Arranjos & Desarranjos escrita por Lily Masen, Shalashaska


Capítulo 2
Jogos & Flertes


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente! Pra quem fez o ENEM hoje, espero que vocês tenham tido uma boa prova! Pra quem não fez, espero que vocês tenham tido um ótimo dia!
Estamos felicíssimas de ter conseguido entregar o capítulo no dia certo. E...... sem mais delongas, boa leitura!



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O céu estava ensolarado e a brisa era suave, enquanto a garota encarava o horizonte. O clima parecia perfeito para dar uma caminhada nos belos jardins de Londres e tomar um pouco de ar fresco. No entanto, graças a um desagrado matinal, Carlota Benedetti já não se sentia inclinada a passeio algum. Como se não bastasse o parvo que cruzara sua soleira pela manhã, os penteados apertados e vestidos desconfortáveis também não lhe eram nenhum atrativo, especialmente quando o seu maior sonho não era se casar ou constituir uma família. Ela sabia que podia ser mais que isso, sabia que ela poderia ser muito mais que uma senhora da casa se apenas lhe permitissem. Mas, embora ela priorizasse o seu intelecto sobre todas as outras coisas, dificilmente um homem faria o mesmo. Sua mãe sempre tentou instruí-la na arte do bordado e dos instrumentos, mas a garota punha-se a escrever poesias ou a enfiar-se em livros sem fim. Ao menos, a pobre senhora encontrara na filha mais nova alguém disposta a aprender os inúmeros requisitos de uma moça prendada. 

Carlota soltou os cabelos volumosos do coque firme e apertado que reprimia a rebeldia das madeixas negras. Arrancou do corpo o vestido justo que lhe fora feito especialmente para receber os seus pretendentes e o substituiu por um de seus favoritos, uma peça delicada na qual os seus seios não aparentavam tentar cumprimentar os visitantes. Como se aquele fosse o seu único atributo que merecia alguma atenção. Pel l’amor di Dio, ela tinha um cérebro! A garota cruzou os braços, inconformada, virando-se para a pobre dama que fora obrigada a ouvir seu monólogo.

— Quanta audácia daquele homem de me cortejar! — bradou. — Você sabe quantas línguas eu falo? Três!

— Bem… 

Argh! Ele parece uma porta de tão ignorante! — Carlota interrompeu, estremecendo ao lembrar-se da estupidez do pretendente. No futuro, ela não se via junto de alguém como ele. Ela gostaria de ter em sua vida alguém que pudesse admirar, alguém com quem pudesse realizar coisas grandiosas, lado a lado. “Tal homem não existe”, Fiorella Benedetti costumava dizer, “Finque seus pés ao chão, querida, ou há de se decepcionar”. Mas ela nunca dera ouvidos à mãe, afinal, o que lhe custava sonhar?

— Ele deveria estar em busca de uma tutora, não de uma esposa!

— Não fale assim do pobre Jeremy. Alguns homens não são tão inteligentes quanto você. — Claire riu, uma vez que ela própria não era tão estudiosa quanto a amiga. A única leitura que apreciava fazer era a das revistas de fofoca, e já saboreava as primeiras páginas da edição recém-saída da gráfica enquanto ouvia o drama de Carlota.

A jovem sabia apenas o mínimo necessário sobre etiqueta e educação para manter-se longe de escândalos e situações vexatórias e ostentava habilidades medianamente ruins no pianoforte. De fato, sentia pena daqueles que tiveram de escutá-la tocar antes que desistisse completamente do instrumento. Mas, em compensação, era dona de um bom-humor inabalável e uma despreocupação inerente.

— Mas algo é certo, ele pode pagar pelos seus luxos, e muito. Eu não o descartaria ainda, se fosse você. — Claire aconselhou, enquanto lia sobre a desfaçatez de uma debutante. 

Pega nos jardins com um cavalheiro e desacompanhada! Quanta audácia da senhorita Kensington! 

Claire cobriu a boca, ligeiramente chocada, mas divertida. Ela não desviou o seu olhar da revista para oferecer mais um argumento brilhante à Carlota em prol do jovem Jeremy, que ela achava bonitinho e rico o suficiente para se tornar um marido adequado. Não para ela, é claro, ela gostaria de se casar por amor. Acreditava no par perfeito e em grandes atos românticos. Mas julgava que encontrar um marido endinheirado — e que não a impedisse de tocar as capas de couro que ela tanto amava — seria um dos melhores prognósticos que Carlota poderia ter naquela temporada, visto que o amor não lhe era a maior inspiração.

— Eu não sou uma das garotas mais brilhantes e, ainda assim, aqui estamos nós… Você aguenta mais um burrinho.

Carlota apertou os olhos, ao que a outra respondeu com uma gargalhada. Ela nem sequer se deu o trabalho de retrucar, sabia que a garota de cabelos encaracolados a conhecia bem o suficiente para não precisar de explicações. Claire sabia que não era apenas a própria inteligência que ela prezava. Ela aspirava casar-se com o possuidor de um intelecto, se não tão aguçado quanto o seu, ainda melhor. 

— Você é ridícula.

A garota de cabelos negros resmungou, erguendo o livro que repousava em seu criado-mudo. Mas, assim que ela se sentou na cama, com o livro aberto na última página lida, Claire se levantou. Em seu rosto, um semblante profundamente ofendido: 

— Não me diga que está pensando em ler. Ainda mais comigo aqui — reclamou, jogando o jornaleco de fofocas para o lado. Na manchete, lia-se a notícia do debute de Hanabi Westminster no próximo baile, uma estrangeira. — Não quando podemos jogar absolutamente qualquer coisa com Matteo e Enrico! 

— Você parecia muito bem a ler aquela… coisa absurda.

— Aquilo é uma mera distração. Já você, quando enfia a cabeça num livro é impossível tirá-lo de si. Vamos lá! — implorou. — Críquete, badminton… Pode escolher desta vez.

Carlota suspirou, perguntando-se mais uma vez por que eram amigas. Ela preferiria se sujar de tinta à manchar a barra do vestido com terra e, tinha a mais absoluta certeza que Claire diria o mesmo, exatamente ao contrário. No entanto, a garota a conquistara com o seu bom-humor e a sua tranquilidade, como um dia quente de verão — e Carlota fizera o mesmo, com seu foco imperturbável e suas piadas inteligentes, embora se achasse mais parecida com um dia de neve no inverno.

— Você não precisa de mim para estes jogos… Matteo e Enrico ficarão felizes em ajudar-lhe, estou certa. — Ela sorriu, olhando de soslaio para o livro que voltara a repousar sobre o criado-mudo. — Eles estão lá embaixo!

— Tudo bem…

Claire suspirou, dando-se por vencida. Ela desceu as escadas, apreciando o barulho no andar de baixo. A casa dos Benedetti estava sempre cheia, com cinco filhos a fazer estardalhaços, exceto quando Carlota trancava-se no quarto, deixando a bagunça sob a responsabilidade dos outros quatro. Ela atravessou o corredor, dando uma espiada nas portas entreabertas, na sua busca pelos irmãos mais velhos dos Benedetti. Desde jovens, tratavam as duas garotas como se fossem meninos ou, como Fiorella diria, moleques

— Enrico! — Ela vibrou, ao achar o irmão de cabelo castanho-claro sentado no sofá, aparentemente desocupado. — Que tal uma partida de badminton? 

— Seria ótimo. Eu vou pegar as… — Ele sorriu, levantando-se num instante, mas sua expressão logo se tornou um tanto confusa e desorientada.

— Ah, não. Acabei de lembrar que… eu tenho que… Enfim, acho que ouvi a mamãe me chamar. Matteo está pintando com Pietra e Nina, vai encontrá-lo na sala de desenhos. Ele nunca recusa uma partida de badminton.

— Ela não…

Claire tentou dizer, mas Enrico havia desaparecido num simples piscar de olhos, deixando-a atordoada. Afinal, por qual motivo o rapaz estaria praticamente a fugir dela? Mas ela simplesmente deu de ombros, julgando sua impressão um equívoco. Antes de se aproximar da porta branca, o diálogo entre os irmãos já era audível. Mas bastou que ela girasse a maçaneta para que um silêncio profundo se instaurasse no quarto.

— Senhorita Evans! — Pietra pulou, avançando sobre ela com um abraço apertado. Nina era mais nova, e um pouco mais tímida, oferecendo-lhe apenas um aceno. — Matteo vai adorar jogar o que você quiser!

— Hã? — Ela sorriu, envergonhada, alternando o olhar entre os três. — Como… como você sabe?

— Está procurando por ele, não está? — A menina abriu um sorriso largo. Um dos mais belos que já vira, sem dúvidas, enquanto lançava olhares significativos para a mais nova.

— Sim, mas…

— O que você sugere? — Matteo interrompeu, roubando a atenção da garota para si. Então, ele lançou um olhar perfurante para a irmã, antes de se levantar e começar a guardar seus pincéis.

— Badminton?

— Perfeito. Vou buscar as raquetes. 

Ao adentrar o recinto, o cheiro forte de tabaco misturado com álcool preencheu os pulmões de Henry Dashwood. Ele franziu a expressão instantaneamente, na tentativa mal sucedida de se acostumar com o aroma, e depois desistiu, caminhando naquele ambiente à meia luz com apoio de uma elegante bengala. Após uma violenta queda de cavalo, seu joelho direito nunca mais foi o mesmo, mas ele sabia que era um preço menor a se pagar por um acidente tão feio ainda tão jovem. Sua satisfação era escolher bengalas que agradassem seu senso estético, como esta que tinha em mãos, adornada discretamente por madrepérola.

O clube para cavalheiros era famoso na região, abrigando os melhores vinhos e adocicados brandy. No entanto, essa era apenas parte da diversão: charutos importados eram comuns nas reuniões à noite e alguém já trouxera ópio do Oriente certa vez; conversas altas e piadas esdrúxulas podiam ser ouvidas com facilidade; e é claro, os jogos de azar envolvendo cartas e dados eram motivo para risadas e algumas desavenças.

Henry estava ciente de que nem sempre o clima no clube era da mais alta depravação. Muitos só buscavam um local mais livre para aliviar o estresse dos negócios ou até mesmo realizar o completo oposto e conversar um pouco sobre lucros, perdas e novas ideias de investimentos. Quem sabe parcerias comerciais não nascessem ali? 

No entanto, ele também não era ingênuo. As noites mais movimentadas geralmente envolviam mulheres que sentavam em seus colos e compartilhavam de suas bebidas madrugada adentro. Todas eram muito bem pagas, tanto é que não apareciam muitas vezes por semana… Apenas o suficiente para não causarem prejuízos aos seus senhores de uma só noite.

Desviou de uma conversa acalorada, depois de uma mesa cheia de dinheiro e cartas. Henry tentou ficar mais à vontade aceitando uma taça de brandy, mas ainda não encontrara um local confortável para ficar e muito menos encontrara quem veio buscar. Antes que pudesse se convencer de que aquilo era uma completa tolice e que deveria simplesmente partir, sentiu uma mão em seu ombro, em um cumprimento breve e forte: Ninguém menos do que Anthony Hartridge, o proprietário e administrador do clube. Seu jeito impecável e o nariz ligeiramente assimétrico por uma fratura no passado eram traços inconfundíveis.

— Senhor Dashwood! Não o vejo há tempos.

Henry ofereceu-lhe um sorriso acanhado, justificando-se:

— Pensei que meu primo, Frederik, estivesse aqui.

— E eu nunca imaginei que você viesse a tal lugar. — Anthony retribuiu com um olhar zombeteiro, afinal, era fato de que, diferentemente de Frederik, Henry não era grande frequentador de clubes ou bares. — Se divertindo?

— Acabei de chegar.

— Então não está se divertindo ainda. Venha, venha. Vamos colocar os assuntos em dia, sim? Soube que você tem tido muito trabalho ao norte, em Stormhold. 

— Ah, sim. Existem muitas tarefas a serem feitas no condado.

Anthony o conduziu até um ponto agradável e distante do maior foco de barulho, com duas poltronas bem acolchoadas e uma mesa baixa entre elas, onde repousavam taças intocadas e uma garrafa de brandy. Assim que se sentaram, o anfitrião serviu a si próprio e completou a taça de Henry Dashwood, para depois comentar:

— Confesso que seu sotaque galês agrega um som diferente a Londres. E devo dizer que ouço falar muito bem de seu trabalho. Já se decidiu se…?

— Se quem irá ser conde será eu ou Frederik? Não, ainda não.

— Compreendo. O senhor Strawell é um excelente negociante, mas passa muito tempo viajando, não? E você tem aproveitado bem o comércio local com as feiras e os eventos. Inclusive planejei viajar até lá na primavera passada, embora não tenha conseguido no fim.

— É muita gentileza sua, Anthony. Será bem-vindo, se puder ir na próxima vez.

— Espero que ao visitá-lo, eu já esteja visitando o conde de Stormhold.

— Vamos com calma. Ainda seria uma quebra de protocolo eu receber o título… Mesmo que algumas pessoas afirmem que seja a melhor opção. E me perdoe a indiscrição, mas por que o interesse?

— Serei honesto com você, Dashwood. Gosto do Frederik, mesmo que o comportamento dele seja um tanto… indiscreto. Não que eu seja a pessoa mais indicada para debater o assunto, não? — Ele riu, fazendo uma breve alusão ao seus hábitos pouco conservadores. — O fato é que também seria péssimo para os negócios se ele ficasse apenas em Stormhold, pois além de um cliente assíduo, parte da fama do clube se deve ao fato de Frederik trazer conhecidos para cá.

— Bom, não é como se Frederik estivesse empolgado para ser conde.

— Não mesmo. No entanto… Parece que você também não está empolgado para ocupar tal posição.

Henry pousou a taça na mesa, depois permaneceu um tempo em silêncio, apenas tateando os detalhes de sua bengala. Inspirou fundo. Existiam inúmeras nuances naquela história e ele não se sentia confortável em discuti-las ali ou agora. Após refletir por alguns segundos, optou por uma resposta simples e verdadeira:

— Stormhold deseja estabilidade… E sabemos que isso envolve casamentos e filhos.

— Pensei que apreciasse isso.

— Sim, mas… Já passei por um casamento uma vez, lembra-se? — Henry teve a educação de não entrar em pormenores sentimentais. — É um tanto cansativo agora.

O nome dela era Elizabeth, e Henry não havia exatamente se casado por amor, mas achava que tinha sido o mais próximo possível que pudera chegar de tal sentimento venerado em tantas lendas e poemas. Eram amigos no começo, depois foram se tornando algo mais. Casaram-se na primavera do ano de 1812 e no outono uma forte doença acometeu a moça.

No inverno, Henry organizou o funeral e  hoje… Ele era um viúvo desesperançado.

— Sim, sim. — Anthony tentou sorrir com empatia, mas sua expressão era um tanto… distante. Henry supôs que o outro não conhecia o sentimento de pesar tão forte quanto ele próprio e era óbvia sua urgência em trocar de assunto. Levantou-se, por fim, ainda com a taça na mão. — Enquanto está aqui, tente se divertir. Aposto que Frederik não demora a chegar.

Henry anuiu e pensou em agradecer a hospitalidade, mas antes que pudesse abrir a boca, Anthony gritava para alguém do outro lado do recinto.

— Ei, onde está a música? Aquele maldito pianista está atrasado de novo! 

Uma voz indistinta respondeu-lhe, talvez vindo de um dos homens no grupo que jogava cartas.

— Talvez você não devesse pedir que ele trabalhasse sóbrio. — O deboche era evidente. — O coitado seria mais pontual!

— E adiantaria? Ele já chega com o rosto sonolento e se eu o deixasse beber, correria o risco de vê-lo vomitar no mogno.

A risada rouca de Henry foi genuína. Viera até o clube de Anthony Hartridge atrás de seu primo, justamente para evitar que Frederik ficasse confortável demais com os prazeres boêmios da cidade, entretanto… Não só ele não estava ali quanto Henry descobrira que existia alguém muitíssimo pior para bebida.

Somente os santos receberam Aurora quando ela adentrou a Igreja. 

A jovem estava acostumada a chegar tarde no local e ficar sozinha durante alguns minutos, e também não se incomodava muito com isso. O padre logo chegaria. É claro que tinha um pouco de urgência, já que não era de bom tom nenhuma dama sair desacompanhada naquela altura da noite, no entanto seu coração dizia que era um pecado menor se o objetivo fosse ajudar os mais necessitados, assim como fazia agora. Apenas ajeitou os cabelos louros escuros em seu recatado penteado, depois arrumou as vestes um tanto amassadas, pois tinha saído apressada da elegante casa dos Wintergarden — sua família adotiva — e aguardou com o cabaz de comida em mãos.

Aurora tinha esse pequeno costume: levar comida para os mais carentes. Ela própria viera de um lar pobre antes de ser acolhida por uma família abastada, portanto considerava correto de sua parte dividir o que tinha com quem precisava. Era um segredo e, talvez, um delito, mas a jovem tinha certeza de que aos olhos do Senhor, sua atitude era bem vista.

Ela encarou brevemente as pinturas sacras e abriu um pequeno sorriso, admirando a luz das velas e o luar que atravessava os vitrais.

Talvez tenha sido uma boa decisão vir entregar os cabazes na igreja. Antes entregava a comida diretamente nas casas, para as famílias conhecidas, no entanto caminhava muito em certas noites e tal coisa era perigosa. Quando o padre se ofereceu para receber as doações, Aurora teve receio de que ele comentasse o caso com outros fiéis e revelasse seu segredo.  Tal receio mostrou-se infundado com o tempo, felizmente, e já era o quinto mês que Aurora levava alimentos para lá. O esquema era simples: Aurora comia somente o necessário e levava as sobras e mais um pouco para o padre Ward, para que ele distribuísse para quem precisava. E bem, se acaso descobrissem… Ela era só uma devota prestando orações, não?

Riu consigo mesma. Para uma jovem que às vezes ansiava aventuras, aquela era sua única contravenção. Apoiou a cesta em um dos bancos de madeira da igreja e passou a mais uma vez encarar o teto — tão alto, em arquitetura tão intrincada e bela! Distraída, ela se pôs a cantar uma das canções campestres que conhecia, de seu antigo lar. Gostava da melodia e, apesar de sua voz ser agradável e precisar de pouco treino, ela jamais se apresentaria aos outros. Quem sabe fosse outro segredo seu, embora não fosse seu maior talento. Fechou as pálpebras, embebida na música. A letra da canção era simplória e de valores religiosos, feita para ser cantada enquanto a pessoa ocupava-se com alguma outra tarefa.

Qual não foi sua surpresa ao perceber que o piano da igreja lhe acompanhava.

Aurora abriu os olhos cor de mel e parou de cantar no mesmo instante, enquanto um sentimento gelado arrepiava-lhe inteira e esfriava seu estômago em puro pânico. Lá, próximo ao altar, estava um homem de roupas escuras sobre o piano. Ocorreu-lhe que teria sido melhor continuar cantando para que ele permanecesse tocando o instrumento, pois agora a atenção dele estava sobre si e Aurora não gostava nada disso.

Indiferente aos sentimentos de confusão e medo, o desconhecido abandonou o piano e aproximou-se devagar, com uma expressão neutra na face. Não era jovem, mas havia algo peculiar em seu rosto anguloso, com maçãs proeminentes e os lábios suaves demais. Aurora diria que a característica que mais lhe marcava, no entanto, eram os olhos grandes, redondos e azuis do sujeito. Olhos deveriam ser de clara interpretação — afinal, não eram as janelas da alma? — mas aqueles olhos certamente não ofereciam nem o mínimo vislumbre do que o homem queria.

Ao menos ele tentou ser simpático:

— Eu diria que é a voz de um anjo… Então fui acometido por um pensamento engraçado: Não sabia que os anjos eram irlandeses.

Ela engoliu seco, sem saber se era sábio aceitar o elogio. A canção não era tão conhecida assim, ou ao menos não na Inglaterra, o que a fez cogitar se ele era irlandês também. Não parecia, e seu sotaque era genuinamente inglês. Agora, mais perto e munida de seu conhecimento em tecidos, a jovem podia ver que as roupas escuras do sujeito eram de segunda mão e um pouco amarrotadas…Mas ainda parecia que ele, independente do que fazia ou a que classe social pertencesse, se esforçava para manter uma silhueta ereta e elegante. 

De perto, ele parecia ainda mais alto.

— Eu… Onde está padre Ward?

A pergunta reverberou no homem, que já tinha bebido um pouquinho — talvez mais do que deveria — da adega especial do inocente e generoso padre. 

Padre Ward sempre acolhia-o quando não conseguia pagar o aluguel da pensão barata ou quanto lhe faltava um jantar, e em troca ele tocava o piano em algumas cerimônias. Só não aceitava muito os conselhos religiosos e sempre acabava voltando para os braços das dívidas, da bebida e do hedonismo.

Deveria estar em outro lugar no momento, mais especificamente no clube de cavalheiros há muitas e muitas quadras dali. No entanto, Anthony Hartridge não o permitia beber durante o serviço — Um erro, em sua opinião, pois era quando soltava os dedos calejados em excelentes melodias — e lá não havia mais do que alguns petiscos impróprios para um estômago com fome. Uma parada na igreja parecia o ideal, e não levaria mais que uma hora. Entre todos os seus pecados, o atraso era o menor.

Mas é claro que ele pouparia a menina dos relatos de sua vida miserável. Nem mesmo padre Ward insistia mais em levá-lo ao confessionário. Educadamente, ele explicou:

— Provavelmente conferindo se as hóstias e o vinho serão suficientes para a próxima missa. — Sorriu e fez uma alusão velada a si mesmo. — E amparando os necessitados.

— Bom, por favor, — Aurora deu um tímido passo para trás. — Diga-lhe que deixei o cabaz de comida, sim? Senhor…?

— Senhor Caine, um pianista. — Ele fez uma mesura cortês. — Michael, se formos amigos um dia. Se bem que já me sinto afeiçoado pela sua bondade, pois já experimentei algumas provisões da senhorita em momentos mais… críticos

A jovem enrubesceu.

Tinha tomado o homem por um mau sujeito quando ele admitia na sua frente que era um coitado a receber doações. Tola! Não era correto julgar o próximo, embora tivesse que admitir em seu coração que estava com medo. Um desconhecido a prosear àquela hora, sem mais ninguém por perto? Ao fim, só respondeu:

— Ora, eu… De nada.

O silêncio preencheu a igreja mais uma vez, até que Michael Caine questionou:

— Eu posso ter o nome da nossa salvadora misteriosa?

Aurora franziu a testa. Sim, era religiosa, porém não podia esquecer determinadas crenças da Irlanda, por exemplo o fato de não ser aconselhável dar o nome a um estranho. Nomes carregavam poder, principalmente nomes inteiros. Decidindo confiar em Deus, mas sem esquecer os velhos costumes, a jovem timidamente disse: 

— Me chame por Aurora, senhor.

Aurora. — Repetiu, ciente da hesitação dela. Essa hesitação — esse medo — era algo doloroso de notar, uma vez que Michael não se considerava de fato perigoso. Não passava de um miserável com um resto de talento, esquecido pelo mesmo Deus que ela amava. Simultaneamente, não a culpava. Ele próprio não gostava do que via no espelho. — Certo, senhorita. Direi ao padre Ward que esteve aqui e deixou a cesta.

— Obrigada. E… adeus.

Ele anuiu, educado e sério:

Adeus.

Aurora se apressou mais do que nunca em sair da Igreja, sem ligar se sua postura estava longe do que a sociedade esperava de uma dama. Afinal, ela já estava errada desde o começo, não? Saindo assim, à noite, desacompanhada e sem avisar ninguém. No entanto, poucos metros após ter saído pela porta, ela girou o queixo sobre o ombro para checar se Caine ainda estava lá. Não dava para enxergar com clareza e ela continuou andando. Em seu íntimo, divagava sobre a provável — e terrível — situação financeira do homem e se ele apreciaria a comida doada. Imaginava também se algum dia ouviria os dedos dele tocarem uma melodia novamente.


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Notas finais do capítulo

Tô roendo as unhas de tanta ansiedade pra saber o que vocês acharam, não esqueçam de dar os pitacos de vocês (em relação a tudo que vocês acharem que devem: personalidades, amizades, aparências, tudinho).
Observaçãoooo: Hanabi Westminster, não esquecemos de você! Ela vai chegar com tudo no próximo baile da temporada (saiu até no jornaleco, gente). Lembrando que os últimos não são menos importantes, é só pra vocês terem tempo de absorver todos os personagens, beijão!! E até a próxima semana (fé que vai dar certo, hahahah).



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