar e quase contando passos, caminhei até o elevador. Do mesmo modo eu segui pelo lobby. Não me importei de que o elevador parou praticamente em cada andar e na hora em que desci no 60º, a primeira pessoa que vi foi Grissom.

— Bom dia, Katerina!

— Bom dia, senhora! – Respondi.

— Tem um grande dia pela frente, afinal, saberemos, enfim, como foram os primeiros 50 dias da sua administração no Pacífico. – Ela ia falando como se tivesse se esquecido do que lera ou me contara, me acompanhando até a Sala de Reuniões.

— Espero agradar ao Conselho e à Direção. – Fui diplomática, afinal, não queria que o restante do pessoal começasse a pensar que eu só me interessava em dinheiro e a puxar o tapete do meu avô.

— Tenho certeza de que vai. E estou curiosa com algo.

— Pois não?

— Com esse novo software que vocês estão desenvolvendo.

Dei uma risadinha nervosa.

— Se eu tivesse, ao menos, trazido um dos técnicos, poderia colocá-lo para falar cada uma das funções e o que se espera que ele entregue, e te garanto, ninguém ficaria dentro da sala de reunião depois da explicação. Vocês iriam taxar a pessoa de maluca!

— Imagino que não. Contudo, muitos ali são obtusos demais para entender as facilidades da tecnologia.

E essa era uma indireta, muito direta, para Cavendish e sua turma.

— Bem, uma hora ou outra, seremos obrigados a ceder à tecnologia, não tem sido assim com as videoconferências, chamadas de vídeo pelo celular e até mesmo fechando negócios por aplicativos de mensagens e somente por e-mails? Antes tínhamos que viajar horas para conhecer o cliente, marcar uma reunião para meses à frente, hoje, um acordo é praticamente fechado no mesmo dia, tudo pela tela do computador. – Comentei.

— Bom saber que você não teme as mudanças que os avanços tecnológicos trazem e irão trazer. – Grissom me respondeu com um sorriso estudado no rosto e tardiamente percebi que toda essa conversa fora mais teste.

Entrei na sala alguns passos atrás da Diretora do Conselho, arrumei as minhas coisas e, como ainda faltavam quase trinta minutos para o início do dia, resolvi que trabalhar seria muito melhor do que ficar pensando nos pormenores da conversa com Camila.

Milena e Amanda não tinham economizado no serviço e me vi separando os documentos em pastas por nível de importância.

Foquei no que tinha que fazer e quase que eu perco o início do dia. Nova York abriu os trabalhos e foram exibidos tanto os ganhos, quanto os problemas.

Era um olho na discussão de NY, de onde eu tirava ideia para implementar em LA, e outro no meu serviço.

Depois veio o Brasil. São Paulo tinha muito o que falar e o que reclamar, afinal, alguém tinha se esquecido de repassar os últimos pedidos o que prejudicou muito o rendimento do escritório no ano fiscal. E esse assunto rendeu.

Como era de se esperar o Conselho quis explicações. Pela cadeira de comando, o Diretor do Escritório manda todas as solicitações para Londres, que é responsável por colocar na pauta da reunião semanal e encaminhar o pedido ou negá-lo, caso em que terá que dar a justificativa.

E, mais uma vez, todos os questionamentos caíram sobre os ombros de Cavendish.

Por que não responderam São Paulo? Por que tais pedidos não foram atendidos no prazo? Se era para negá-los, onde estão as justificativas?

E o Vice-Diretor não sabia o que responder.

Discretamente, observei as reações da sala. O Conselho tinha mais uma prova contra Edward Cavendish, já este, começou a perder apoio, sua incompetência era provada a cada segundo, na visão destes.

Porém, eu sabia que não era incompetência. O Vice-Diretor ocupou este cargo por anos sem que os presentes problemas aparecessem. Ele era mais do que capaz de estar onde estava.

O que o atrapalhou foi a ganância. Afinal, seu bode expiatório fora mandado embora e ele perdeu, temporariamente, o foco no que tinha de fazer aqui, para pensar em um plano B de como continuaria a roubar da empresa sem que ninguém soubesse. Esse foi o erro dele. E foi exatamente isso que chamou a atenção do Conselho.

Cavendish ficou desconfortável com a situação pela primeira vez durante toda a semana. Internamente me perguntei se ele começou a desconfiar de algo. Se ele pressentiu que alguém já sabia.

Seus olhos cinzentos vasculharam o ambiente. Estudaram o Conselho, estudaram cada homem e mulher que poderia votar contra ele. Depois ele começou a procurar por outras pessoas dentre os diretores de escritório. Sabendo que se ele me pegasse encarando-o de volta, as coisas ficariam ainda piores, abaixei meu olhar e fingi interessada nas telas à minha frente, como se eu estivesse estudando para a minha apresentação de logo mais.

Com o fim das explicações e discussões sobre o Escritório do Brasil, foi decretado o intervalo de almoço. A primeira pessoa que vi deixando a sala foi exatamente Cavendish, dessa vez sozinho. E eu juro, eu quis ir atrás dele, pois desconfiava que ele aprontaria algo. Ele vai tentar se safar de algum modo. Vai culpar alguém.

Mas quem? Quando todas as provas estão ligando a ele?

O sobrinho? Mas Lucca não estava mais aqui...

E um alerta se acendeu em minha mente.

Cavendish pareceu saber manipular Mancini muito bem. Soube usá-lo como uma peça de xadrez para desviar o dinheiro e, quando o homem foi demitido, deve ter dado algo em troca do silêncio dele...

Quem era o bode expiatório dele agora? Atrás de quem ele se esconderia?

Alguém aqui dentro ou era aliado, ou estava sendo usado sem saber pelo Vice-Diretor.

 Ah... merda!

Ele não seria capaz de fazer isso? Seria?

Ah, ele seria sim!

Juntei tudo o que eu tinha na minha frente e, praticamente correndo, deixei a sala que já estava quase vazia.

Encontrei quem eu queria no meio do caminho.

— Oi, Mary! Como vai? – Disse à Secretária da Direção.

— Muito bem, Katerina! E Você?

— Bem. Preciso de um favor seu...

— Quer uma sala para revisar as suas coisas antes de entregá-las ao Conselho, não é?

— Exatamente.

— Venha. Reservaram uma sala para isso. Porém, devido a tudo o que está acontecendo, creio que você ficará mais segura aqui. – Ela me guiou até uma sala no fim do corredor. – É a prova de som também.

— Obrigada. – Disse e assim que ela saiu, tranquei-me por dentro.

Conferi se não tinha nada de errado com a sala, procurei por algum ponto ou escuta. Não achei nada.

E então, liguei para Los Angeles. Diretamente para o Pessoal da Pesquisa. Yuna Park me atendeu até assombrada.

— Bom dia, Katerina! Precisa de alguma coisa?

— Bom dia! Sim, eu preciso. Preciso que vocês pesquisem tudo o que encontrarem sobre mim. Pelo globo afora. Principalmente contas em bancos de paraísos fiscais. Acho que tem alguém me usando de laranja.

A Chefe do Setor de Pesquisa deu um pulo para trás e arregalou os olhos.

— Tem certeza?

— Não plena certeza, mas algumas teorias e acontecimentos me levam a crer que isso é possível.

— Mas quem faria algo assim?

— Você leu os relatórios na terça-feira?

— Por cima.

— A mesma pessoa que armou aquilo. Para mim, o Diretor do Escritório do Pacífico tem sido feito de laranja há anos, e quando começam a descobrir a farsa, ele é demitido. Por favor, faça essa pesquisa o mais rápido possível. E busque também pelo nome de Mancini. Creio que ele não é tão culpado quanto parece.

A Chefe da Pesquisa só me respondeu com um aceno de cabeça e logo começou a dar ordens.

Primeiro lacrou todo o andar, ninguém entrava ou saía. Os termos de confidencialidade começaram a ser entregues e dois nomes com os respectivos documentos de identificação foram expostos na tela de projeção, junto com os rostos das pessoas que deveriam ter a vida revirada. Meu estômago deu uma reviravolta desagradável assim que vi meu rosto ali. E algo me disse que essa não era a última vez que eu sentiria essa reação hoje.

Park retornou à chamada de vídeo e só me fez a seguinte pergunta:

— Eu já trabalhei com isso, quando fiz parte do FBI, você realmente vai querer ver o seu dossiê quando estiver pronto?

— Preciso, Park. – Foi o que falei para ela.

A primeira notícia que tive, ainda antes de desligar, foi uma bem desagradável.

Alberto Mancini fora declarado morto, na manhã dessa quinta-feira, horário de Roma. A causa da morte, um tiro na boca.

Meus batimentos cardíacos aumentaram descontroladamente, eu mal respirava agora.

Mancini não se matou.

Ele fora morto.

Porque mortos não se defendem.

Cavendish sabia de tudo. Sabia que o Conselho estava atrás dele. Sabia que as chances de cair eram grandes. E estava começando a aparar as arestas do seu golpe.

Só tinha um pequeno problema: eu descobri a falcatrua em Los Angeles, o Conselho começou a investigar e chegou no culpado.

Só que além de eu ter descoberto tudo, tinha outro ponto: a probabilidade de estar sendo usada como cobaia. Depois de tudo isso, era quase certo, pois Cavendish, como Vice-Diretor, tinha acesso aos documentos de todos os funcionários e poderia abrir contas nos nomes deles, usando como desculpa a Empresa. Em algum lugar do mundo, havia uma conta secreta que me pertencia e nela deveria ter alguns milhões que pertenciam à empresa, o que me tornava culpada do desvio.

Park chamou meu nome.

— Pois não?

— Acabei de te enviar tudo.

— Obrigada.

— O que não é verdade ali? – Ela me perguntou séria.

Li meu histórico escolar, li a minha vida na empresa, a evolução do meu dinheiro que eu apliquei em vários lugares. Vi os meus lucros corporativos e os valores de prêmios que eu ganhei com meus cavalos.

Olhei minuciosamente cada uma das minhas contas bancárias, eu tinha boa memória e sabia banco, agência e número de conta.

Até que encontrei.

A última conta. Em um banco onde nunca entrei, no Qatar. O valor dos depósitos, que, coincidentemente, começaram na data em que Lucca me pediu em casamento, há três anos, já passava de £850.000.000,00.

Park ainda esperava pela minha resposta.

— Qatar. Isso não é meu.

— Você não tem oitocentos e cinquenta milhões de Libras em uma conta no Qatar?

— Não. Não sei que banco é esse e eu nunca fui ao país. Depois de um incidente muito específico há quatro anos, eu não fui mais ao Oriente Médio, e não tenho clientes dessa região.

— Vou acreditar em você... Mas, isso torna Mancini inocente, pois há uma conta no mesmo banco, no nome dele, outro valor, é claro, mas tem muitas semelhanças para não tomá-lo como vítima de um golpe.

— Imaginei isso. – Respondi.

— E o que nós fazemos agora?

— Vocês, nada. Apaguem essas pesquisas de seus computadores e de suas mentes, e voltem ao trabalho regular. – Pedi. – Muito obrigada, novamente.

E a ex agente do FBI me olhou desconfiada e depois e tirar a chamada do viva voz, simplesmente disse:

— Mancini foi morto. E vão atrás de você agora, não é?

— Acho que sim. – Foi a resposta que dei e, antes que ela falasse algo, encerrei a chamada e olhei para porta.

Alguém estava chegando por ali e eu não estava com um bom pressentimento quanto a quem era.

Novamente vi o resultado das pesquisas, me concentrei nos depósitos no Qatar. Coloquei os dois documentos lado a lado na tela do computador e observei as datas.

Eram as mesmas datas. A diferença, a conta que pertencia a Mancini fora aberta três anos antes e contava com um pouco mais de um bilhão de libras esterlinas.

Era muito dinheiro. Muito dinheiro.

Um punho bateu na porta e depois testou a maçaneta.

Fiz o mínimo de barulho possível. E, em um ato quase desesperado, enviei esses dois documentos para as duas únicas pessoas que poderiam me salvar agora.

Minha avó Mina e meu pai, afinal, ela pertenceu ao Conselho, mesmo que anonimamente e meu pai tem uma cadeira lá.

“Acabei de descobrir isso. Cavendish está me usando de laranja para desviar fundos da empresa em meu nome. Fez a mesma coisa com Mancini. Mancini está morto... isso não é coincidência.” – Era a mensagem que mandei e depois fiz o upload em todas as nuvens que tinha acesso.

Enquanto os uploads aconteciam, posicionei meu celular em uma das janelas e comecei a gravar o que acontecia, fiz a mesma coisa com meu tablet, deixando-o à vista, como se ele fosse o único meio de gravação ali.

Quando desliguei completamente o computador, arrombaram a porta.

— Olá, Katerina! – Cavendish me cumprimentou. – Mary me falou que estava aqui...

Ótimo. Justo Mary era a cúmplice dele. E ela me levou para o canto mais afastado do andar, uma sala com revestimento acústico. Não eram só as escadas que eram perigosas nessa empresa. As secretárias também.

Ele entrou na sala, trancou a porta e quebrou a maçaneta por dentro. Assim ninguém, absolutamente ninguém, poderia nos interromper.

— Você tem sido uma pedra no meu sapato há muito tempo... – Ele começou. –  Eu sabia que você iria arruinar os meus planos quando te vi correr dentro dessa empresa e dizer que se sentaria na cadeira do CEO um dia. Então eu tive que bolar um plano para me livrar de você... o problema era como?

Eu permaneci calada e, no meu lugar, deixei que ele falasse.

— Então, seus avós começaram a falar que você tinha talento para dois esportes. Hipismo e patinação... E foi quando eu pensei que estava com sorte, afinal, cavalos são perigosos e você parecia ser um tanto selvagem demais, ao invés de montar cavalos mansos, sempre queria os mais ariscos... foi aí que percebi que para chegar perto de você e da sua paixão por cavalos, eu teria que ir até Cambridgeshire e no Haras dos Spencer. Inviável. Sua mãe nunca foi a minha fã número um e jamais me deixaria ir até lá.

Mentalmente agradeci minha mãe por salvar a minha vida.

— Mas eu ia muito à Finlândia, principalmente no inverno, e um belo dia, Matti perguntou para Mina sobre seus treinos de patinação, e ela sem saber, me passou seu cronograma e falou algo bem interessante. Aquela que poderia ser a herdeira da NT&S não tinha um motorista. Ela ia embora para casa a pé depois dos treinos, mesmo sendo tão nova.

Mesmo sem querer, acabei por ofegar...

— Planejei um atropelamento perfeito. Um dia de muita neve e asfalto congelado... e, ninguém falaria nada. Conheço uma ou outra pessoa que não tem o menor problema em matar crianças... SÓ QUE VOCÊ NÃO MORREU! – Ele deu um tapa na mesa. – Você ficou toda quebrada, em coma, entre a vida e a morte, mas resistiu e não só resistiu como se curou completamente. E agora o meu problema aumentava, pois você não tinha mais nenhuma distração, nenhum hobby que pudesse te tirar do caminho até a cadeira do CEO.

Eu encarava o homem na minha frente, desejando ardentemente que meu pai tivesse me ensinado autodefesa, ou que eu tivesse aprendido alguma arte marcial realmente perigosa, como krav maga ou qualquer outra... e acabei por me lembrar de Alexander e da forma como ele veementemente tentou me convencer a aprender a lutar.

— Então eu deixei o “acidente” esfriar, cair no esquecimento, sua família não quis que abrissem uma investigação, mas a Polícia Finlandesa fez o papel dela muito bem, investigou até onde conseguiram, ou tiveram pistas, e quando o carro foi encontrado queimado e no fundo de um lago, na fronteira entre Finlândia e Rússia, a única conclusão possível, foi que um motorista russo, provavelmente bêbado e sem carteira, foi o culpado pelo atropelamento.... aceitei esse resultado e convenci o seu avô a não mexer mais com isso, afinal, para que ficar fazendo a pobre Katerina se lembrar de algo tão doloroso, não é? – Cavendish olhava para mim cinicamente.

Ele parou por um tempo e bem na minha frente.

— Você não me dava nenhuma oportunidade de me ver livre de você, nunca foi rebelde ou uma adolescente que se metia em confusão, até que uma outra paixão de família começou a falar mais alto. O automobilismo. Só que você nunca estava sozinha. Jamais. Sempre tinha o seu avô ou qualquer outra pessoa por perto e eu não queria efeitos colaterais... tinha que ser só você. Assim, comecei a te aturar aqui dentro, você entrou com doze anos e logo todos gostaram da neta do Fundador da empresa... e foi crescendo aqui, até porque merecia. Porém cada vez que te promoviam, eu sabia que o meu empreendimento paralelo estava arriscado. Confesso que você me fez ter a vontade de aposentar mais cedo e sair com o que eu já tinha conseguido, você quase conseguiu isso. Mas aí, você, em um belo dia de início de verão, saiu falando no telefone sobre ir correr em Spa-Francorchamps, alugar um esportivo e dar voltas no seu circuito favorito da Fórmula 1.

— Você sabotou o carro. – Conclui a história.

— Pois é, e mais uma vez, você não morreu. E eu desisti de tentar me ver livre de você. Sabia que você tinha acabado um relacionamento e, coincidentemente, o seu ex era bem parecido com meu sobrinho Lucca... foi a oportunidade perfeita. Eu daria um emprego para ele, que nunca foi muito chegado em trabalhar, mas quando disse que ele poderia se divertir com você, em todos os sentidos, ele gostou. Até porque, vamos ser francos, você não é de se jogar fora. Tudo o que Lucca tinha que fazer era te conquistar, mas eu precisava da aprovação de Matti, e ele, ganancioso como é, não viu problemas em unir as duas famílias, afinal, concentraria quase todas as ações da S/A na mão de poucas pessoas. Bolamos o plano e apresentamos vocês dois. E você, doce Katerina, caiu como um patinho. Claro que eu tive que insistir com Lucca que você valia o esforço, já que você é um tanto tradicional demais, mas ele até que gostou, quando começou a ter todos os benefícios do relacionamento. E tudo parecia que ia bem, de algum modo eu e Matti entramos em consenso que você não deveria assumir a cadeira da Direção, afinal, de casamento quase certo, você deveria deixar que seu marido assumisse a cadeira e você tomaria conta dos seus filhos. O fato de você amar seus sobrinhos e não se importar de tomar conta de bebês foi uma qualidade que eu não esperava, mas que ajudou muito no plano, é claro. E quando você efetivamente aceitou se casar com Lucca, que só fez o pedido porque seria o Diretor da Empresa, eu efetivamente comecei a usar você para meus planos.

— A conta no Qatar.

— Sabia que você descobriria, ainda mais quando desmascarou Mancini. Entenda Katerina. Se o casamento tivesse acontecido, você ficaria viva. Eu te deixaria viva e casada e infeliz ao lado do meu sobrinho que te trairia com qualquer mulher que passasse na frente dele, tomando conta de seus filhos e ensinando meu sobrinho-neto a ser um CEO de verdade. Acontece que Lucca foi o vagabundo que ele sempre foi e te deu um pé na bunda. E você se tornou meu problema de novo. Até que Mancini começou a cavar lá em Los Angeles e quase achou os desvios de dinheiro, era hora de mandá-lo embora e colocar alguém lá. Alguém que não suportaria ficar longe da família, alguém com histórico de depressão grave que se mataria de trabalhar, literalmente se mataria... – Ele riu.

— Só que eu não me matei.

— Não. Você fez muito pior! Você se apaixonou e arranjou um cão de guarda. Com quase quatro milhões de pessoas em Los Angeles, você tinha que trombar justamente com um rapaz que sabe artes marciais, sabe atirar e que virou seu protetor. E olha que eu mantive os olhos em você desde o início, monitorei seus passos, crente que você daria jeito de se acabar por si mesma, mas logo no seu terceiro dia de trabalho, você já estava dando uma carona para o tal do Alexander.

— E você fez o favor de contaminar a cabeça de meu avô contra ele?

— Não, seu avô já tinha perdido a fé em você há tempos... ele nunca te perdoou pelo casamento fracassado. Afinal, é fácil culpar uma mulher nesses casos, ainda mais você, que sempre fez tudo para agradar seus pais e avós. Para ele, você o fez perder alguns milhões até o fim da vida, e nós dois sabemos que Matti não gosta de perder dinheiro. Assim, era mais fácil desfazer a sua imagem de santa, que ainda perdurava por aqui. Tentei espalhar a imagem e a história de que você nunca foi a santa que pintou ser, se com uma semana em Los Angeles já estava andando de mãos dadas com um ator. Só que você descobriu toda a armação do casamento e jogou na cara de seu avô. Ele perdeu o apoio da família, do Conselho e você ganhou forças, pois agora, você era realmente a vítima.

— Isso deve ter te enfurecido em níveis inimagináveis, não? Afinal, eu sou a peça que você nunca conseguiu controlar, não é mesmo?

— É, você é imprevisível mesmo. Sempre foi. Todas as vezes que eu achei que você iria me deixar em paz, você deu a volta por cima de uma maneira que eu até tenho que admirar. Você é persistente, você é uma guerreira, Katerina. Só que é uma guerreira na guerra errada. Lutando contra o exército errado. e agora você vai pagar por isso. Você foi uma adversária e tanto, tenho que admitir. – Cavendish disse e tirou uma arma de dentro do bolso interno do paletó. – Só que entenda. Ninguém fica entre mim e meu dinheiro. Nem você. Eu vou inventar uma desculpa para você ter me chamado aqui e para tudo o que vai acontecer. E como prova, vou mostrar os milhões em seu nome. No fim, a Santa Katerina, que sempre se deu bem com o pessoal de baixo, que foi tão humilhada e depois foi a protagonista de um filme de romance hollywoodiano, era a mais culpada de todos. – Ele falou e apontou a arma para mim.

Eu não virei a minha cabeça para lugar nenhum, apenas olhei-o nos olhos. O Vice-Diretor pareceu perceber que eu gravara tudo com meu tablet e tirou o aparelho de perto de mim. Colocando-o no chão e depois atirou três vezes na tela. Sem querer me assustei com o barulho da arma e dei um pulo da cadeira.

— Você brigou comigo. Tirou a arma que eu carregava e quando eu tentei por algum juízo na sua cabeça desesperada, a arma disparou e te acertou fatalmente. É assim que você vai morrer. – Ele caminhou para perto de mim, apontando a arma em um ângulo que ia de baixo para cima, para que a bala pudesse entrar pelo meu queixo e acertar o meu cérebro. – Dessa vez você vai efetivamente morrer, Katerina. E eu vou me aposentar com muito dinheiro.

Foi puro instinto, quando ele chegou a distância de um braço de mim, eu me levantei e tentei colocar a maior distância que podia entre nós.

— Não tem onde correr. Não aqui. E nem adianta gritar, ninguém vai te escutar. – Ele me agarrou pelo braço, o mesmo braço que Lucca havia agarrado. – E isso vai ser pela surra que você e seu noivinho deram no meu sobrinho também. – Escutei o cão da arma rodar e fechei meus olhos, meu pensamento voou para minha família, para meus sobrinhos, para minhas amigas, os amigos que fiz em Los Angeles, para a família de meu noivo e, por fim, pensei em Alexander, não era dessa vez que a Katerina e o Alexander teriam o seu final feliz. Meu último pensamento foi: Quando terão?

Em finlandês, acabei por murmurar:

—  Eu vou te achar novamente, Alex. Até que possamos ter o nosso “felizes para sempre”!

E eu escutei um tiro.

 

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Crise_dos_m%C3%ADsseis_de_Cuba#:~:text=Crise%20dos%20m%C3%ADsseis%20de%20Cuba%2C%20tamb%C3%A9m%20conhecido%20como%20a%20Crise,m%C3%ADsseis%20bal%C3%ADsticos%20sovi%C3%A9ticos%20em%20Cuba.


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Notas finais do capítulo

Não me responsabilizo por nada...
Espero que tenham gostado e que não desejem o meu mal por conta desse gancho.
Uma boa semana e até o próximo capítulo!
xoxo



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