O pior (melhor) tipo de tortura escrita por Clarisse Hugh


Capítulo 1
O pior (melhor) tipo de tortura


Notas iniciais do capítulo

E vamos de iniciar o ano com uma one fofinha desse casal que eu amo demais ♥



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Sei que eu deveria estar preparado para qualquer coisa desde que fui apresentado ao mundo mágico, mas a verdade é que nunca imaginei viver para ver Watford inteira tendo que funcionar sem feitiços por uma semana porque um bando de novatos do primeiro ano achou que seria uma boa ideia invocar o Bicho Papão.

Quero dizer, não os culpo por não saberem de antemão que a criatura é capaz de literalmente engolir palavras mágicas – eu mesmo só tive acesso a essa informação no segundo semestre do quarto ano, embora, no meu caso, eu tenha a desculpa de só ter entrado em contato com todo esse universo místico depois dos onze anos – e que, quanto mais feitiços engole, mais faminta e fora de controle ela fica. Mas mesmo sem esses adendos é meio difícil entender o apelo de conjurar um bicho desses de propósito, pra começo de conversa. Me pergunto se eu era assim tão idiota quando cheguei em Watford...

(Baz provavelmente diria que eu sigo sendo idiota até hoje).

A questão é que aparentemente o senhor Papão é uma das espécies ameaçadas de extinção (quem poderia imaginar?) e eu não pude simplesmente resolver a questão em quinze minutos com a minha espada. Em vez disso, o Mago apareceu portando um megafone no salão de jantar para anunciar que, enquanto o Minotauro e a senhorita Possibelf “cuidavam do incidente”, todas as nossas atividades mágicas estavam suspensas por “questões de segurança” e que deveríamos realizar nossa rotina do modo Normal até a próxima quarta.

Sinto que eu definitivamente não deveria estar aproveitando essa situação tanto quanto estou, considerando que uns oitenta por cento dos alunos ficou horrorizado com essa perspectiva, mas é muito difícil não me sentir realizado quando o culpado por essa grande confusão não fui eu. Mais do que isso: quando estou vivenciando um contexto em que as coisas estão sendo fáceis pra mim pela primeira vez. É inédito! Ontem mesmo eu tive que ensinar a Penny como usar um micro-ondas. Quando, em toda a minha vida, eu estive na posição de explicar alguma coisa para Penélope Bunce?!

Não me entenda mal, eu amo mágica. Não é como se eu quisesse reviver meus verões nos orfanatos, quando igualmente não posso praticar magia, mas aqui é diferente. É diferente porque eu não preciso me preocupar a cada dez minutos que tudo não passe de uma ilusão da minha cabeça, que o Humdrum me sequestre e ninguém sequer note minha ausência até ser tarde demais ou ainda que eu precise dormir com fome outra vez.

Watford é minha casa.

Estou seguro.

Alimentado.

Feliz.

Meu bom-humor está, inclusive, fazendo maravilhas para o controle da minha magia. Não estive nem perto de explodir desde que essa situação começou, há cinco dias. O que é algo engraçado de se pensar, já que a lógica seria imaginar que a falta de prática de feitiços talvez tornasse minha mágica já abundante ainda mais propicia a transbordar. Acho que o que acontece é que, por ter passado quase toda a vida fazendo as coisas do jeito Normal, não tenho tido medo de passar vexame na frente dos meus colegas de classe. Dessa vez sou eu que estou no meu próprio elemento e essa ansiedade a menos é um alívio bem grande.

Foi assim que, assobiando tranquilamente, subi as escadas da Torre dos Mímicos depois das últimas aulas antes do almoço. Nossa turma teve sorte, já que, por conta da impossibilidade de praticar feitiços, as provas foram adiadas, então isso significa mais tempo para estudar. Com a ajuda da Penny, em nossa reunião de estudos marcada para sábado de manhã, estou confiante de que vou conseguir uma nota decente.

Crowley, mal posso acreditar que as coisas estão dando certo!

Ao abrir a porta no topo da torre, entretanto, minha linha de pensamentos é brutalmente interrompida por uma visão que eu jamais imaginei presenciar em toda minha existência: Baz Pitch, parado ao lado de sua cama, com um olhar desalentador para seus pertences espalhados desordenadamente por todo canto.

O mundo dá voltas mesmo.

— Olha, pra quem costuma fazer um inferno sobre a bagunça que eu faço no quarto, seu lado está um desastre.

Ele se vira para me encarar e eu preciso conter um som de surpresa ao notar que até seu cabelo não está arrumado como de costume. Duas mechas levemente onduladas emolduram seu rosto e é quase injusto que alguém possa ser bonito assim sem nem sequer tentar. Esses cinco segundos de silêncio parecem ser o suficiente para que ele se recupere ao menos um pouco, porque seu rosto se fecha numa expressão de desdém e ele me responde de forma ácida:

— Humpft. Não é como se eu pudesse fazer meus feitiços habituais na situação que estamos.

— E daí? É só fazer do jeito normal.

Baz resmunga alguma coisa enquanto estou ocupado revirando os olhos.

— O quê?

Por algum motivo que desconheço, aquela parece ser a gota d’água para Baz e ele explode num misto de raiva, exasperação e... vergonha?

— Eu não sei arrumar do jeito normal, está bem?! Em Hampshire nós temos nossa babá Vera e aqui em Watford nunca foi necessário, então... é. Você não me chama de riquinho metido à toa...

Uau. Acho que a escola devia implantar oficialmente uma semana sem magia no calendário acadêmico. Se Baz Pitch assumindo não ser perfeito em alguma coisa servir de indicativo, acredito que seria muito produtivo.

Depois de um minuto de contemplação, decido ter misericórdia com o orgulho (já provavelmente abalado) do meu colega de quarto.

— Bom... eu posso te ajudar.

— Como?

— Eu te ajudo. Não é como se ficasse excelente como aquelas arrumações chiques de hotel, mas nos orfanatos temos que aprender a fazer tudo por conta própria desde cedo, então não é como se eu não tivesse experiência...

Ele me encara como se eu fosse uma aberração da natureza por um momento, mas acaba suavizando a tensão dos ombros e me oferecendo o menor dos sorrisos.

— Obrigada, Snow.

— Nah, não é nada demais. Além disso, você não tem sido tão pé no saco ultimamente.

— Não praticar magia deve estar afetando seu cérebro, pra você me dirigir elogios... – o tom da voz dele soa meio estranho, afetado por alguma emoção que não consigo identificar. Dou de ombros, afastando esse pensamento.

— Não foi exatamente um elogio e eu também não sou intransigente. Sei que você tem qualidades, apenas prefere escondê-las atrás dessa máscara de impassividade e vilania.

— Quem é você e o que fez com meu antigo colega de quarto?

— Não precisa ser nenhum Freud pra ver essas coisas, seu tonto. Agora vamos, presta atenção.

Me aproximo da minha própria cama, pegando a coberta levemente amarrotada e esticando-a sobre o colchão enquanto tento explicar do modo mais simples possível o jeito que aprendi, mas todo o cuidado é em vão, pois quando me viro para ver como Baz está se saindo é apenas para encontra-lo todo enrolado com o lençol de elástico.

— Eu sou uma desgraça. – o som sai abafado pelo tecido que o cobre da cabeça aos pés e, reprimindo uma risada, me aproximo para ajudá-lo.

— Me dá essa ponta aqui que a gente concerta...

Ao tentar alcançar o final do lençol, entretanto, meus dedos esbarram na cintura de Baz e ele solta uma risadinha nervosa, apenas para imediatamente adotar o tom mais rosado que já testemunhei em suas bochechas.

— Baz, você tem cócegas?

— ... não?

— Ai meu Deus.

— Nem pense nisso, Snow.

Mas é tarde demais, já estou atacando.

— Há há há Para, para, por Merlin! Há há há

— Quer dizer que esse tempo todo... eu podia ter derrotado o temível Tyrannus Basilton Grimm-Pitch numa guerra de cosquinhas?

Estou igualmente sem fôlego graças ao esforço de vencer a barreira de proteção que Baz construiu com seus próprios braços, mas isso não impede o largo sorriso que se espalha pelo meu rosto.

— Se você... falar isso há há... pra alguém... eu te... há há mato, Snow há há há

— Desculpa, mas não dá pra te levar à sério assim, Baz.

— Simon, por Crowley há há há Eu não consigo... respirar há há há

— Okay, okay. Acho que podemos decretar uma trégua.

Por Morgana, acho que nunca nos divertimos tanto assim juntos e foi tão... gostoso. Não só divertido, mas também certo. Sentados sem jeito, embolados na roupa de cama, ambos recuperávamos o fôlego com largos sorrisos no rosto.

— Sabe, Baz, acho que nunca tinha te visto gargalhar assim antes...

— Eu tenho uma reputação a manter, Snow.

— Grande bosta. Tu devia sorrir mais. Fica... fica bem em você.

Baz aparentemente não sabe o que responder (e não o culpo, porque não sei exatamente de onde saiu uma declaração assim tão abrupta), mas logo na sequência sinto que devo estampar uma expressão que o deixa desconcertado.

— Snow? Devo me preocupar?

— Hum?

— Você tá... Crowley, o mundo deve estar de ponta cabeça se sou eu quem está dizendo isso, mas... você tá com cara de quem está tramando.

Não sei dizer se "tramando" é exatamente a palavra certa, mas uma ideia maluca certamente se formou na minha cabeça e o problema de funcionar como eu funciono é que sei que vou ficar pensando nisso o tempo todo daqui por diante enquanto não fizer algo à respeito.

— Talvez eu esteja...

— Formas de ocasionar a minha ruina? – ele diz meio brincando, mas algo me diz que seu coração bate mais rápido e, se eu fosse o vampiro, com certeza estaria ouvindo claramente.

— ... algo assim.

É então que venço a distância entre nós e o beijo.

Uma parte minha se sente satisfeita por não termos sequer tocado em nossas varinhas nos últimos dias, já que assim ambos podemos ter certeza de que toda a magia desse momento vem exclusivamente do contato de seus lábios gelados com os meus.

Também fico feliz por nunca ter sido especialmente talentoso com as palavras, porque não consigo encontrar uma única que se encaixe para descrever o que estou sentindo e, se eu já não fosse terrível nisso antes, ia ter certeza de que Baz quem havia sido responsável por roubar minha habilidade de me expressar.

Tudo que sei é que é, ao mesmo tempo, desafiador e aconchegante. Inédito e esperado. Poderoso.

Quando nos separamos em busca de ar, as mãos de Baz se agarram firmes na frente da minha camisa e seus olhos cinzas estão transbordando do mesmo sentimento que parece me tomar por inteiro.

— Simon...

— Merda, esse plano foi um grande erro.

— Oh.

As barreiras tão cuidadosamente construídas em torno de sua pose impassível estão abaladas e é por isso que vejo a sombra de algo que se assemelha muito com mágoa passar por ele, então me apresso a corrigir minha fala anterior, completando a ideia:

— Porque agora tô arruinado também.

Nos encaramos profundamente e eu uso desse instante para passear com os olhos por cada centímetro do garoto a minha frente, absorvendo-o de perto como nunca antes. Sempre me julguei um especialista em tudo que dizia respeito a Basilton Pitch, mas aparentemente há muito mais para se descobrir e eu quero tudo.

— Baz, você me odiaria muito se eu fizesse isso de novo?

Com cenho franzido, como se também me redescobrisse, ele engole em seco e, tomando coragem, se apresenta transparente para mim.

— Eu jamais poderia te odiar, Simon...

— Maravilha.

Nos beijamos uma vez mais e é como se, juntos, arrumássemos toda a bagunça.


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