Continue, Jean

por Sahh

Em um galpão, iluminado por uma fileira de tochas, desdobravam-se conversas animadas. Nele, cinco jovens aproveitavam o que chamavam de “momento livre” — o que, em breve, não teriam mais. Haviam, afinal, sido graduados; eram os novos integrantes do Esquadrão Levi, um feito que iria requerer muita responsabilidade da parte deles. 

A impressão no peito de todos era a mesma: a infância acabou. Assim sendo, não demoraria até eles serem cobrados mais do que já eram. E, sendo aquele um período em que o desagrado em relação à Tropa de Exploração estava em alta, a tensão inundava o ar. Por isso, buscavam ofuscá-la aproveitando folgas como aquela; zombando dos amigos ou contando histórias. Ao menos, era isso o que fazia Jean, que há meia hora se entretinha com Sasha e Connie: os mais inocentes e idiotas da antiga turma de cadetes 104°.

Ok, supostamente entretido. Pois Jean não parava de espiar duas figuras mais adiante. Eren e Mikasa podiam até estarem próximos ao trio animado, mas não participavam da conversa. Pelo contrário: ambos discutiam. Mikasa insistia para Eren deixá-la fazer novos curativos em suas mãos — outrora em carne viva durante o último resgate ao garoto-titã — e ele se recusava a obedecê-la.

— Eu já disse que estou bem, Mikasa, para de ser neurótica — dizia Eren. Ranzinza ao extremo, ele mantinha as mãos longe das da garota. — Não precisa trocar o curativo ainda, droga!

A jovem de singulares — mas belíssimas — feições asiáticas apenas suspirava e tornava a insistir, paciente até o fim. Diante disso, Jean cerrou os dentes e fechou as mãos em punhos, intimamente louco para afundá-los na fuça de Eren. 

Mas, claro, não podia fazer nada disso — não se quisesse evitar o ódio de Mikasa. Portanto, borbulhando de raiva, mas se controlando, ele decidiu contar a Connie e Sasha uma história de seus dias de moleque, quando vivia em sua terra natal. Seus amigos o ouviam com atenção, contudo, isso não foi o bastante para sossegar Jean, que continuava a prestar atenção na briga de Eren e Mikasa; esta, ainda firme em realizar uma atitude altruísta, e aquele, repelindo-a da forma mais ingrata possível. 

Era isso o que acabava com Jean. Eren, embora parecesse não se esforçar nada para isso, recebia a atenção zelosa de Mikasa vinte quatro horas por dia. Já com Jean a história era outra; a jovem séria e habilidosa nunca demonstrava interesse por sua pessoa, fosse positivo, fosse negativo. Era como se Jean fosse invisível para ela ou só insignificante demais para ser notado.

Um exemplo pertinente: ali e agora, ele apostava toda sua grana que Mikasa não desviou os olhos para ele uma única vez — ao invés, fitava Eren, a única pessoa capaz de fisgar toda a atenção dela. 

Ah, se ao menos aqueles cabelos negros, iguais ao carvão, não fossem tão bonitos e não hipnotizassem completamente caras como Jean… Ou se ela não fosse tão incrível em batalha, sustentando uma expressão séria mesmo diante do tipo mais asqueroso de titã… Era impossível ele se desencantar, mesmo que Mikasa estivesse eternamente nem aí para ele.

Jean sentia o estresse o consumindo, mas não por causa de Mikasa, e sim, de Eren. Aquele cara simplesmente não entendia a sorte que tinha e o quão incrível era ter Mikasa por perto — preocupada com ele, ainda por cima. Jean nunca fora com a cara dele. Quando se conheceram, os sonhos idealistas de Eren e o jeito com que ele fazia as pessoas gostarem dele o enfurecia, e seu rancor por ele aumentou quando percebeu que Mikasa não se preocupava com nada além daquele cara.

Era humilhação demais para aguentar. Jean não queria saber de Eren e não queria saber, das outras pessoas, que eles tinham mais em comum do que pensavam, como a mesma teimosia, o olhar maligno e a carranca enfurecida. Não bastava Jean ter de se fazer de sósia do desgraçado, ainda vinham com uma amolação daquelas.

Quanto à paixão por Mikasa, ele já não sabia o que fazer para impressioná-la. Marco, quando vivo, dizia que ele possuía um dom de líder natural, e Jean admitia que, no início, não tinha tanta confiança nas palavras dele, mas passou a confiar mais em sua própria lógica. 

Pois, segundo Marco, eram justamente suas falhas que faziam de Jean um líder honrável.

Bem, pelo visto, nem isso era o suficiente para ele ganhar algum reconhecimento de Mikasa. E ali, no galpão, Jean — de intenso ego ferido — conformava-se com a ciência de que Mikasa não escutava uma palavra da história que ele continuava a narrar.

Droga, se ao menos ela não fosse tão incrível… Desde que abandonou o sonho de entrar na Polícia Militar, Jean agora mantinha expectativa com uma vida plena na Muralha Sina, com Mikasa ao seu lado — como esposa e companheira eterna. Se havia uma mulher no mundo que ele desejava que fosse a mãe de seus filhos, era Mikasa. E se, por algum milagre, chegasse o dia em que eles se casassem, Jean seria o homem mais feliz do mundo. Poderia até pedir para sua mãe abençoá-los — ele se sentia bem por ter feito as pazes com ela desde sua disputa culinária com Sasha.

Em síntese, caso tudo isso se realizasse, Jean, diferente de Eren, se preocuparia em tratar Mikasa com o respeito que ela merecia em lugar de lhe dizer coisas agressivas e dar infinitos foras nela. O único defeito que Jean apontava na garota era a irritante devoção que ela tinha por Eren, claro, mas isso pelo menos mostrava que ela era alguém fiel de verdade.

Se ela ao menos me notasse, lamentava. Se ela ao menos demonstrasse, uma vez sequer, que presta alguma atenção em mim, eu...

— CAI FORA, MIKASA!

 O grito de Eren sobressaltou todos. Pelo visto, ele se impacientou de vez com Mikasa, atirando as faixas para longe e cerrando os dentes. — Chega de me tratar como um bebê, você não é minha a mãe, caramba!

Ele se ergueu e saiu do galpão, cujas portas estavam entreabertas desde a saída de Armin, há meia hora. Um silêncio pesado tomou conta da sala, e Jean, Connie e Sasha viraram a cabeça para Mikasa. Ela mirava a porta por onde Eren acabara de sair, olhos neutros, mas que, no fundo, destilavam cansaço. 

Jean desviou para outro canto e mordeu o lábio. A frustração que sentia era esmagadora. Sabia o que aconteceria, é claro; Mikasa, após receber um dura de Eren, esperaria alguns segundos e então iria ao encalço dele.

Simples assim.

Um suspiro longo quebrou o silêncio.

— Continue, Jean — disse Mikasa. — Você e seu amigo fugiram do dono do bar. O que aconteceu depois disso?

Um raio caiu na cabeça de Jean. Ele rapidamente a olhou e se chocou ao ver que os olhos dela realmente estavam sobre ele e mais ninguém. 

Se ela ao menos demonstrasse, uma vez sequer, que presta alguma atenção em mim, eu…

Ali estava: o que ele implorava há um minuto se concretizou. 

Mesmo só tendo olhos para Eren, mesmo que fosse ele o mais importante para ela, ainda assim, Mikasa prestou atenção em tudo o que Jean disse até agora.

Ele sentiu o coração explodir de felicidade. Seu casamento com Mikasa poderia nem vir a acontecer, mas, naquele instante, jazia ali o espírito do homem mais feliz do mundo.

Em meio às emoções que tomavam conta do corpo e da alma de Jean, Connie pigarreou.

— São os meus olhos ou o Jean está chorando sem motivo algum?