S.H.I.E.L.D.: Guerreiros Secretos (Marvel 717 2) escrita por scararmst


Capítulo 9
Justiça


Notas iniciais do capítulo

Oioi genteee cheguei :D
E dessa vez eu não esqueci que tinha que postar hein HSUAHSUAHSUAH
Aqui está, divirtam-se ^^



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Se o carma existia, e Alexis estava começando a acreditar com muita força que sim, então vinha trabalhando a todo vapor para fazer o mutante se arrepender amargamente do dia no qual tinha decidido que seria uma boa ideia se juntar aos Carrascos. E, bem, trabalho cumprido. Como tinha sido idiota. Como podia ter apoiado uma iniciativa que buscava o extermínio de sua própria espécie? O que achou que ia acontecer, que ia escapar sozinho? É claro, na época estava enfurecido o suficiente para considerar que, caso não escapasse, era destino, e não seria assim um desfecho tão ruim. A vontade dele era de dar uma bela voadora na cara do Alexis do passado.

Seus dias tinham se tornado um loop repetitivo do que ele queria que fosse a mesmice de antes de toda a confusão do terrígeno acontecer, mas sempre com algum lembrete cármico de que nada nunca seria como era antes. Tinha voltado a frequentar sua escola, mas sempre de máscara no rosto, e agora a escola inteira sabia que ele era um mutante. Alguns alunos o olhavam com nojo, outros com pena, e outros, em sua maioria mutantes também, tentavam se aproximar dele com alguma esperança distorcida de poderem se tornar amigos ou algo similar. Ele honestamente não sabia qual era pior.

Na rua, no metrô, sempre tinha gente o encarando. Todo mundo sabia que uma pessoa de máscara, por mais normal que parecesse, tinha de ser um mutante com medo de morrer para o gás terrígeno. E para completar, seu santuário, o local onde devia se sentir a salvo, o dojô de seu mestre, estava tomado de inumanos recém-transformados, pessoas que ele guiava e recomendava procurarem a S.H.I.E.L.D., e então eles iam embora, mas sempre havia novos inumanos para chegar.

Tinha cometido um ato terrível em sua vida e só queria escapar do passado, mas este não parava de persegui-lo onde quer que fosse. Estava exausto. Tinha vontade de se trancar em seu quarto, onde podia ficar em paz sem ninguém para julgá-lo, e nunca mais sair de lá. Não falar com ninguém. Não ver ninguém. Tinha posto a estratégia em prática por uma semana, mas foi obrigado pela mãe a voltar para a escola e para o dojô onde tanto tinha implorado para ir. Talvez tivesse mesmo parecendo muito miserável para que sua mãe, antes aterrorizada com a perspectiva do garoto sair na rua com gás tóxico no ar, agora praticamente o obrigasse a fazê-lo para não se afundar debaixo dos cobertores em seu quarto pelo tempo inteiro.

E, como nada era tão ruim que não pudesse ficar pior, ainda tinha Héctor. Alexis não sabia o que tinha feito para o garoto ficar tão insistente com ele; talvez fosse alguma culpa cristã por terem participado do mesmo time genocida, mas estava de saco cheio das mensagens constantes. Não aguentava mais. Em quantas outras línguas precisaria dizer a Héctor que não estava interessado no time de super-vilões dele para que o garoto entendesse? Sim, pois não importava como Héctor a descrevesse: uma Irmandade de Mutantes nunca era um bom sinal.

Naquela noite, estava em seu limite. Tinha tido um dia horroroso, e depois de chegar em casa em silêncio, jantar metade das porções que costumava comer, tomar um banho demorado e se jogar na cama, a última coisa que queria era passar mais raiva. Mas, ali estava, seu próprio stalker virtual:

 

Alexis, é sério. Eu preciso falar com você.”

 

Pelos deuses existentes de qualquer religião do mundo, já tinha aprendido a lição. Jurava que tinha, nunca mais se juntaria a uma equipe de pessoas com poderes mal-intencionadas, mas por favor, por favorzinho, que tirassem Héctor do pé dele. O que mais ia precisar para isso acontecer?

 

Quantas vezes e em quantas línguas eu vou ter que falar que não quero fazer parte do seu timezinho de mutantes de merda?”

 

Héctor começou a digitar a resposta logo em seguida e Alexis bufou, querendo lançar o celular longe e ignorar o que estava acontecendo. Havia uma parte de si, porém, se perguntando se não deveria acabar com essa história de uma vez por todas. Se Héctor queria tanto vê-lo, tudo bem, talvez tudo o que o garoto precisava era ouvir na cara dele que não ia rolar e pronto. Talvez.

 

Pare de ser tão egocêntrico e teimoso. 

Se não quer, não quer, problema seu. Ainda assim quero falar com você.”

 

Alexis rangeu os dentes, irritado. Tudo bem, talvez essa fosse mesmo a única forma de acabar com a palhaçada. Dizendo, na cara dele, que não queria mais o garoto em sua vida.

 

Agora. Antes que eu mude de ideia. Onde?”

 

Trinta minutos, atrás da sua casa.”

 

A reação de Alexis foi de franzir a testa. Como Héctor sabia onde ele morava? E agora que parava para pensar, tinha ficado na dúvida antes sobre quando tinha dado seu telefone ao outro, mas agora tinha certeza: não tinha. De alguma forma, o garoto possuía os meios para conseguir o telefone e o endereço de Alexis sem esforço.

OK. Era melhor descobrir logo o que ele queria.

Alexis esperou os trinta minutos pedidos pelo garoto, colocou sua máscara e saiu pela porta dos fundos. E, assim como anunciado, ali estava Héctor, parado atrás de sua casa e usando a mesma máscara que costumava usar quando estava nos Carrascos; o modelo acabava cobrindo seu rosto inteiro, então com certeza era útil para lidar com um gás tóxico no ar. Héctor estava bem mais alto do que alguns meses atrás, provavelmente tendo passado pelo estirão da adolescência, e um bocado mais forte também. Podia ser resultado de sua mutação evoluindo, ou de um crescimento normal, mas não teria como Alexis saber. E nem tinha interesse.

— Ok. Estou aqui. O que raios você quer?

— Olá — ele comprimentou, acenando. — Ah, você está de máscara. Isso é bom.

— Eu não sou idiota, Héctor. Se foi isso que você veio me falar, então…

— Eu queria te dar um recado, mas não achei seguro fazer pelo celular. O Homem de Gelo precisou entregar as informações sobre o Cameron Hodge pra polícia. Ele entrou em contato comigo sobre isso porque tinha fichas sobre nós dois lá.

Alexis sentiu o sangue gelar. Ele, que já estava quase dando as costas a Héctor, levantou a cabeça, o encarando com o coração acelerado, sentindo-o bater contra sua garganta. Sua ficha tinha ido para a polícia? Ou ao menos estava prestes a ir?

Não. Não, não era para isso acontecer. Era para tudo passar, pelo amor, era para ter um fim! Por que não podia simplesmente acabar? Seria perseguido por isso pelo resto da vida?

— Héctor…

— Você não precisa se preocupar. O chefe da Irmandade conhece uma mutante, e ela fez um favor pra nós. Qualquer traço do nosso envolvimento com os Carrascos foi apagado.

De aterrorizado, Alexis foi para muito aliviado —  e em seguida, confuso. Por que tinham apagado o envolvimento dele dos Carrascos? Uma coisa era querer livrar Héctor, que era parte do time. Mas ele? Não… Coisas boas não vinham de graça. Havia alguma pegadinha, com certeza.

— Eu… te devo uma? — Alexis respondeu, ainda indeciso, sem saber qual era o resultado esperado daquela interação, ou qual seria o custo do favor.

Héctor deu de ombros em resposta. Ao menos, Alexis pensou, já sabia como o garoto tinha conseguido seu telefone e endereço. Devia estar tudo na ficha que ele fez o favor de apagar.

— Eu não sei como as coisas tem sido pra você — o garoto disse, balançando um pouco no lugar, as mãos enfiadas nos bolsos. — Mas… tá complicado. Você não me deve nada, não se preocupe. Depois do que aconteceu, eu tenho procurado uma nova chance pra mim, mesmo o mundo estando tão complicado com essa coisa de terrígeno acontecendo. E eu achei que se eu tinha direito a começar de novo, então você também deveria ter.

Alexis sentiu alguma coisa agarrar em sua garganta. Era um aperto similar a um impulso de choro, de certo, mas para sua sorte, ele era muito bom em conter essas nuances de expressão a ponto de não serem perceptíveis Ainda assim, não conseguiu se impedir de passar por um pesadelo sentimental por dentro.

Era como lidar com Erasmus mais uma vez. Desde o dia no qual tinha manipulado o garoto a ir para a S.H.I.E.L.D., não tinha conseguido ficar em paz consigo mesmo. Esse tipo de coisa nunca tinha sido difícil para Alexis antes, convencer alguém com jeitinho a fazer algo.  E, no entanto… Era culpa de sobrevivente, com certeza, mas não adiantava nada saber o motivo. Não mudava o fato de que o sentimento existia.

Não sabia meios de saber como Erasmus estava, se a S.H.I.E.L.D. tinha sido uma boa ideia ou se no fundo a organização estaria o utilizando como rato de laboratório. E se tivesse sido uma ideia ruim, se tivesse entregado o garoto para um destino terrível, era culpa sua. Erasmus tinha uma aparência assustadora, mas não mais assustadora do que a sensação que Alexis carregava dentro de si quando se lembrava de que a última vez na qual o tinha visto, o rosto dele estava apavorado e à beira de lágrimas. Por sua culpa. E, mesmo naquele momento, não tinha dirigido uma palavra ruim sequer a Alexis.

E agora estava acontecendo de novo. Depois de tudo o que tinha feito e falado para Héctor, depois de dizer a ele para ficar longe repetidas vezes, depois de maltratá-lo, ignorá-lo e fazer tudo o que podia para deixar bem claro o seu desinteresse em qualquer coisa que o garoto pudesse oferecer, Héctor tinha feito o esforço de convencer a Irmandade a incluir Alexis em seus planos de um novo começo. A garantir uma nova chance e um futuro limpo a ele também. De graça. Por pura empatia.

O estômago de Alexis afundou  e ele abaixou a cabeça, afastando-se um pouco. Esse tipo de bondade, de gentileza… Não sabia lidar com isso. Não era acostumado a interagir com amigos que o tratassem assim.

— Não precisava ter feito isso. Eu não tenho nada pra te dar em troca.

— Eu não quero nada em troca — o garoto rebateu. — Era a coisa certa a se fazer. Se você mudar de ideia, tem vaga no time. Não precisa se sentir pressionado a entrar, não foi pra isso que eu limpei sua barra, mas, se quiser… Bem, já falamos sobre isso. Eu vou parar de te importunar, ok? Eu só fiz questão dessa conversa ser em pessoa porque o que eu te falei não é o tipo de coisa legal de se ter salva em conversa de celular. Pode acabar sendo interceptado ou sei lá.

Alexis não poderia dizer que não entendia tal preocupação. Fazia todo o sentido do mundo.

— Até mais, Alexis.

Héctor pulou, e Alexis deixou o queixo cair ao vê-lo saltar alto o bastante para alcançar o segundo andar da escada de incêndio do prédio ao lado. Sim, com certeza a mutação dele vinha evoluindo. Aquilo era um nível de força que não o tinha visto demonstrar ainda.

Alexis pigarreou, sentindo a boca seca e a garganta ainda apertada enquanto via Héctor subindo as escadas de volta para a cidade. E então, porque sabia que não adiantaria dizer nada agora pois Héctor não ouviria, pegou o celular, nervoso e incerto do que digitar, mas sabendo que precisava demonstrar o mínimo de gratidão. Por fim, enviou uma última mensagem.

 

Obrigado.”

[...]

A maior ironia da justiça, na opinião de Niko, era o quão lenta ela se movia quando precisava ser aplicada. Tudo bem, não era novidade nenhuma que sua situação ia demorar para se resolver; estava mais que ciente, Adrian tinha reafirmado a informação, mas ainda assim, ela experimentou algo similar a desgosto e inveja branca ao ver o advogado entregar a Theo todos os documentos necessários para ele processar a própria herança — documentos esses que, até onde Niko sabia, estavam agora enfiados no fundo de uma gaveta do bunker de Theo sem ele ter sequer olhado duas vezes para eles.

Para a garota, porém, havia apenas relatórios de contabilidade avulsos e promessas de respostas serem encontradas no futuro. E, mesmo sabendo que as respostas viriam, ver Theo literalmente enfiar no fundo de uma gaveta o que ela estava lutando tanto para ter era, de fato, irônico.

Nos últimos tempos, não conseguia tirar isso da cabeça, então era uma boa coisa que naquele dia tivesse marcado seu passeio em Nova York. Faria bem esfriar a cabeça, desabafar, ver Cassian depois de tanto tempo… Ela abriu um sorriso meio besta enquanto olhava para o microscópio, e seu olhar desfocado e desatencioso não passou nada despercebido para a mulher sentada em sua frente.

— Já está com a cabeça em Nova York, não é? — Morse perguntou, anotando coisas em um computador e se virando para Niko em seguida. — Estou esperando a contagem do seu genoma.

Ah, certo. A contagem. Ela se virou para o computador ao seu lado, baixando o arquivo e passando por pendrive para Bobbi. As duas vinham sequenciando o DNA de Adrian e Erasmus, e embora Niko soubesse que seria uma tarefa muito complicada, não tinha imaginado o quanto. E demorada também, com certeza. Mesmo com a tecnologia e computadores da S.H.I.E.L.D., e com toda a experiência de Bobbi à disposição, a tarefa chegava próxima de ser quase hercúlea de tão minuciosa.

— Não está fazendo muito sentido, está? — Niko perguntou, encarando o pedaço que tinham sequenciado na tela de Bobbi. — Por que Adrian e Erasmus têm sequenciamentos tão diferentes?

— Estamos só começando — Bobbi respondeu, apontando para um trecho na tela. — Nós temos quarenta e seis cromossomos de cada um para olhar. Às vezes, é apenas uma diferença local. Com o tanto que sabemos sobre inumanos, estou surpresa que os dois não tenham ainda mais diferenças entre si.

Niko suspirou, jogando-se para trás na cadeira e vendo Bobbi organizando os dados da fita de DNA na tela. Por mais divertido que o trabalho fosse, depois de seis horas sentada, estava se cansando dele.

— Você não deveria ficar aqui por tanto tempo — Bobbi comentou, colocando o computador para rodar algum programa e se virando de volta para Niko. — Não tem lição de casa pra fazer? Não pode negligenciar seus estudos pra investir no trabalho, você é muito nova pra isso.

Ah, claro, a lição de casa. Ela, Theo e Erasmus estavam recebendo aulas na base de professores da S.H.I.E.L.D., afinal, ainda estavam em idade escolar. Niko reconhecia o tamanho da sorte que era ter professores do nível da Academia de Inteligência da S.H.I.E.L.D. para lhe dar aulas, uma vez que eles tinham no mínimo um PhD cada, mas sentia falta de uma escola comum de vez em quando.

Sua vida tinha mesmo mudado.

Quem acabou respondendo a pergunta de Bobbi foi Erasmus. O garoto entrou no laboratório naquele momento, muito sorridente e parecendo bastante feliz com a perspectiva de visitar Nova York. Mais uma vez a alegria dele era contagiante. Sequer chegava a achar estranho como quando o tinha conhecido; agora já tinha se acostumado com a presença dele, e a achava muito agradável. Erasmus tinha o espírito leve.

— Tem lição sim, mas a gente pode fazer depois — ele se intrometeu, dando de ombros. — Agora é hora de pegar o jatinho pra cidade. Tá pronta?

Ô, se estava. Ela se levantou de uma vez, pegando a bolsa que tinha deixado pronta ali do lado e a jogando por cima do ombro.

— Tenham juízo vocês dois — Bobbi recomendou, prendendo o cabelo em um coque com o lápis que tinha em mãos. — E, Erasmus, pense no que conversamos com você. Considere sinceramente…

— ...entrar no mar. Eu sei. Eu vou pensar no caso, prometo. Quem sabe se eu achar uma praia remota o bastante pra isso.

— Até mais, Bobbi — Niko se despediu, seguida de um aceno de Erasmus. — Se descobrir algo, me conta quando eu voltar.

— Pode deixar. Bom passeio para vocês.

Ela seguiu Erasmus para fora do laboratório. Não levaram dois segundos para ele começar a tagarelar, dessa vez sobre surf e a saudade que tinha do mar. Como de costume, passar tempo com ele e ouvir suas ladainhas sobre qualquer tópico era como um carinho tranquilo no meio de uma tarde turbulenta. Erasmus tinha um jeito ensolarado. Coisa boa de ver nos dias atuais.

Niko ouviu atentamente as histórias do garoto de seu tempo no Havaí enquanto os dois viajavam de quinjet para Nova York. Ela nunca tinha sido do tipo a se interessar demais por praias, mas tinha de admitir, os olhos de Erasmus brilhavam tanto quando ele falava delas que era capaz de acender o interesse em qualquer um.

— Praias são bons lugares para pousar — Niko comentou, a meio da viagem. — Se quiser ficar em alguma, pode ser um bom meio de caminho pra nós dois.

— Ah, obrigado — o garoto agradeceu com o mesmo sorriso bondoso de antes. — Mas eu quero passar em Chinatown primeiro, então… Não sei, onde vocês quiserem está bom.

— Pode ser em cima do Central Park, então. Dá pra pegar metrô ali perto e facilita pra nós dois — Niko respondeu, ao que Erasmus apenas concordou com um meneio.

Ela se perguntou se ele sabia o quão longe de Chinatown o Central Park ficava. Ele pareceu ter aceitado a sugestão com educação demais, quase como se não quisesse incomodar. Bem, os dois tinham algum dinheiro no bolso e havia metrôs para todos os lados, portanto ela deduziu que não deveria ser um problema. Apenas se recostou em seu assento, esperando o resto da viagem passar.

Fazia meia hora desde a decolagem quando enfim estavam sobrevoando o parque. O quinjet desceu o bastante para Niko e Erasmus poderem saltar da rampa para o chão, e tendo marcado de se encontrarem no mesmo local ao pôr-do-Sol, o garoto logo foi seguindo seu caminho em direção aos metrôs. Para Niko, o caminho foi na direção oposta.

Ela e Cassian tinham combinado de se encontrarem em uma de suas sorveterias preferidas, não muito longe dali. A garota mandou uma mensagem para ele, informando que já estava chegando, e parou na frente do vidro de um carro próximo só para conferir se ainda estava arrumada depois de sair do avião. Usava seu lenço rosa preferido, argolas grandes e douradas nas orelhas e uma maquiagem leve, mas suficientemente cuidada para realçar os cílios grandes que ela tinha e dos quais gostava muito. Niko vestia uma regata preta, calças jeans e tênis brancos muito limpos, além de muitas pulseiras e ornamentos. Ela retocou o gloss, conferiu se o rímel estava no lugar e respirou fundo, seguindo o caminho até a sorveteria.

Sentia como se uma festa inteira estivesse acontecendo em seu estômago, e não no bom sentido. Estava ansiosa. Não via Cassian há muito tempo, e quando tinham se despedido, ela achou genuinamente que não poderia vê-lo de novo tão cedo. Claro, seis meses não eram “tão cedo”, mas conseguiam ser muito antes do que o “anos e anos” ou “nunca mais” antes permeando em sua mente. E, mesmo sentindo que poderia ser muito mais tempo que isso, já tinha sido tempo o suficiente para se perguntar se tudo teria mudado… E o quanto teria.

Ela se pegou acelerando os passos quando viu a fachada da mesma sorveteria de meses atrás no final do quarteirão. Não conseguia ver Cassian na porta, mas não era surpresa: ele devia estar sentado do lado de dentro da varanda, decidindo qual sabor pedir. Era o que ele sempre fazia, e algumas coisas nunca mudavam, não é?

Niko fechou as mãos, quase saltitando os últimos passos até chegar na porta da sorveteria, e então se virou para dentro, imediatamente correndo os olhos pelo local atrás de Cassian.

Ele não estava lá.

Niko franziu a testa. Talvez ele não tivesse chegado ainda, não seria a primeira vez. Ela pegou o celular, procurando se havia alguma mensagem do garoto avisando que se atrasaria, mas não havia nada. E foi enquanto procurava por sinais de vida que ela notou algo muito peculiar no chão. Sua própria sombra estava dando tchauzinho para ela.

— Cassiaaaan… — ela provocou com uma risada divertida, virando-se de costas. E ali estava ele.

Niko sempre tinha achado Cassian atraente; se fosse diferente disso, não estariam namorando, mas não sabia se era por saudade ou se  ele de fato havia ficado ainda mais atraente. Não era nada visual: ele ainda parecia o mesmo, com a pele branca, os cabelos escuros em um topete para cima e os óculos de sol no rosto. Ele usava o mesmo tipo de blusa com uma frase engraçadinha que costumava usar antes, jeans um pouco largos e tênis escuros. Mas havia algum toque, algum detalhe diferente, além da óbvia máscara sobre o rosto pra se proteger do terrígeno. Olhando para o garoto com mais atenção, Niko reparou que as sombras se comportavam de forma diferente sobre seu corpo, na forma como se projetava sob o tecido ou embaixo do queixo, por exemplo. Onde havia sombras, elas pareciam se mover um pouco, muito devagar, projetando-se um pouco em direções distintas. Dava uma aura muito mística a Cassian. Ela gostou disso.

— Me dê outro sumiço desses — ele começou, segurando a mão da garota. — E eu pego um avião pra onde precisar preu poder te ver. Seis meses, Niko, sério?

Antes que a garota pudesse responder, ele a puxou para perto, envolvendo-a num abraço apertado. E embora ela pudesse responder de muitas formas, decidiu que agora só queria abraçar o namorado um pouco, colocar a conversa em dia e aproveitar o momento com ele. Fazia, realmente, tempo demais.

— Você pode tirar isso aí pra comer? — Ela perguntou ao se separaram. Cassian cheirava a colônia pós-banho masculina, e o cheiro a tinha deixado levemente atordoada por um instante. Era muito agradável.

— Devo poder — ele respondeu, dando de ombros e puxando a máscara para fora do rosto. — Os X-Men têm um site que fica rastreando a taxa de terrígeno no ar. Dá para prever com uns cinquenta por cento de certeza onde tem mais risco de explodir alguma coisa. Diz o site deles que aqui está limpo, agora.

Cinquenta por cento não era lá tanta certeza, mas era melhor que nada. Cassian vinha se cuidando sozinho há seis meses, não havia motivo para duvidar de que ele soubesse o que estava fazendo. Niko mordeu o lábio, ansiosa, tentando se conter de fazer perguntas demais. Tinha acabado de chegar, podiam ir com calma.

Ela se aproximou do garoto, deixando um beijo carinhoso sobre os lábios dele. Não tinha imaginado que sentiria tanta saudade de fazer isso, principalmente quando ele abraçou sua cintura, apertando-a para perto daquele jeito meio urso que ele fazia quando se abraçavam. Ele a carregou um pouco, e Niko sentiu os pés deixarem o chão. Quando Cass a colocou no chão de novo e ela separou o beijo devagar, teve cem por cento de certeza de estar com os olhos brilhando. E não se importava com isso.

— Você está tão bonita que é quase um crime — ele disse, segurando a pontinha do lenço rosa dela. — Isso aqui ficou foda demais em você.

Apesar dos motivos de sua mudança de visual não serem puramente estéticos, ela não pôde impedir o rubor de subir às bochechas. Com um sorriso perdido entre a falta de graça e a provocação, ela apertou a mão dele, olhando-o por um instante.

— Sua nova textura de sombra viva também — ela comentou, indicando o pequeno movimento de sombra sob a gola da blusa dele. — Chique.

Cassian abriu um sorriso convencido, empinando o nariz e ajeitando a blusa com uma mesura exagerada, parodiando um lorde. Continuava o mesmo palhaço de sempre.

Os dois pegaram uma mesa dentro da sorveteria e, depois de fazerem seus pedidos, Cassian esticou a mão pela mesa, enlaçando os dedos nos dela em silêncio. Era difícil dizer por trás dos óculos escuros, mas Niko tinha a forte impressão de que o garoto estava pensando em se pronunciar.

Ela decidiu começar. Chega de silêncios e assuntos velados entre eles.

— Como tem sido as coisas pra vocês?

Vocês, ela não precisou especificar, era a Irmandade de Mutantes. Cassian tirou os óculos escuros, mostrando para Niko olhos completamente pretos, por toda a íris e pela esclera, e ela percebeu que as sombras se movimentando sobre o corpo dele não deveriam ser tão involuntárias assim.

— Desse jeito. Só dá pra sair de casa desse jeito agora, em alerta constante. Não é como se adiantasse tentar fingir que eu não sou mutante tendo que colocar uma dessas na cara — ele disse, apontando para a máscara ao seu lado. — Então pelo menos vou usar o que tenho para me defender. Todo mundo já vai ter percebido que eu sou mutante, mesmo.

Defender. Niko olhou para a rua por um instante, pensando nas filmagens de ataques terroristas de terrígeno que tinha visto na base. Como se defender de um gás? Do ar? Completamente do nada, bum, uma bomba explode ao seu lado, e então respirar é a coisa mais perigosa que se pode fazer. Ela não conseguia imaginar a sensação, e mais uma vez sentiu um bolo de culpa começar a se remexer em seu estômago por ter feito parte disso.

Não. Não podia continuar se culpando. Não era sobre culpa, era sobre reparos. Era sobre corrigir seus erros, mas para isso, precisava ficar com a cabeça firme. Precisava estar focada no que tinha de fazer.

— Vocês têm trabalhado nessa questão? — Ela perguntou, embora tivesse uma boa noção da resposta. Cassian balançou a cabeça em negativa, confirmando para ela que era exatamente como tinha imaginado: eles sequer podiam fazer alguma coisa.

— É muito perigoso. Não há nada que possamos fazer por enquanto, e isso está me deixando maluco — ele elaborou. A garçonete chegou com a banana split dele e o milkshake de Niko, e o garoto começou a comer enquanto falava. — Foi a coisa mais insana e irresponsável da minha vida ir com a Irmandade naquela base de Purificadores. A gente poderia ter morrido. Tudo bem, foi uma chance em um milhão de pegar o desgraçado do Hodge, e pegamos, mas… Um garoto morreu. E poderia ter sido um de nós.

Sim. Santino. Niko bebeu um longo gole de seu milkshake, sentindo a imagem de Santino martelar contra o fundo de sua mente. Logo ele, que tinha acabado de voltar para os pais. Logo ele que tinha colocado a vida no lugar. Justiça. Irônica.

— Então vocês estão esperando a S.H.I.E.L.D. resolver?

— Eu não sei quanto a resolver. Estamos esperando algum avanço na situação. E aí, dependendo do que acontecer… Bem, não dá pra saber muita coisa por agora de qualquer forma. Tem coisas as quais eu gostaria muito de saber. Eventualmente teremos de trabalhar nisso.

— Que coisas?

— O tipo de coisa que eu prefiro não conversar em uma sorveteria — ele respondeu, apenas, abrindo um sorriso ladino.

É claro. Niko conseguia entender isso.

— E você? — Ele perguntou, cutucando o sorvete congelado demais enquanto tentava pegar mais uma colherada da sobremesa.

— Eu já respondi, né.

Cassian ergueu o rosto do sorvete para olhar para ela, parecendo não entender o que a garota tinha falado. Alguns segundos se passaram enquanto ele calculava informações na cabeça, e por fim o garoto se inclinou sobre a banana split, sussurrando para a namorada.

— Espera. Aquele negócio de agente secreto era sério?

A resposta de Niko foi tomar um gole do milkshake.

— Fala sério! — O garoto exclamou se recostando para trás na cadeira. — S.H.I.E.L.D.?

Niko continuou bebendo, mas levantou uma sobrancelha, se divertindo visivelmente com a situação. Não podia falar nada, mas não era sua culpa se Cassian descobrisse a verdade por causa de uma piadinha, não é?

— Você está na coisa toda do terrígeno?

Um sorriso involuntário apareceu nos lábios dela enquanto bebia o milkshake, e Cassian soltou um suspiro surpreso.

— Ok, faz sentido. Foram os Purificadores, você estava lá… Entendi. Sutil. Tem alguma coisa que possa me contar?

Dessa vez, ela soltou o milkshake.

— Não sei do que está falando, Cass — ela comentou, esforçando-se muito para parecer séria, mas sabendo que o namorado sabia exatamente quando ela estava falando a verdade e quando não estava. — Tem algumas coisas que eu prefiro não conversar em uma sorveteria.

 

[...]

O sentimento de nostalgia que Erasmus experimentou ao se ver de frente para o dojô de Han foi de longe uma das coisas mais estranhas de sua vida. Não era algo forte e avassalador, como sua casa seria, mas ainda assim era alguma coisa. Depois de ter se juntado à S.H.I.E.L.D. por conselho de Han e Alexis, e tendo visto o quão benéfico se provou ser, sentia-se grato. E, estando grato, precisava agradecer.

Ele empurrou a porta devagar, entrando para dentro do dojô e olhando em volta. Estava cheio. Han conversava com uma garotinha de pele muito grossa e cor-de-rosa, ajudando-a a controlar a própria respiração. Vários outros alunos faziam exercícios de autocontrole e, em um canto mais afastado, Alexis lutava contra um manequim.

Erasmus sabia que Alexis era um lutador exímio, mas havia uma diferença entre saber e, de fato, testemunhar. Os movimentos do garoto eram tão rápidos que Erasmus mal conseguia acompanhar alguns com os olhos, e eram também estupidamente leves. Ele se perguntou se Alexis usava sua mutação de aerocinese na luta, pois apenas isso explicaria movimentos tão fluidos assim. Era como ver uma pena bater com a força de um aríete.

Ele piscou algumas vezes e pigarreou, percebendo que estava encarando o outro completamente hipnotizado. Acabou chamando a atenção de Han, e o homem se levantou de perto da garotinha, abrindo um enorme sorriso e caminhando até o recém-chegado.

— Erasmus! — Exclamou, e Erasmus o cumprimentou com uma reverência por força do hábito. — Fiquei muito contente com suas ligações. Que bom saber que está tudo dando certo na S.H.I.E.L.D.!

— Mais que certo — o garoto respondeu, abrindo um sorriso largo. Ver Han feliz daquele jeito o deixava feliz também. — Já estão fazendo todo tipo de testes. Acabaram me convencendo de que entrar na água é uma boa ideia, então eu vim pra cidade experimentar o mar um pouquinho. E aproveitar para te agradecer, claro.

— Não foi nada de mais — ele disse com o sorriso simpático no rosto. — Ah, você pretende levar companhia nesse passeio?

Companhia? Bem, Niko devia estar ocupada em algum lugar com o namorado dela, então, não. Erasmus negou com a cabeça, perguntando-se qual seria o propósito da pergunta, quando Han indicou Alexis com a cabeça.

— Alexis tem estado meio perturbado. Imagino se ele gostaria de dar um passeio na praia com você.

Alexis? Oh, isso seria uma excelente ideia! Não tinha chegado a agradecer ao garoto pelo conselho de procurar a S.H.I.E.L.D… Se pudesse passar um dia com ele, certamente seria muito divertido.

— É uma ótima ideia! Ei, Alexis! — Erasmus chamou, acenando.

Alexis pousou no chão depois de um chute aéreo, virando-se para a porta. A expressão do mutante ao vê-lo ali estava branca, impossível de se ler, e Erasmus não pôde deixar de imaginar o que estaria se passando na cabeça dele. Teria interrompido alguma rotina importante? Droga. Sentiu-se culpado.

— Desculpa, não queria atrapalhar — ele se adiantou, cabisbaixo. — Acho que eu vou sozinho mesmo, Han, e…

— Erasmus — Alexis cumprimentou, aproximando-se com uma toalha jogada sobre o ombro. — Não esperava te ver aqui.

Alexis devia estar treinando há um bom tempo. Os cabelos estavam encharcados de suor, grudando na testa dele, e o garoto tinha dispensado a camisa para praticar. Erasmus sentiu um calor subir até as bochechas, mas não soube reagir. Torceu para sua pele grossa e cinza não deixar transparecer.

— A-ah… É… Eu vim agradecer. Você tinha razão… A S.H.I.E.L.D. pôde mesmo me ajudar de muitas formas.

Han escolheu esse momento para deixar os dois conversando e voltar para a garotinha cor-de-rosa, mas Erasmus quase o chamou de volta. Estar sozinho com Alexis agora, por algum motivo, o intimidava.

— Ajudou? — Ele perguntou, parecendo um pouco surpreso, e Erasmus franziu a testa, confuso. Por que ele estava surpreso? O conselho tinha sido dele mesmo! — Ah, é claro que ajudou. Bem, isso é bom.

Houve silêncio. Alexis ficou parado, encarando Erasmus como se esperasse o garoto dizer mais alguma coisa. De repente, o inumano sentiu a boca seca. Não sabia dizer por quê.

— É, pois é… Bom, eu estou indo para a praia, pegar algumas ondas. Você… Você quer vir comigo?

Péssima ideia. Alexis devia estar ocupado, não ia parar a rotina séria de treino dele para acompanhar Erasmus em um passeio randômico até a praia. Por alguns segundos, Erasmus se sentiu a pessoa mais estúpida do planeta por sequer ter perguntado, e pensou se dava tempo de voltar atrás.

Não dava.

— Ok — Alexis respondeu. — Espere aqui um instante, vou tomar uma ducha e trocar de roupa.

Ele ia? Erasmus sentiu o queixo cair e não soube como responder. Acabou não falando nada enquanto observou Alexis sumir para dentro dos chuveiros do dojô.

Tudo bem, teria companhia na praia. O lado bom era que se algo desse errado ao entrar na água, não estaria sozinho. O lado ruim… era que se algo desse errado ao entrar na água, não estaria sozinho. De repente, se sentiu muito ansioso. O coração de Erasmus disparou, uma mistura louca de ansiedade com medo, uma sensação quase inevitável de que algo daria errado. Devia ser só paranoia sua, não é? Com certeza era só paranoia. Não havia motivo para imaginar o pior cenário. Bobbi e Niko tinham garantido que era seguro entrar no mar. Então era. Não causaria um maremoto e nem viraria um tubarão completo. Estava tudo bem.

Alexis não demorou para voltar, usando uma regata branca e bermuda que devia ser cáqui, embora não pudesse dizer com certeza uma vez que não enxergava cores. Ao menos era uma roupa boa para praia; não queria acabar levando ele para lá de jeans e blusa social. O mutante pegou uma máscara no bolso, colocando-a no rosto, e parou à frente de Erasmus.

— Lidere o caminho — disse, apontando para fora.

Erasmus se virou, despedindo-se de Han com um aceno um pouco tímido, e a dupla saiu.

Alexis era, majoritariamente, uma companhia silenciosa. Ele não falou pelo caminho a não ser para responder a um ou outro comentário de Erasmus sobre a rua, sobre as luzes ou sobre qualquer outra coisa. Volta e meia alguém os encarava de forma muito agressiva, e Erasmus não devia estar surpreso, uma vez que parecia um bicho e a máscara hospitalar no rosto de Alexis era um sinal alto de gene-X, mas... Ainda assim, o incomodava. Ele abaixou a cabeça, tentando se esconder enquanto os dois caminhavam.

O pior foi ao passarem na frente de uma cafeteria. O garçom, saindo do local carregando uma bandeja com duas xícaras de café, parou de andar para olhar os dois e torceu o rosto em uma expressão de desgosto palpável. Erasmus sentiu que queria chorar. Não bastasse se parecer com aquilo, não bastasse ter de passar o resto da vida como uma aberração, ainda tinha que lidar com mais essa? As pessoas não podiam simplesmente deixá-lo em paz?

— Bando de aberrações em Nova York… — O garçom murmurou, mas deu para ouvir muito bem, estando os dois passando na frente do local quando ele falou. Sim, o homem certamente tinha falado de propósito. Para magoá-los. — Sempre foi um lugar esquisito, mas só tá piorando…

Alexis parou de andar.

Erasmus deu mais uns passos antes de se virar para trás e se deparar com Alexis parado. O garoto estava com as mãos enfiadas dentro dos bolsos da bermuda e parecia tranquilo, mas Erasmus viu os olhos completamente brancos dele, e quando os cabelos dele começaram a se mover um pouco, como se estivesse ventando ao redor dele. Mas não ventava em Nova York naquele dia.

De repente, uma lufada violenta de vento passou pelo café, forte o bastante para jogar o garçom dois passos para trás, levar a bandeja dele voando, derrubar uma xícara de café em uma das clientes e jogar a outra no chão. Erasmus deixou o queixo cair pela segunda vez, e viu um sorriso muito espertinho surgir na boca de Alexis.

— Pronto — o mutante comentou, seguindo em frente e empurrando Erasmus adiante pelas costas. — Vamos andando.

— Você… Você…

— Bah, foi só um ventinho — ele disse, soltando Erasmus quando os dois começaram a andar livremente pelo passeio. — Tem gente que é cruel pelo prazer de ser. Acredite, eu sei. Conheci gente assim. De perto.

— Oh. O que aconteceu?

— Ela morreu.

Oh. Erasmus pigarreou, decidindo não perguntar mais detalhes. Deu para sentir no tom de fala de Alexis que ele não tinha sido responsável pelo assassinato, mas ficou claro que tinha sido um assassinato ainda assim. Erasmus colocou as mãos para trás das costas e levantou a cabeça, seguindo o caminho até a praia em silêncio, mas ao menos de cabeça erguida.

Chegar no local, pisar na areia, pegar uma prancha de surf… Todo esse processo foi muito familiar para Erasmus, mas ao mesmo tempo, muito diferente. Tinha escolhido uma das praias mais vazias, pois não queria ser visto. O cheiro de sal da praia era mais forte, já tinha se acostumado a isso no tempo que tinha passado nela. O que não conseguia se acostumar era com sua visão. Não ver cores era incômodo e triste na maior parte do tempo, mas particularmente triste quando não podia ver o azul da cor do mar. Ele tentou não demonstrar tristeza nenhuma, mas não sabia o quão bem sucedido estava sendo. Pegou sua prancha e tirou a camisa que usava, deixando-a em sua mochila, e caminhou até a beira da água com Alexis o seguindo de perto.

Então parou.

— O que foi? — Alexis perguntou.

Erasmus não sabia responder. Sentia a água do mar subindo e voltando contra seus pés, e a sensação era a mesma de sempre, mas não conseguia deixar de sentir que era diferente. E se subisse na prancha e a sensação não fosse a mesma? E se isso tivesse perdido o brilho para si, assim como a cor do mar tinha?

— Eu não acho que consigo — ele dise, agarrando a prancha e encarando a imensidão cinza à sua frente. — Não dá.

— Não diga bobagens, você estava tão animado quando chegou no dojô. É só subir no trequinho aí.

— Não… Não dá…

Erasmus soltou a prancha e se sentou na areia molhada. Seus olhos começaram a lacrimejar, e ele sequer podia enxugar com os dedos cheios de areia e sal como estavam. Não queria passar por isso. Não queria subir na prancha e descobrir que tinha perdido o último prazer latente em sua vida. Não podia.

Alexis se sentou ao seu lado com um suspiro. É claro, devia estar se arrependendo do passeio. Quem queria passar tempo com alguém problemático e chorão como ele? Era a segunda vez que se juntava com o garoto para fazer alguma coisa, e era a segunda vez que tinha vontade de chorar.

— Não estou entendendo qual é o problema — Alexis comentou, deixando a pergunta indireta pairar no ar.

É claro que não estava. E Erasmus sequer sabia se conseguiria explicar. Ele apoiou a testa nas mãos, sentindo a água do mar subir e voltar repetidamente, molhando seus pés e depois deixando a areia de novo. Sentia-se um pouco daquela forma também. Agindo em círculos. Em indecisão.

— Eu… Eu amo surf. É o que eu mais gosto de fazer.

— Excelente — Alexis respondeu depois de um breve instante de silêncio. — Pega seu trequinho e vai pra água.

— Eu amava o mar também! E ainda amo, mas… Eu não sei, está tão diferente… É cinza, agora. Eu não vejo mais as cores. A sensação… é melancólica. Eu não quero subir na prancha e ver que não é a mesma coisa. Ou pior, e se algo der errado? E se as agentes do laboratório estiverem erradas e eu causar uma tragédia? Ou acontecer uma tragédia comigo? Eu não posso… Não posso entrar, não posso fazer isso, não dá…

Alexis bufou. Erasmus decidiu que já bastava disso tudo, que não devia ter deixado a base. Que precisava voltar e esquecer aquele devaneio louco. Podia passar o resto do dia e da tarde sentado sozinho no Central Park esperando pelo avião, não tinha problema, só não podia continuar ali…

Para seu desespero, Alexis segurou seu pulso e o puxou de volta para se sentar na areia.

— Ok. Eu vim com você porque preciso te falar uma coisa — ele disse encarando o mar, sem olhar para Erasmus. Parecia muito sério, e havia algo em seu tom de voz que deixou Erasmus um tanto receoso. O que quer que Alexis fosse falar não era coisa boa, e não sabia se queria ouvir. Mas era tarde. Não tinha escolha. — Eu menti pra você. Toda aquela coisa de preocupação e genética e S.H.I.E.L.D., eu só estava tentando te mandar embora do dojô.

Mandá-lo embora? Por quê? Erasmus franziu a testa, afastando-se um pouco involuntariamente. Conseguia imaginar porquê. Que motivos Alexis teria para querer ele por perto? Alguém feio como a peste, e que ainda poderia causar problemas com os encanamentos do local! Não devia ter se magoado ao ouvir a confissão, já sabia como era indesejado. Mas, mesmo assim, doeu.

— Não por sua causa — Alexis continuou, mas Erasmus não comprou a informação. Não de início. — Eu não quero nenhum inumano lá. 

Ah, então não era que Alexis o odiasse, ele só era racista! Que… bom?

— Acho melhor eu ir…

— Não acabei — o garoto cortou. — Quando essa coisa toda aconteceu, essa coisa do terrígeno… Eu estava lá, Erasmus. Exatamente lá, no meio de tudo. No olho do furacão. E, ao menos no começo, do lado errado da rua, se você entende o que quero dizer.

No lado errado da… Mas… Mas isso iria querer dizer que ele estava do lado de quem tinha soltado o terrígeno. Mas ele era mutante, por que faria uma coisa dessas?

— Eu… Não entendo…

— É, eu imagino que não. Eventualmente, quando um grupo de adolescentes foi prender o Cameron Hodge, você deve ter visto na televisão, eu estava lá. E tudo o que eu queria era que isso acabasse logo. Eu cometi meus erros, e pensei, tudo bem. Ao menos agora acabou, não é? Eu posso largar isso tudo e continuar minha vida. Mas nossos erros não abandonam a gente. E eu descobri isso quando vi que Han abriu as portas do dojô para os inumanos entrarem.

Oh. Era… pessoal. Erasmus sentiu o corpo relaxar devagar enquanto se acomodava na areia de novo. Não estava esperando essa versão dos eventos. Embora sentisse que faltava muitos detalhes para entender de fato o que tinha acontecido, conseguia ter uma boa abstração. Alexis tinha cometido um erro severo, e depois de fazer o que julgou necessário para corrigi-lo, queria deixar tudo para trás.

Erasmus olhou para o braço, para a pele coberta de escamas, e sentiu um onda curta e passageira de raiva passar pelo seu corpo. Entendia o que Alexis queria dizer. Entendia o significado da palavra arrependimento melhor do que muita gente muito mais velha que ele poderia entender.

— Se eu pudesse fazer alguma coisa… Qualquer coisa para isso nunca ter acontecido — comentou, indicando a própria pele. — Eu faria. E também ia querer me afastar de eventos que me lembrassem disso. Mas… No fim das contas, eu acho que não podemos fugir de nossos erros. Talvez essa seja a definição de justiça. Corrigir problemas, fazer acertos, tudo isso pode melhorar uma situação, mas não tem como deixar realmente o passado para trás, não é? Um pedaço sempre acaba seguindo a gente.

Alexis olhou para Erasmus por um instante, e este apoiou o queixo no joelho, encarando o mar à sua frente. Mesmo se voltasse para casa, mesmo se pudesse voltar para sua família e seguir sua vida como era antes, não poderia desfazer a terrigênese. Não poderia deixar essa parte de sua vida para trás. Nunca.

O mutante pareceu perceber a forma como Erasmus abaixou o olhar para o próprio braço em seguida.

— Como isso funciona, afinal? — Alexis perguntou, indicando a pele dele. — A coisa da terrigênese?

— Ah. É um gás mutagênico. Você entra em contato com ele e ele ativa umas mutações se o seu DNA for predisposto para isso. Todo inumano é, até onde eu sei. Existem inumanos híbridos com humanos no mundo, linhagens distantes, por isso algumas pessoas daqui se transformaram também. E pra quem tem o gene-X, acaba sendo uma doença bem ruim.

— Entendi — Alexis murmurou, ainda encarando distraído o braço de Erasmus. — E… é permanente? Do jeito que sair é isso mesmo? Ou dá pra voltar atrás, ou sei lá, fazer de novo?

Fazer de novo? Erasmus franziu a testa como se Alexis tivesse oferecido dar um choque nele, e o garoto precisou se lembrar de que Alexis não era de Attilan e não teria como saber dessas coisas.

— Não, não dá pra fazer de novo e nem voltar atrás. A maioria dos inumanos se tomar fumaça de terrígeno na cara de novo pode acabar virando um bicho estranho, na maior parte das vezes, acabam morrendo. É uma ideia muito ruim. Ao menos, é assim para nós, de Attilan. Não sei se funciona do mesmo jeito pros híbridos. Posso ter ficado feio e esquisito, mas pelo menos estou vivo e tenho minha consciência no lugar.

E foi só ao pronunciar essas últimas palavras que Erasmus se deu conta do que tinha acabado de dizer. Estava vivo. Estava são. Sua vida tinha mudado, e quem ele era também, mas ainda era sua vida. E ele era a única pessoa se impedindo de aproveitá-la.

Ele se levantou num salto, pegando a prancha de surf do chão. Alexis se levantou também, e embora fosse difícil dizer pela máscara no rosto dele, Erasmus podia jurar que o mutante tinha aberto um sorriso pequeno.

— Vai entrar? — Alexis perguntou.

— Vou. Agora.

E rápido, antes que mudasse de ideia. Erasmus conferiu se a correia da prancha estava bem presa em seu tornozelo, segurou-a na frente do corpo e correu.

Entrou na água de uma vez. Assim como tinha constatado minutos antes com seu pé, a sensação era tão agradável quanto antes, mas só agora remando em cima da prancha ele percebeu o que Bobbi tinha comentado sobre suas escamas. A água deslizava pelo seu corpo quase como se fosse manteiga, o atrito tão reduzido que Erasmus se assustou com a velocidade com a qual avançou pelas águas.

Seu coração acelerou, e ele sentia uma descarga de adrenalina abraçá-lo. Uma onda mixuruca estava vindo, e o garoto mergulhou sob ela como costumava fazer, esperando uma onda boa.

Foi uma sensação incrível. Ao entrar por completo debaixo d’água, Erasmus sentiu as brânquias em seu pescoço se abrirem, e descobriu que estava respirando. Ou qualquer sinônimo disso que se fizesse debaixo d’água. 

Ele olhou em volta, surpreso em ver que seus olhos não estavam nada incomodados por estarem abertos enquanto submerso. Não havia muito para ver em uma praia tão perto da cidade, não era como se houvesse peixes passando para todo o lado, mas…

— Minha nossa… — Ele murmurou, ou tentou, uma vez que só o que fez foi soltar bolhas na água. Erasmus riu, e de repente sentiu a correia puxando seu pé de leve, fazendo-o perceber que ainda estava tentando surfar.

Ele nadou para a superfície, saltando da água como um golfinho faria graças à velocidade da propulsão. Não estava esperando por essa.

— Aaaaaaaaaah! Nãaao, NÃO, ESPERAAAA...

Erasmus caiu na água de novo de barriga. Uma onda gigante veio e o engoliu, cuspindo-o na areia da praia.

Ok. Isso não tinha saído como planejado. Ele se levantou, resmungando e tirando a areia do corpo. A prancha, ainda presa ao seu tornozelo, tinha se atolado na areia ao seu lado direito, e no esquerdo, ele deu de cara com Alexis. Gargalhando.

— Do que raios está achando graça?

— Tá brincando? O mar te ejetou igual rolha de garrafa de champanhe, foi hilário!

Hilário? Erasmus, que ainda estava impressionado com como seu corpo tinha se comportado diferente na água, não pôde se impedir de rir. Bem, que fazer, Alexis tinha a risada contagiante.

Não era dessa vez que tinha conseguido surfar, e a julgar pelo nível da falha, era provável que não fosse conseguir tão cedo. Ao menos não antes de entender e dominar como seu corpo se comportava no mar.

Ele soltou a correia da prancha do tornozelo, caminhando de volta para a água.

— Vai ficar aí ou vai entrar? — Perguntou, indicando o mar com a cabeça.

Alexis sorriu. Erasmus o viu tirar a máscara, os sapatos e a camisa e passar correndo ao seu lado igual a um foguete.

Ah, era assim então, apostando corrida? Certo. Se tinha uma coisa que tinha aprendido era que dificilmente alguém conseguiria nadar mais rápido que ele.


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Notas finais do capítulo

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Além dessa, tenho vagas também para uma interativa original sobre revoltas civis. Acesse aqui:
https://www.spiritfanfiction.com/historia/a-rosa-do-tempo--interativa-19350882/

Considere também dar uma olhada nas minhas outras histórias? :D Eu tenho coisas para vários gostos ^^

Leia a duologia Hunters! Comece aqui: https://fanfiction.com.br/historia/771022/Hunters_Hunters_1/

Leia minha original de fantasia urbana, Carmim! https://fanfiction.com.br/historia/787245/Carmim/

Leia minha fanfic de Harry Potter! https://fanfiction.com.br/historia/781763/Marcas_de_Guerra_Historias_de_Bruxos_1/
Fanfic 2 atualizando atualmente: https://fanfiction.com.br/historia/799894/Amargos_Recomecos_Historias_de_Bruxos_2/



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