visão escrita por Lucy


Capítulo 1
único




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Kenma nunca conseguiu ver muito além da linha do horizonte.

Para começar, essa linha não era tão distante como os jogos e as músicas faziam parecer — o mundo dele era relativamente simples. Tudo o que tinha ao seu redor eram seus pais, três bichos de pelúcia, sua avó, de vez em quando, e o Playstation no canto do seu quarto. Para o pequeno Kenma, era mais do que o suficiente.

Na época, ele não foi capaz de notar isso, mas sua vida começou a mudar no momento em que o pai de Kuroo bateu na porta da sua casa, indo se apresentar e trazendo o filho junto. Primeiro foram as tardes gastas em jogos de luta, depois a pergunta, tão casual — “tem algo que você queira jogar?”. A grama amassada de tanto ser acertada pela bola, o barulho de pares de tênis contra o chão da quadra, o barulho do DVD lendo o mesmo disco pela enésima vez. A ideia de ser um estrategista que controlava todos os outros jogadores. Kuroo entrou em sua vida, segurou a mão dele, e as experiências de um automaticamente também eram do outro. 

No entanto, crescer juntos não foi algo tão simples quanto as histórias fazem parecer. Kuroo era o único amigo que tinha, e os amigos dele não eram muito fãs de Kenma, ou de quanto tempo eles passavam juntos. Não que ele também curtisse muito a companhia do grupinho. Eles falavam muito e num volume insuportável, mais do que Kenma conseguia aguentar. Sempre foi introvertido, e isso não era segredo para ninguém, mas foi mais ou menos nessa época que a ideia de levantar durante a aula para falar algo começou a lhe dar calafrios. Almoçar no jardim, longe do ruído dos colegas, parecia uma opção reconfortante. Quando as aulas acabavam, corria de volta para casa — ou melhor, andava no ritmo mais rápido que suas pernas lhe permitiam — e ficava em seu quarto até que Kuroo aparecesse, perguntando o que houve (depois de certo tempo, ele parou de perguntar. Só entrava e se sentava ao lado dele). 

As coisas só foram piorando com o passar dos anos, com cada mudança do seu corpo, a cada vez que sua voz saia mais fina, por mais que tentasse controlar. Tinha medo de que perdesse sua amizade com Kuroo se contasse a verdade, tinha medo de que seus pais desconsiderassem suas confissões. E nisso, se fechava mais para o mundo lá fora. A linha do horizonte ficava turva, borrada, incompreensível. De certo modo, não era algo tão ruim. Aos onze anos, Kenma queria que nada mais acontecesse. Que o tempo parasse ali, e que todo mundo se esquecesse dele. Assim, ele nunca teria que dar satisfação de nada a ninguém; nunca mais precisaria confrontar ou ser confrontado.

Nada funcionou do jeito que ele queria. Kuroo insistiu em tentar quebrar suas barreiras, desfazer as runas de proteção que Kenma colocou ao redor de si. Sua mãe deixava bilhetinhos pela casa, tentando conjurar algo dentro do filho. Seu pai, apesar de tão atarefado, sempre sentava ao lado dele depois do jantar e o impedia de voltar correndo para o castelo que chamava de quarto. Era como se seu amigo e seus pais tivessem entrado numa missão juntos, e o objetivo principal era entender Kenma. Não que eles fossem jamais conseguir.

Mas era fato que ele subestimou a paciência do grupo.

Depois de tantas tardes silenciosas assistindo partidas de vôlei com Kuroo, de tantos almoços e jantares com sua mãe lhe fazendo carinho nos cabelos antes de servir seu prato, de tantos domingos jogando com seu pai, Kenma veio abaixo numa manhã de Janeiro. Era uma como tantas outras durante as férias de inverno. Seu pai já tinha saído para trabalhar quando acordou, sua mãe estava limpando a casa, e seu vizinho já estava de volta do treino matinal do time do colégio. No caminho de volta, bateu na casa dos Kozume para mostrar ao amigo seu uniforme novo. 

Olhando em retrospecto, era quase engraçado para Kenma que a pergunta que finalmente o fez se abrir foi “já fez o dever de casa?”. 

A resposta era “não”, porque ele não queria voltar pra escola, ainda mais que Kuroo não estava mais lá. Não queria ficar sozinho, porque sabia que todos o viam como esquisito, e não queria lidar com o olhar deles o seguindo enquanto fugia da sala de aula. Não queria ter que trocar de roupa com as outras meninas antes da educação física, porque se sentia um intruso, e não queria ir pro fundamental II porque não queria usar um uniforme que pedia que usasse saias. Se ele parasse de estudar, ele não precisaria passar por nada disso!

Sua mãe conseguiu ouvir tudo do andar de baixo, pelo visto, porque quando Kenma voltou a si, ela já estava o abraçando. As lágrimas dela se misturavam à dele, e quando ele conseguiu responder o que ela dizia, uma leve satisfação tomou conta do seu coração — toda a gritaria tinha lhe deixado rouco. Kuroo assistia a cena, retraído, porém visivelmente tocado. Quando conseguiu chegar perto do amigo novamente, só sussurrou:

— Por que você não vem pro meu colégio? É um pouco mais longe… — Fungou. — E o time de vôlei é muito bom.

Novamente, em retrospecto, era surreal que aquela tivesse sido a reação dele. Até numa hora daquelas pensou em vôlei... Se estivesse menos frágil, talvez Kenma tivesse rejeitado a oferta. Mas ali, mais vulnerável do que jamais esteve, assentiu com um olhar trêmulo.

Chegou a primavera, e com ela um novo Kenma, como sua mãe dizia toda vez que o via trajando o uniforme da nova escola, calças ainda um pouco longas. Afinal, ele ainda ia crescer, não tinha problema ficar assim por um tempinho, ela comentava ao dobrar a barra do traje. O próprio Kenma mal prestava atenção no que ela dizia, focado em disfarçar o sorriso que ameaçava crescer mais e mais toda vez que ouvia o nome que escolheu saindo dos lábios dela. 

Os primeiros meses foram bastante corridos — entre idas e vindas à consultórios médicos, diversas conversas com os coordenadores do colégio, e até mesmo uma entrevista com o técnico do time de vôlei, além da carga normal de estudos, era como se Kenma mal tivesse tempo para fazer as coisas que gostava. Sorte dele que tinha videogames portáteis, mas às vezes ele se sentia tão cansado que não conseguia focar na tela. 

Foi só no final do seu primeiro ano que conseguiu participar de um treino do time. Jogar vôlei com Kuroo era uma coisa, mas praticar com outras pessoas, que jogavam de maneiras diferentes, cada um com sua própria ideia de como vencer uma partida, era… intrigante. No mínimo, muito interessante. Cada vez que Kenma dava um toque na bola, assistindo o quão alto ela subia e como chegava às mãos dos jogadores, era como se a tal linha do horizonte tivesse voltado a se ampliar. Cada vez via mais longe, cada vez percebia mais algo ao seu redor. 

Talvez… vôlei até fosse legal de jogar também, não só de assistir.

Ele só não entendia porque precisava correr tanto. 

Na verdade, tinha uma lista de coisas que Kenma não conseguia entender sobre volêi em nível colegial. Para que correr por tanto tempo? Não era um esporte que exigia muita locomoção, ainda mais na posição dele. Para que se prender tanto ao conceito de “força de vontade”? Por que certas pessoas achavam que força física era a coisa mais importante em quadra? Até era compreensível que Kuroo queria que ele se desse bem com os outros, mas… Não era algo fundamental para ganhar uma partida, certo? Na única vez que ele tentou, foi literalmente um banho de água fria.

… Mas também não custava tentar mais um pouco.

    Kenma teve certeza disso quando um rapaz de cabelos laranja se aproximou dele, puxando conversa. Pensava em quantas mudanças tinha passado nos últimos tempos — bem traduzidas na quantidade de contatos salvos em seu celular. Nunca achou que aquele número chegaria nos dígitos duplos, mas foi Shouyo que permitiu aquela façanha. Igualmente, nunca achou que conseguiria ficar próximo de mais alguém além de Kuroo. Shouyo provou que estava errado.

    Tinha algo de mágico naquele menino. Talvez, antes de nascer, ele tenha posto todos os pontos de habilidade dele em ‘carisma’, ou algo assim. Era fascinante como ele surgia acima dos outros em quadra, esmagando a bola contra território inimigo. Era impressionante como ele conseguiu se esgueirar para dentro da mente de Kenma, conseguindo um lugar tão raro no coração dele. Esse poder misterioso de Shouyo foi o que o motivou a continuar tentando, a se esforçar um pouco mais, a se dispor a dar um pouco mais de si a cada partida. Mesmo após uma derrota, não conseguia tirar os olhos dele, acompanhando a trajetória que traçava no ar durante um salto. Seu amigo alçava vôos cada vez mais altos, e ele assistia contente a cada bater das asas do ex-jogador da Karasuno.

    Ex-jogador, porque parecia que o ensino médio tinha passado num piscar de olhos. Um dia estava correndo com Tora, no outro era a formatura de Kuroo, e logo que percebeu, já estava prestando vestibular. Sua escolha de curso foi fácil, mas o resto era uma página em branco. Depois de seis anos dedicados ao vôlei, com certeza queria fazer algo diferente. Sua faculdade não se destacava na área dos esportes. Não tinha disposição para começar de novo com um time cheio de desconhecidos, e sem chances de reencontrar seus antigos colegas como rivais, perdeu qualquer motivação. Continuaria acompanhando a vida nas quadras, mas do jeito que sempre lhe agradou mais: como espectador, analisando e prevendo os movimentos dos jogadores. Era mais divertido assim.

    Sua (pouca) energia logo foi direcionada àquilo que mais amava: seus jogos. Além de se dedicar a eles por passatempo, o boom de pessoas postando ou transmitindo suas partidas online rapidamente chamou sua atenção. Era uma ideia atraente, por mais que exigisse muito do jogador. O conceito de conversar com centenas ou até milhares de pessoas enquanto jogava era um tanto intimidador, mas Kenma acreditou que era como falar sozinho para a tela. Se agarrou nessa definição, e foi com essa convicção que se transformou em Kodzuken.

    O início foi, como esperado, sem graça. Ele gaguejava muito, suas visualizações nunca passavam das dezenas, mesmo com o apoio dos amigos e conhecidos. Aquela era uma função que exigia muita paciência, mas também não era como se Kenma esperasse muito. Seria legal se ele conseguisse tirar uns trocados daquilo para ajudar com a vida de universitário, mas era só como um trabalho de meio-período enquanto não se formava. 

    Um trabalho de meio-período em regime de escravidão, mas pelo menos era divertido.

    Pelo visto, um grupo de pessoas concordava com ele, porque mesmo que lento, era notável um crescimento estável em suas inscrições. Em um ano, conseguiu o suficiente para faturar com o hobby. “O correto é fazer o dinheiro trabalhar para você”, como tinha lido em um site, então começou a investir para multiplicar seus ganhos. Não era ganancioso, mas se tudo corresse como o planejado, conseguiria fazer bem mais do que pagar suas marmitas e bilhetes de trem.

    Foi graças a esse pensamento que não precisou ir atrás de um emprego quando se formou. Não somente isso, mas junto com a fundação de sua empresa, veio também um apartamento próprio, seu tratamento hormonal, uma pequena cirurgia e uma moto para Kuroo no aniversário dele. Já tinha até começado uma poupança para ajudar com a aposentadoria dos pais.

    Não era algo tão impressionante assim, ao olhar de Kenma, mas Shouyo parecia incapaz de fechar a boca quando o visitou pela primeira vez após seu retorno ao Japão. Ele estava mais alto, bronzeado, forte. Trazia na sua fala um tom diferente. Tinha pouco em comum com aquele menino perdido antes de uma partida, mas isso não era necessariamente ruim. Foi ao se ver nos olhos dele, na verdade, que Kenma notou o quanto ele mesmo havia mudado desde que se conheceram.

    Certas coisas ficam sempre as mesmas, apesar disso. Quando Shouyo perguntou porque Kenma decidiu patrociná-lo, foi incapaz de dizer a verdade. De fato, tinha dinheiro sobrando, mas era uma maneira de compensá-lo. Era o jeito que tinha de agradecê-lo, retribuir e incentivar o pequeno gigante a continuar voando cada vez mais alto. “Foi a melhor coisa que pude fazer”, pensou ao assistir o Asas São Paulo comemorando a vitória da Superliga. 

Claro, Shouyo não era o único responsável por Kenma chegar onde estava naquele momento. Na verdade, não era nem o maior contribuinte. 

Às vezes, Kenma se lembrava das palavras de Kuroo durante o primeiro ano, insistindo para que ele tentasse se dar bem com as pessoas ao seu redor. Era uma memória ligeiramente irritante, por causa da insistência do amigo, mas depois de atingir certa idade, ele conseguia entender melhor as intenções dele. Seu amigo sempre tentou fazer o possível pelas pessoas com quem se importava, e foi assim que aprendeu a tratar Shouyo da mesma maneira, mesmo que do outro lado do mundo.

Indo mais longe, conseguia se lembrar das tardes silenciosas, de como Kuroo nunca saiu do lado dele, das perguntas que demonstravam a preocupação que sentia pelo amigo. Sem aquelas palavras, ele não teria seus seguidores, não teria seus antigos companheiros de time e amigos para toda a vida, não teria Shouyo. Kodzuken não existiria, ele não teria alcançado nenhum de seus feitos, e todas as memórias fantásticas que tinha seriam apenas possibilidades.

Sem a insistência dele, nunca teria conseguido ir além do que a vista alcançava, e seu mundo continuaria do tamanho de uma casa de dois andares e três quartos, com ele escondido dentro de um deles. Por mais que o caminho até ali tenha sido complicado e um tanto doloroso, Kenma achava que era um preço justo a se pagar. 

A felicidade que sentia valia o esforço. 


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